JESUS, PARÁBOLA DE DEUS - CRISTOLOGIA NARRATIVA

[Resenha do livro que leva o título, cujo autor é Sinivaldo S. Tavares,

Editora Vozes, 2007]

Visando à facilitação e para evitar excesso de aspas ou referências, aliado ao fato de que não se aplica aqui a metodologia científica, há trechos quase que literais do autor de "Jesus, parábola de Deus", com pouca intervenção do autor e os números que aparecem entre parênteses correspondem à página.

Ao saber na primeira aula que Cristologia aborda o Jesus histórico que não deve se confundir com o Cristo da fé, estranheza me causou. Se Jesus é o nome da pessoa física; se Cristo não é parte do seu nome, mas a qualificação por excelência com que a História o consagrou; se Cristo é o Messias, o Ungido de Deus, o Salvador, algo estava desajustado no tocante ao nome da disciplina que aponta prioritariamente a Cristo e não a Jesus! Ao mesmo tempo, assaltou-me o pensamento a respeito da união hipostática (ainda bem que existem termos importados do grego ou do latim para dar sentido ao que nosso idioma não consegue definir com clareza meridiana) que impede a separação de ambos – Cristo e Jesus, inteiramente Deus e inteiramente humano. Portanto, ao separarmos Jesus de Cristo, entenda-se meramente para efeito didático e de ênfase à pessoa histórica ao par do Deus transcendente. Li, certa vez, que no idioma francês há um hífen – Jesu-Cristo e toda a Cristologia ocupou-se da explicação do motivo desse sinal gráfico. No idioma espanhol houve uma fusão – Jesucrito, (não sei de quem foi a explicação) ou seja, fez-se uma junção compondo um nome só: peculiar, singular, união vocabular hipostática. A língua portuguesa, “última flor do Lácio, inculta e bela” permite o uso de Jesus Cristo ou Cristo Jesus, como nomes próprios que se equivalem.

No livro, o autor Sinivaldo S. Tavares aborda esse aspecto que se refere ao nome Jesus Cristo: união entre substantivo e adjetivo. Jesus – substantivo, designando a concreta identidade, e, portanto, a singularidade do personagem histórico, enquanto o adjetivo “Cristo” título à confissão de fé relativa ao significado salvífico do personagem histórico de Jesus de Nazaré. (75) Comenta que ao assumir a condição do homem não o fez, apequenando o humano e a história e nem os anulou, pelo contrário, valorizou-os e os dotou de sentido teológico e salvífico. Imprimiu sinais de Deus que marcaram para sempre a história. As duas naturezas inseparáveis de Cristo: humana e divina representam a relação entre história e fé, formando a unidade na diversidade, indivisível apesar de distintas e cada uma a outra respeitando as especificidades numa solidariedade necessária recíprocidade. (82)

Enfim, viajei no pensamento e me inseri no contexto acadêmico onde os mestres procuram transmitir conhecimentos teológicos visando à formação integral dos alunos que algumas vezes, premidos pelas circunstâncias, estão mais preocupados em “obter notas de aprovação” do que em aprofundar os conhecimentos a respeito da Teologia e, especificamente, do Cristo do querigma, do Cristo da fé. Enfim, na desconstrução de muitos pensamentos adquiridos ao longo da minha vida católica apostólica romana, da catequese às homilias dominicais, percebi que poderia preencher esse vazio com uma formação mais sólida, adulta e mais científica, sem o exacerbado emocionalismo e fervor ditado pelos eventos religiosos midiáticos comandados por ídolos carismáticos que seduzem multidões carentes de consolo espiritual. Seja no âmbito neopentecostal ou mesmo no católico seja lá de que linha ou espiritualidade.

E, o pior de tudo, é que ao estudar Teologia percebe-se o enorme descompasso entre o que se ensina e o que se pratica. Bastante citar algo público e notório transmitido por uma emissora confessadamente católica: a devoção ao Divino Pai Eterno que representa um despropósito total - devoção a quem deve ser dedicado adoração, imagem que mais confunde do que explica (coitada da Professora Irmã Maria Freire e o seu ensino sobre a Trindade) e a instituição de prática que mais deseduca do que evangeliza. Triste saber que nada se faz por problemas de ordem financeira. É a Igreja se submetendo ao econômico praticado pelas grandes corporações que construíram um sistema de dominação totalizante e paralisante e que de tantas críticas são alvos ou deveriam ser de honoráveis purpurados. Aliás, são idos os tempos de embate, de enfrentamento, de críticas contundentes às políticas de opressão e repressão, promovidos pelos nossos bispos e cardeais que não temiam e não se deixavam subjugar pelos generais de fardas ou de poder político. Custa-me aceitar a docilidade de postura, por força das circunstâncias e alianças com o poder. Sinais dos tempos. Tristes tempos, sombrios sinais. Cristo ausente, sujeição presente! Igreja - presença atuante! Persistente! Condizente! Determinante!

