Bauman e os escritores, por José Castello no Prosa & Verso d’O Globo de 21.2.2015
Laços secretos unem a literatura à sociologia. Irmãs muito próximas, elas têm, porém, uma relação muito difícil. “Sua relação é uma mistura de rivalidade com apoio mú­tuo”, diz o sociólogo polonês Zyg­munt Bauman. A afirmação aparece em “Para que serve a sociologia?” (Zahar), longo diálogo entre Bauman e os sociólogos Michael Hviid Ja­cobsen, da Universidade de Aalborg (Dinamar­ca), e seu colega Keith Tester, professor da Uni­versidade de Hull (Inglaterra). Sou pego de sur­presa: em algumas páginas, e apesar do título do livro, o sociólogo trata intensamente da literatu­ra. Não esconde sua paixão pelas ficções e a se­gunda verdade que elas sustentam. E mostra co­mo ela alimenta seu processo de trabalho.
  Pensem em autores tão diversos como Balzac, Dostoievski, Zola e Kafka. Sem se valer de sistemas conceituais, ou de armaduras teóricas, suas narra­tivas, ainda assim, compõem eloquentes visões de nosso mundo. Bauman se apega a outros autores ainda mais surpreendentes: Borges, Perec, Musil, Houellebecq. Por caminhos distintos, todos eles rasgam a grossa cortina com a qual, quase sempre por descaso, por vício, por preguiça —, encobri­mos a realidade. Apoia-se Bauman na leitura de “A cortina” (Companhia das Letras, 2006), o belo li­vro de Milan Kundera. Justifica essa escolha: “Kundera propõe que o ato de romper a cortina dos prejulgamentos foi o instante de nascimento da arte moderna”. Pode marcar, igualmente, o re­nascimento da sociologia.
Se a literatura nasce de um rasgão, a sociologia pelo menos aquela que Bauman pratica e aprecia nasce (ou deve nascer) também. Para defender sua tese, ele rememora as palavras de Kundera a respeito de Miguel de Cervantes: “Uma cortina mágica, tecida de lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina”. Com o Quixote, o mundo se expõe em toda a sua nudez. Os prejulgamentos desmoronam, deixando à mostra a bruta realidade das coisas. Daí, diz Bau­man, a importância de valorizar os “gestos destru­tivos” dos romancistas. Mais do que uma constru­ção, a literatura é um trabalho de desconstrução. De aniquilamento do óbvio. Ao romper a cortina mágica do consenso, os escritores “colocam em movimento o trabalho infindável da reinterpreta­ção”. Alerta Bauman: essa não é, porém, uma tarefa que se deve esperar só da litera­tura. “Realmente creio que é por fazer ou deixar de fazer esse tra­balho que a sociologia deve ser avaliada”.
  Reafirma Bauman, ainda as­sim, que “escrever um romance não é o mesmo que escrever so­ciologia”. São, em vários sentidos que incluem a técnica, os princípios conceituais e os mé­todos atividades absoluta­mente distintas. Mas o desejo de puxar a cortina para descobrir o que ela esconde as aproxima. Se praticadas sem apego a dogmas e sem medo de errar, elas guardam a mesma posi­ção de ruptura e coragem. “Elas têm pais comuns, apresentam uma inegável semelhança familiar, servem mutuamente como pontos de referência”. Tanto a sociologia como a literatura, Bauman prossegue, podem servir como padrões através dos quais medimos o sucesso ou o fracasso de nossas buscas existenciais. Dizendo de outra for­ma: se praticadas com liberdade, ambas têm (ou devem ter) o homem como fim.
  Curioso que os jovens escritores provavel­mente copiando o que fazem os jovens sociólogos estão sempre em busca de mandamentos que sustentem sua escrita. Esquecem-se de que o padrão (o parâmetro) não é um fim em si, mas apenas um meio.   O fim deve ser sempre o homem e apenas ele. Recorda Bauman que os grandes escrito­res procuram “a verdade da vida real” e não a “verdade absoluta”. Por isso, tanto eles quanto os so­ciólogos devem, em vez de visar o acerto e a perfeição, se expor a riscos e reconhecer a oscilação inerente ao conhe­cimento. Para isso, devem estimular em si mes­mos o desejo de “aprender sobre as alternativas que permanecem inexploradas, desprezadas, ne­gligenciadas ou ocultas de sua vista”.
  Tanto os romancistas quanto os sociólogos se pa­recem com os detetives. Estão muito distantes, con­tudo, da figura dos detetives clássicos, à moda do Poirot, de Agatha Christie. Aqueles que, ao fim da história, reúnem os personagens para lhes expli­car ponto a ponto, “tudo o que aconteceu”. Tanto a literatura quanto a sociologia deveriam saber que não existe essa verdade pronta, feita de paralelos e de encaixes, que o método de Poirot expressa tão bem. Essa verdade impecável que, como um para­íso, nos esperaria ao final da interpretação.
  Afirma Bauman pensando nos sociólogos, mas isso serve também para os escritores que não é possível trabalhar bem sem correr grandes riscos. E sem se desviar dos preconceitos. Adver­te: “O fracasso nessa vocação deixa apenas uma alternativa: uma oferta aos administradores de ajudá-los a tornar dóceis os administrados medi­ante sua desumanização”. Posição que ele define como “uma oferta tão fraudulenta quanto abo­minável”. Também os escritores, se pretendem apenas cumprir regras e agradar a agentes exter­nos, nada mais fazem do que desumanizar seu oficio. Nesse caso, eles o esvaziam do que ele tem de mais contundente: o poder de arrancar os véus das superstições (mesmo as “científicas”) para chegar à grande desordem do humano.
  A esse respeito, ele recorda as palavras do cien­tista social dinamarquês Torben Berg Sorensen, um grande leitor de Kafka, em cuja obra ele en­contra pistas para estudar o sistema judicial. Diz Sorensen, citado por Bauman: “A literatura nos permite seguir as pessoas a partir de dentro, en­quanto ela está agindo”. Não se preocupa, por­tanto, com um mundo “em tese”, mas com os de­sordenados eventos do real. Prossegue Soren­sen: “Por isso, a literatura cria um conhecimento que não se encaixa em esquemas de pensamen­tos existentes. Ela suscita problemas e faz per­guntas sobre o que existe”. Ficções são, por defi­nição, intermináveis. Também a sociologia, nos mostra Bauman, deveria ser praticada não como uma ciência “de resultados”, mas como um traba­lho sem fim. O homem está em contínuo e per­pétuo movimento e tudo o que sociologia e lite­ratura podem fazer é correr atrás dele.
 
 
 
                                                                                                                    
José Castello
Enviado por Germino da Terra em 23/02/2015
Reeditado em 26/02/2015
Código do texto: T5147656
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