Os mundos de Gulliver

OS MUNDOS DE GULLIVER

Miguel Carqueija






“Os clássicos literários que você ouviu falar toda a sua vida, mas nunca leu.” Já depararam com uma frase assim? Agora eu matei um desses clássicos: “Gulliver’s travels”, do irlandês Jonathan Swift (1667-1745): um dos mais antigos romances de ficção cientifica de que se tem noticia.
Não posso afirmar que seja, hoje em dia, uma leitura fácil. O autor não faz uso de diálogos e os parágrafos são imensos. O protagonista-narrador, Lemuel Gulliver (cirurgião e capitão de navios), apenas insere nos parágrafos narrativos, que ele ou outra pessoa disse isto ou aquilo.
Obra lançada em 1726 e hoje definitivamente incorporada ao imaginário da civilização, “Gulliver’s travels” só se pode entender considerando que, no início do século XVIII, o mundo não se achava completamente mapeado e, a rigor, a era das grandes navegações e descobertas ainda não se havia encerrado. O Novíssimo Continente (Austrália e Oceania) ainda era pouco conhecido, o continente antártico não havia sido alcançado e, com uma dose de licença poética, ainda se podiam escrever aventuras que imaginassem a descoberta de novas terras e raças na vastidão do Pacífico e do Índico.
O livro se divide em quatro partes. A fórmula é idêntica para todos: Gulliver navega, naufraga ou é abandonado e vai parar em terras estranhas. Na primeira viagem descobre Lilipute e Blefuscu, onde os seres humanos (e bem assim plantas e animais) são minúsculos. Na segunda vez chega a Brobdingnag, onde, pelo contrário, tudo é gigantesco. Na terceira parte descobre Laputa, Balnibordi, Gleibbdabdrib e Luggnagg, lugares onde a ciência se desenvolve de modo diferente. Finalmente, na quarta parte, Gulliver conhece a terra dos Houyhnhnms (não me perguntem como se pronuncia), cavalos civilizados.
Notável sátira política e social, “Viagens de Gulliver” como exemplar do gênero de aventuras abriu caminho para Edgar Allan Poe e Júlio Verne com as suas “viagens maravilhosas por mundos reais e imaginários”. A descrição de terras desconhecidas me fez pensar na “geografia oculta” que li num desses livros de teses exóticas, talvez “O despertar dos mágicos”, já não lembro. Tais idéias sugerem que a Terra seja muito maior do que supomos e que nela existam regiões interditas e não mapeadas, que não podem ser alcançadas porque os viajantes inconscientemente se desviariam delas. O mais provável, porém, é que Swift nem pensasse em tais coisas; o seu livro, ao imaginar a descoberta de novas terras, reflete a sua época, da mesma forma que Ray Bradbury, ainda na década de 1940, pôde escrever sobre marcianos.
Eis, enfim, como Swift descreve Brobdingnag (a terra do gigantismo): “A extensão total dos domínios desse príncipe é de 6.000 milhas de comprimento, mais ou menos, e de 3 a 3.500 de largura: donde não posso menos de concluir que estão grandemente errados os nossos geógrafos europeus quando supõem que só existe o mar entre o Japão e a Califórnia; pois sempre fui de opinião de que deve haver aí um equilíbrio entre eles para contrapesar o grande continente da Tartária.”
Há, nessa famosa obra, detalhes notáveis. Na parte referente a Laputa, Swift antecipou a navegação aérea ao imaginar uma “ilha volante” que se move graças à manipulação de um ímã: subindo, descendo ou pairando nos ares, ou movendo-se na horizontal — e isso, mais de 150 anos antes de Júlio Verne produzir “Robur, o conquistador”! Também se fala nos dois satélites de Marte, na época ainda desconhecidos! Mais: a ciência liliputiana identificara 93 planetas além dos então conhecidos — verdadeira premonição das futuras descobertas de planetoides!
Como se vê, os estudiosos da ficção cientifica têm em “Viagens de Gulliver” um prato cheio: um livro que surpreende por sua riqueza de conteúdo.