Voltando à questão do Jesus histórico, ao ter a oportunidade de opção entre dois livros indicados pelo Professor de Cristologia, para abordar o conteúdo, definindo a forma de apresentação do trabalho, não tive dúvidas. Escolhi o livro Jesus, parábola de Deus ao qual já fiz referência. O título fez-me recordar uma citação do teólogo Manuel Hurtado, s.j. de que “Jesus é a parábola de Deus em pessoa, e anuncia-se igualmente através do ensinamento em parábolas”. A expressão usada como título encontra-se também nas páginas de Jesus, aproximação histórica, de José Antonio Pagola (Vozes, 2010), livro entusiasticamente recomendado e, com justa razão, pelo Professor. Encontrar Jesus é encontrar o Reino. Sem esquecer que para explicar o Reino, Jesus utilizava fartamente de parábolas.

Diante da liberdade permitida pelo Professor, uma elucubração: Vislumbro o cenário em que Jesus age diferentemente de João Batista por quem nutria grande admiração, indo ao encontro do povo mais simples, incluindo-se prostitutas e cobradores de impostos, ciente de ser portador da Boa Nova (14); enquanto aquele escolhera o deserto para ministrar a sua contundente pregação profética apocalíptica, com toda a rudeza de gestos e palavras fortes, anunciando a iminente vinda de alguém muito maior do que ele.

Correndo o risco de enveredar por um caminho espinhoso, lembro-me de alguns episódios da vida de Sócrates em que ele também ia perambular pela cidade de Atenas, na Grécia, onde se encontrava com pessoas e com elas estava sempre a dialogar, fazendo-as refletir pelo processo maiêutico e descobrirem a resposta que procuravam dentro delas mesmas ou, então, fazê-las concluir que não sabiam o que afirmavam saber. Sócrates, conforme alguns estudiosos, levava as pessoas a buscar a verdade e a paz e nelas aplicar todo o empenho de vida, fazendo-se felizes. Ambos iam ao encontro do povo. Sem qualquer indício de arrogância, com as pessoas se fazendo iguais.

Curioso é perceber que alguns afirmam que Jesus nunca existiu como realidade. Simplesmente é produto de engendrada ficção. Outros também sustentam que Sócrates não passou de um personagem criado habilmente por Platão que o construiu como seu mestre e protagonista dos seus diálogos. Sócrates nunca escrevera uma linha sequer. Jesus não deixou escrito algum. Sócrates morreu em face de um processo totalmente injusto cuja motivação mais refletia inveja do que qualquer crime ou infração. Com Jesus, então, nem é preciso mencionar as motivações que o levaram a pior das mortes – suspenso na cruz. Até a atitude de ambos em face dos algozes não foi lá muito discrepante, guardadas as devidas proporções e circunstâncias.

Construir biografia de ambos afigura ser tarefa inglória dada a precariedade de documentos e registros que os ligam ou fixam em contexto conforme as técnicas cientificamente adotadas pelos historiadores. Esta divagação é algo que me sobreveio durante a reflexão sobre a leitura de Jesus, parábola de Deus e, por mais insólita, pareceu-me que valeria pela curiosa semelhança e pela importância de ambos em seus mundos próprios e situações históricas peculiares a cada um. Inegável o impacto no tempo: a filosofia dividiu-se entre o pré-socrático e o pós-socrático. À história da humanidade atribuiu-se o a.C. e o d.C, a despeito da não aceitação de algumas civilizações que tentam ignorar ou impugnar a divisão, universal, preponderante em que Cristo é o centro. Afinal de contas, aproximadamente um terço da humanidade compõe-se de cristãos e, contra todos os prognósticos e o tempo decorrido, não foi apagada a figura de Jesus que continua viva, nem eliminada a influência em todas as áreas de conhecimento e em todas as instituições gestadas pelos homens.

No prólogo, o autor já sinaliza: o aspecto profundamente humano e realmente divino como reciprocamente implicados, a singularidade de Jesus e a peculiaridade de sua missão, as relações constitutivas da existência história de Jesus, o Reino de Deus – o Deus do Reino. (9, 10. Em relação a Jesus, ressalta o que Jon Sobrino afirmou: a impossibilidade de teologizá-lo sem historizá-lo. A fé ficaria sem história. Nem se pode historizá-lo sem teologizá-lo como a boa nova.(11)

O capítulo 1 é Jesus anuncia e torna presente o Reino de Deus . E, cá entre nós, o Papa Francisco, na sua exortação apostólica Evangellii Gaudium no número 176 afirma que Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. Não por acaso o Papa faz tal afirmação. Suscita-nos a mergulhar na profundidade dessa concepção e a dura exigência de uma atuação conforme o agir de Jesus. Ao par da alegria, justiça, misericórdia e caridade fazem-se imprescindíveis sob pena de um sentimento de contentamento supérfluo e volátil.

Em nada está condicionada a irrupção do Reino. Vinda de Deus é graça, é salvação oferecida a todos. Enquanto João Batista se retira ao deserto para pregar indicando que quem deseja ouvi-lo deve procurá-lo lá, Jesus vai às pessoas, certo de ser o portador da boa notícia. E se é boa é alegre. Corre riscos. É tachado de comilão e beberrão. O autor, no entanto, o define como Profeta da Alegria. Cada gesto, cada atitude revela traços inusitados do Pai, cuja ternura não tem limites. “O Espírito Santo está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para anunciar aos aprisionados a libertação, a recuperação da visão aos cegos, para por em liberdade os oprimidos”.(15) Esta declaração de Jesus deve ser entendida no contexto histórico conforme explicou o professor em sala de aula no dia 31/03/2014: presos eram os que tinham dívidas e não os que cometiam crimes; oprimidos eram os alvos da opressão dos poderosos; enfim, sempre o alvo são os pobres (aprisionados, oprimidos). E os sinais e milagres não serviam para mostrar poder, mas para significar o zeramento de determinada situação e iniciar uma vida nova, tudo empatado, sem vantagem e nem desvantagem.

Seguem-se concepções, contextos e circunstâncias históricas, apresentados no discurso do autor, com a adição de meus comentários:

Jesus mesmo se apresenta como o Emmanuel, o Deus-conosco. Sua palavra não é algo exterior a si próprio. Deus fala a partir de dentro da nossa história e da vida de cada um de nós. (21) Utiliza-se comumente de parábolas. Parábola evoca mais do que define. Acena mais do que delimita. Exprime atitude inclusiva. Jesus narra parábolas para desinstalar seus adversários do círculo vicioso no interior do qual se encontram aprisionados. Provoca a revisão dos pressupostos na interpretação da Lei e dos demais textos sacros conduzindo-os a uma maneira radicalmente diferente de se relacionar com Deus e sua palavra.(23) Acerca disso, faço o meu “mea culpa” pelas vezes que, na melhor das intenções, afirmei que as parábolas tinham uma finalidade essencialmente didática, explicação contrariada frontalmente pelo autor. Pagola, em Jesus, aproximação histórica, também registra a mesma concepção. Sendo ambos os livros de 2007, conclui que a origem desse pensamento tem origem na bibliografia comum em larga medida que aos dois serviram de consulta e subsídios, conforme conclui ao comparar.

Jesus se revela, paradoxalmente, como o radicalmente Outro e, por isso mesmo, revela-se simultaneamente como o intimamente próximo. (23) Não se confunde, mas mais próximo e íntimo se posiciona.

Coerência profunda entre gestos e palavras; anúncio e testemunho; coexistência entre gestos e palavras. (26) Coerência entre a ortodoxia e a ortopraxia como aprendemos no curso de Teologia.

Relacionamento com as pessoas. Diálogo com todos. Valorização de cada pessoa pelo que ela é. Em cada pessoa, um irmão. Nunca pressupõe nada. Respeita o ritmo do outro, mesmo moroso. Nos diálogos parte sempre da concreta situação nas quais se encontram. Não pressupõe nada. (28, 29, 30). Colocações que lembram algumas lições encontradas nos livros de autoajuda ou de liderança no mundo empresarial ou proferidas pelos consultores de administração de recursos humanos e outros que tais como “Nessa situação como agiria Jesus?”

Provoca a recuperar o direito elementar que lhe fora negado: o direito à própria expressão. Palavra estrangulada na garganta face às inúmeras formas de coerção. Recuperação da própria dignidade vilipendiada. Imagem cristalina de Deus impressa no âmago de cada pessoa humana. Quanto mais ferida, mais nítidos os costumes e os traços em relevo desta imagem de Deus que transparece no seu rosto desfigurado. A especialidade com o qual o Espírito Santo sustenta suas criaturas contra toda espécie de injustiça e de desumanidade. Ternura e cuidado para com os pobres e pecadores “eco do Magnificat”. (28, 29, 30) É de estranhar, diante de tantas evidências como as apontadas na prática de Jesus, o posicionamento cético de muitos que não querem enxergar a dimensão libertadora cristã, circunscrevendo-se apenas, apesar da inegável importância, à dimensão litúrgica e, por vezes, celebrativa com louvores e cânticos. Esquecem-se os que assim concebem, da necessidade das duas dimensões da cruz: a espiritual que nos liga ao Altíssimo e a social que nos liga antes aos irmãos e às necessidades deles que envolvem o engajamento social.

Provoca confronto sadio consigo próprios e os conduz a repensarem seus pressupostos e a revisarem aqueles preconceitos sobre os quais estava assentada a doutrina religiosa deles. (31) Jesus não condiciona seu perdão a nada. Estímulo que oferece ao pecador para que se converta e não volte mais a pecar.(34) Basta meditar sobre as parábolas para perceber todo esse posicionamento, mormente, a do conhecido “Filho pródigo” que seria mais apropriado designar como do “Amor do Pai ou Pai bondoso” conforme propõem alguns renomados teólogos.

Ousadia na relação com as mulheres: combate à estruturação machista, dialoga publicamente. Maria Madalena, Joana, Susana. Primeiras testemunhas da inaudita boa notícia da ressurreição do crucificado. (36 Também leva a pensar sobre o posicionamento da Igreja que, apesar de todas as evidências da prática de Jesus, persiste incólume no posicionamento de que às mulheres cabe participação ativa, porém longe dos ministérios ordenados, portanto, fora do reduto do clero. Rechaçam-se quaisquer tentativas de abordagem como temas de conferências, sínodos ou concílios, esquecendo-se de que quando se torna público e notório qualquer evento ou exigência, a Igreja e o seu magistério não devem se furtar ao debate e tomada de decisão. Já pensou se não houvesse atualmente, a presença e participação das mulheres nas comunidades católicas? Dá para imaginar o esvaziamento?

Crucifixão revela a vulnerabilidade do inocente (38). Fragilidade dos que se empenham por mais justiça e solidariedade entre os seres humanos. Realidade que precisa estar presente aos que se empenham pelas transformações estruturais que escravizam e empobrecem.

A morte não constitui algo que é acrescentado exteriormente à vida. É a coroação da vida, desabrochar de uma virtualidade que se encontra desde sempre hospedada no âmago da própria vida. Liberdade – atitude de Jesus em face da própria morte. Não delega aos algozes o poder de pronunciar a palavra derradeira. É ele mesmo que se entrega. É de imensa beleza literária que a morte encontra-se como que encolhido no útero mesmo de vida e lentamente, ela vai sendo gerada até completar-se o tempo de seu parto. Toca profundamente o espírito e acende a inteligência a definição extremamente objetiva e convincente de que a ressurreição é a resposta derradeira de Deus à morte provocada pelos algozes. Definição cabal e bastante por si só.

A dignidade do Crucificado. Venceu o mal com o bem. Por amor. A fidelidade e a solidão extrema de Jesus. “Agonia no Gólgota” – Pai afasta de mim este cálice (45). Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (40). Renunciar à própria condição para poder ir ao encontro do outro na sua irredutível diferença: o ser humano encurvado sobre si mesmo, vítima do próprio pecado (47). Ressurreição de Jesus e efusão do Espírito Santo. O “avesso da morte”: quem morre com Jesus “não permanece enroscado na malha da morte, mas ressuscita para a vida verdadeira. Cruz e ressurreição contempladas dentro de um mesmo horizonte, dimensões de um mesmo evento-histórico-salvífico – Intervenção do Pai (51). A experiência da ressurreição é histórica – fruto maduro de uma existência profundamente humana e histórica. A ressurreição é histórica por que possibilitou a inteira existência história de Jesus e a sua pregação fossem reinterpretadas e pudesse ser recuperadas no seu significado mais profundo.(56) A ressurreição suscitou história. Inspirou histórias novas.(57) Ressurreição é modo de Deus se relacionar com a história e o ser humano. (57). Excertos que revelam o evento, por um lado, triste e tenebroso, humanamente considerado; mas, religiosa, espiritual e historicamente o fato salvífico por excelência – o cume da Revelação e da entrega de Deus à humanidade, algo absolutamente impensável, portanto, inadmissível por ferir qualquer princípio lógico comum. Singular e peculiar, portanto. Confusão e loucura. Explicitação e salvação. Tudo junto. Divinamente humano. Humanamente divino. Mistério profundo.

A ressurreição como a última palavra de Deus sobre o julgamento de Jesus é a prova maior e determinante da verdade e autenticidade da existência histórica da pessoa de Jesus e do seu ministério.(51) Ideia retomada (53) afirmando a “definitividade e autenticidade” da vida e missão de Jesus, inseridas na história. No fundo, a ressurreição ultrapassa a história. Dela, no entanto, não se separa e nem se opõe, “irrompe como sentido pleno da história” sem desinteressar-se por ela ou a ela se contrapor. (57)

O Cristo cósmico. Lembra o período da apocalíptica que prevaleceu de 2 aC a 2 dC: novos céus e da nova terra e nós seres humanos novos. A História e o Cosmos inteiro serão transfigurados no Reino de Cristo, mediante ação do Espírito Santo que faz novas todas as coisas. Lembrei-me também da disciplina de Patrologia, especificamente sobre a apocatástasis de Orígenes de Alexandria, teólogo e filósofo neoplatônico (sécs. II e III d.C) que previa a restauração universal na plenitude dos tempos quando toda a criação seria santificada e salva, por inteiro, sem exceção. Tese combatida posteriormente pela Igreja, considerada antibíblica. Dizem alguns que esse pensamento pode ter-lhe custado a não canonização. Padre da Igreja fora dos altares.

Jesus Cristo e a comunhão trinitária. A relação de Jesus com o Pai e o Espírito Santo. A presença na aparente ausência, cada uma das pessoas na Trindade Santíssima.(64) Recordo-me das aulas da Professora Maria Freire sobre a Trindade e a valsa dançante pericorética com a troca constante de lugar, porém sempre de mãos dadas e unidas, entre os divinos três em indefectível geração constante.

Termo-chave “entrega”: Às entregas humanas e históricas do profeta galileu subjazem três outras misteriosas entregas: Judas entrega Jesus no Sinédrio. Sinédrio entrega Jesus a Pilatos. Pilatos entrega Jesus para ser crucificado. Três outras entregas: O Filho de si, expressão do amor obediente e solidário; o Pai entrega seu filho, como prova de amor pelo ser humano; entrega conjunta que Pai e Filho fazem do Espírito Santo com dom oferecido por ambos à inteira humanidade.(64) Aqui, cabe bem lembrar aplicável analogamente ao termo “chave” um pensamento de D. Hélder Câmara: Dividir, como pode a mesma expressão ser tão diabólica e divina ao mesmo tempo?

Reconsiderar a inteira história de Jesus. Perspectiva trinitária nos relatos da Anunciação, do Batismo, das tentações e da transfiguração (Espírito Santo é o protagonista). Não menção explícita do Espírito Santo mas implícita na nuvem que os cobria com sua sombra. Da nuvem saía uma voz: Este é meu Filho.(68) Deus comunhão que se revela na diversidade dos divinos três: Pai, Filho e Espírito Santo. Reconciliação da inteira criação. Não há como falar de Jesus, sem falar do Cristo. Não há como falar do Cristo, sem falar de Deus Pai a quem tanto agradecia e fazia referência. Não há como falar do Filho e do Pai, sem falar do Espírito Santo. Não há como falar do Deus dos cristãos desconectado da perspectiva trinitária. Trindade é realidade divina, misteriosamente divina. Ao par da Trindade, lembremo-nos, de que não se pode esquecer de Maria de Nazaré, a mãe biológica de Jesus que, por livre opção, estendeu sua maternidade ao Deus Filho – Theotokos, a despeito de protestos.

A Cristologia tem primariamente como objetivo um aprofundamento da experiência de um encontro não só pessoal, mas também comunitário com Jesus. Essa personalidade histórica que se revelou como o Senhor da História e da Vida, abrangendo toda a criação. Personalidade misteriosa, única que a fé busca compreender conforme buscava Santo Anselmo. (71) Não há como, para melhor conhecê-lo, não se pode fugir dos Evangelhos e neles buscar registros históricos. Fora dos Evangelhos, há total insuficiência. Ao lê-los, o próprio Jesus deixa uma pergunta instingante que, até hoje, soa forte em nossos ouvidos que, muitas vezes, se fazem moucos, porque não convém responder sob pena de descobrirmos quão distante estamos daquilo que sabemos ser exigência de uma vida cristã que comporta não só a alegria, mas o compromisso de criar condições de dignidade em todas as dimensões vivenciais. Quanta escuridão, pó amontoado sob o tapete, teia de aranha nos cantos do nosso ser e da nossa biografia que nos afastam da luz que Ele afirmou e afirma ser! A pergunta persiste: Quem as pessoas dizem que eu sou? As respostas estão sendo oferecidas pelos gestos e atitudes da terça parte do mundo atual que se afirma cristã. Respostas ora firmes, ora titubeantes, mais tímidas do que extrovertidas.

Aceitar a existência do Jesus histórico e resgatá-la propicia condições de experiência contemporânea entre Jesus e nós o que nos possibilita experiênciá-lo presente entre nós, agindo no e mediante seu Espírito, muito além dos condicionamentos do seu tempo. (83) Só é possível a contemporaneidade conosco por ele ter vivido intensamente cada segundo da sua vida ordinária e circunstanciada. Jesus Cristo, obra e vida, gestos e ensino, realidade que encantou aos que deixaram tudo para seguí-lo e ainda hoje desperta interesse.(84) Evidencia-se assim, a importância da Cristologia a quem busca aprofundar a vivência da fé madura e responsável, sem se deixar influir pelos arroubos próprios dos encontros carregados de emoção e louvores ardorosos que nos transportam ao sublime clima dos tempos escatológicos onde haverá a plenitude do Paraíso.

O autor ainda ressalta a necessidade de escutar mais do que falar; resistir às indagações do “como”, da causalidade ou da funcionalidade que estão na raiz da ciência ou técnica; difícil arte de se exercitar na escuta que propiciará a experiência da contemporaneidade entre nós e Jesus Cristo apesar da distância dele e de seu mundo. (85) Bem se vê a dificuldade que nos cerca, dada a curiosidade do nosso espírito de sempre buscar saber as razões e o fato gerador de qualquer evento ou realidade à nossa volta. Em termos de conhecimento cristológico, dada a especificidade do objeto, são outras as demandas e exigências que nos são apresentadas “a priori”. Haja vista que nem mesmo a história consegue abraçar sozinha a integralidade do Mistério de Jesus Cristo. (80) Lembrei-me do que aprendemos em Deus e Criação, com o Professor Frei Osmar Cavaca de que, modernamente, fala-se em salvação da história em contraposição aos textos fundadores da fé que se referiam à história da salvação. Há intrínseca solidariedade entre história e fé. O próprio Jesus pertence à história não só porque viveu, morreu e ressuscitou, mas também porque o anúncio das primeiras comunidades cristãs a seu respeito suscitou história. Após a experiência da ressurreição de Jesus e a efusão do Espírito Santo resgatou-se a memória de Jesus, recuperando os respectivos elementos históricos da sua pregação e mensagem. (80, 82)

Jesus Cristo é essa personalidade, protagonista da obra do frei Sinivaldo S. Tavares que, na primeira leitura, pareceu exagerar na utilização de dois adjetivos e substantivos: peculiar e singular, peculiaridade e singularidade. Ao reler e refletir mais longamente acerca do fato observado, essa impressão aparentemente depreciativa, transmudou-se adquirindo uma força estilística de grande riqueza que me levou a buscar o sentido dado pelos dicionários aos dois vocábulos. Explicam os dicionários que singularidade é o que é peculiar a um só indivíduo e não aos outros. Essa definição revela o acerto do autor. A propósito, lendo o capítulo II da Constituição Dogmática Lumen Gentium que aborda a questão do Povo de Deus, para um trabalho de Eclesiologia, percebi também o uso dos vocábulos por causa da aplicabilidade ao contexto cristológico. Nada mais apropriado, então, à figura de Jesus e a sua missão aplicarem-se as palavras tão singulares e peculiares, com o perdão do trocadilho!

Jesus, realmente, foi e é único, tem relação única com o Pai que é único, ao par do Espírito Santo que único também é. E tantas outras palavras e atitudes proferidas ou tomadas por Jesus que se apresentam realmente singulares e peculiares: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; Eu sou a luz do mundo; Minha vida ninguém a tira, sou eu que a dou; Eu e o Pai somos um; Tua fé te salvou e tantas outras expressões que escandalizavam os que o assistiam nas pregações e curas. Surpreendem, sobremaneira, as palavras e as obras de Jesus. Ele empolga, provoca, cativa, assusta, desconcerta, mostra autoridade nas atitudes que assume diante das circunstâncias as mais diversas.

Refiro-me a Jesus, ao ser histórico que tinha esse nome, que viveu e cresceu em Nazaré, na Palestina do século primeiro, cuja existência determinou novo calendário que até hoje persiste. Por si só isso bastaria para ratificar o acerto no peculiar emprego daquelas palavras comentadas em obra tão singular. Ainda aplicáveis os vocábulos à pessoa de Jesus por se referir a um só ser que apresenta traços únicos, invulgares, extraordinários, raros além do que “tudo que é novo, tudo o que desafia, tudo que foge do convencional é singular e, portanto, um desafio à ciência”. Para completar há observação de que “toda singularidade deve ser levada a sério, pois é ela que inova conceitos, leis, métodos e regras”.

A construção paralelística envolvendo “a fidelidade/ desígnio amoroso à vontade do Pai com a solidariedade incondicionada/amor desinteressado” aos homens é também reiteradamente utilizada pelo autor conforme se encontra nas páginas 40, 42, 42, 43, 44 e 47. Atitude de Jesus sempre observa essas duas dimensões: fidelidade ao Pai e solidariedade aos irmãos, concomitantemente.

Além dessa peculiaridade observada na redação do autor, outro fato que chamou atenção foi a repetição quase que literal do texto que se encontra nas páginas 53, no terceiro parágrafo e no segundo parágrafo da 54: Foi ainda graças à ressurreição que os gestos e as palavras de Jesus foram extraídos de uma certa aura de obscuridade e ambiguidade próprias da condição humana, assumindo na sua radicalidade por Jesus. Foi a ressurreição, enfim, a criar aquele horizonte de sentido no interior do qual cada gesto de Jesus assim como cada palavra sua adquirissem real significação. Semelhantemente ao uso insistente daquelas palavras, justificável plenamente é a duplicação apontada. Visa ao reforço dobrado da ideia que o autor desejou registrar.

Lendo Jesus, parábola de Deus, lembrei-me também da explicação em sala da aula de Sinóticos, pelo Professor Padre Cézar, de que os evangelhos foram escritos a partir da ressurreição e não a partir do nascimento de Jesus, esta parte foi escrita posteriormente. A partir do evento pascal as primeiras comunidades revisitaram a vida de Jesus, estudando com maior profundidade cada palavra, cada ensino, cada atitude, ressignificando-os sob o enfoque da ressurreição. Não fosse esta, em branco, passariam as cenas e os fatos pretéritos como ocorrido com outros tantos pregadores que pululavam na época e dos quais pouco ou quase nada restou. Com Jesus, tudo foi único e singular e peculiar em face do seu modo extraordinário de pensar e agir.

A sociedade e seu esquema mercadológico impõem aos incautos consumidores, nele incluído o povo de Deus – os batizados em nome da Trindade Santa, o Natal como a festa maior do cristianismo. Há muito mais brilho, luzes, música e clima festivo natalinos do que nos dias santos em que se celebra a Páscoa, esta sim, o ponto mais alto da fé cristã. Investe-se no Natal do Menino Deus Jesus muito mais do que na festa do Ressuscitado. Enfim, é de se lamentar e procurar instruir o povo fiel a sopesar os fatos dando-lhes o devido valor.

O conhecimento desse Jesus que a tantos conquistou para nós que cremos é importantíssimo, para que não incorramos em seguir alguém que foi produto de um mito, sendo a encarnação, uma empulhação.

Há o alerta sobre o risco de construirmos a imagem de Jesus a nosso bel prazer, regido apenas pelo desejo e intuição, afastando-nos do Jesus da história que conviveu com os primeiros discípulos a quem o ensinamento ministrado tinha lá suas exigências. No fundo mesmo, cada um tem a imagem de Cristo associada a uma personalidade por quem nutre grande e merecida admiração, seja Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Teresa de Calcutá, Oscar Romero, D. Helder Câmara, D. Luciano Mendes de Almeida. (76/77). A despeito da importância notória de todos os citados, por ter conhecido pessoalmente e com ele dialogado em algumas ocasiões, identifico-me bastante com D. Luciano Mendes de Almeida – simples, humilde, defensor dos pobres e oprimidos, grande articulador de algumas Conferências Episcopais, irrompendo em face das circunstâncias como o aglutinador e mentor das corajosas propostas, como aconteceu em Puebla de los Angeles, após uma lambança do Cardeal Trujillo (“encarregado oficial”) no distante 1979 que o obrigou ao isolamento pela publicidade dada a declarações injuriosas sobre colegas do bispado que participavam da Conferência em diário de grande circulação. Estava do outro lado da fita em que fora gravada a entrevista “oficial”. Furo de reportagem, engavetando-se a entrevista oficial. Relato de lembrança indelével de parte de um seminário apresentado na disciplina Pastoral de Conjunto, do Professor Cônego Sérgio Conrado.

O estudo da Cristologia não se resume a Jesus. Isso a desfiguraria. É o estudo sobre Jesus na perspectiva do “ser” messiânico, do Cristo. Enfim, sem delongas, Cristologia tem por objeto de estudo Jesus Cristo – homem e Deus; núcleo da fé cristã.

Uma constatação: A fé dos cristãos, inclusive dos católicos é no fundo, monofisista, a despeito do aprendido acerca das diversas heresias que propunham pensar Jesus não humano, mas totalmente divino. São muitos os que têm dificuldade até hoje de conceber o Jesus como verdadeiramente homem. E, com a ressurreição então, a humanidade de Jesus há muito foi descartada. Não há condições de entender, diante de fato tão extraordinário, que o Jesus verdadeiramente homem seja real. Inconscientemente atribui-se apenas aparência à humanidade de Jesus.

É comum a expressão de que Jesus agia assim, suportava tal situação, pois era Deus. Não fosse Deus, seria impossível. Além do que, sendo Deus nada podia ser insuportável a ele e nem fora da sua onisciência. Nem precisava ser glorificado depois da ressurreição. Em outras palavras, deleta-se a humanidade de Jesus, deixando prevalecer apenas o divino. Difícil a alguns aceitar que o que Jesus pregava – o Reino de Deus, as obras que construía eram vinculadas a sua pessoa e delas não podia ser separado por ser uma realidade peculiar e singular.

O autor demonstra que o Cristo da fé cristã é o próprio Jesus que figura nos evangelhos. Impossível reconstituir fielmente uma biografia de Jesus, posto que as narrativas evangélicas tinham outro objetivo - elaborar e sedimentar o Cristo! Nem poderia ser diferente, sob pena de se constituir em compêndio de história, sem qualquer implicação teológica!

Epílogo

Jhonathan Gerver em “Minha última parábola” poema de tocante singeleza e profundidade encerra magistralmente o livro.

Sem querer desconstruir a inspiração poética que jorrou por inteiro, destaque faço à: preguei minha última parábola sendo nela pregado.

Por fim aqueles que me procurem na partilha, encontrar-me-ão na profundidade mais íntima de si mesmos, da humanidade e da criação de meu Pai.

Sem o pão, sem o irmão, impossível ser cristão! Rima pobre, conteúdo nobre!

A última parábola com sangue escreveu e pede a nossa participação, a nossa solidariedade, a nossa total entrega como gesto de solidariedade que ensinou em todas as relações constitutivas de sua existência.(88)

Aproveito o versículo de Jo 21, 25 tomado como referência no epílogo, sobre o tamanho que apresenta um tanto excesso de linhas. Culpa de Jesus e “as coisas” que fez que, conforme João, se escritas o mundo seria biblioteca insuficiente para guardar tantos livros.

Vem, Senhor Jesus!

Oh Cristo!

Amém.