Sob as vestes da virtude [O vermelho e o negro]

Ao fazer a crônica dos costumes da alta sociedade francesa logo após Napoleão, Stendhal também, inevitavelmente, escancara aquilo que ela tinha de mais cínico e caricato. Embora muito se fale a respeito da exagerada ambição de Julien Sorel, o personagem que dá vida a “O Vermelho e o Negro”, é à hipocrisia que se deve atribuir o desenrolar dos acontecimentos no livro. Nessa sociedade marcada pela dissimulação, em que o próprio amor só é conquistado à custa de intrigas, desempenham papel importantíssimo as instituições religiosas.

As que o autor descreve estavam de tal forma desvirtuadas de seus propósitos originais que Julien não vê nelas senão uma oportunidade para fazer fama e fortuna. É por isso que, mesmo sem sentir nenhuma inclinação, decide se fazer padre. Todo o livro é um embate de aparências e, no que toca à fé, é possível constatar exemplarmente a diferença entre as manifestações exteriores de religiosidade e a devoção genuína. Aquilo que Julien faz em sua vida religiosa, sob o aspecto de retidão, não é mais do que buscar galgar para si posições privilegiadas.

Não há virtude em, meramente, ir para o seminário, vestir uma batina negra, sequer em saber a Bíblia de cor – todas essas coisas Julien faz com excelência, sobretudo porque causam grande impressão entre aqueles que deseja influenciar. Consciente de sua falsidade, ele ainda precisa lidar com padres que, em sua maioria, estão eles próprios imbuídos nas mais diversas intrigas, em busca de riquezas, promoções ou prestígio para as ideologias de que compartilham. Seus colegas de seminário, por sua vez, estão satisfeitos por terem se livrado de uma miséria certa.

Ora, não é de se estranhar que, neste ambiente, Julien desse bem pouco crédito ao Deus que fingia acreditar. Ao cabo de sua vida, abreviada em consequência de seus amores pela senhora de Rênal e por Mathilde, Julien se dá conta: “Por toda parte a hipocrisia, ou pelo menos o charlatanismo, mesmo entre os mais virtuosos, mesmo entre os maiores”. E se questiona onde estará efetivamente a verdade. Cogita a possibilidade de estar na religião, mas logo descarta essa ideia com desprezo – suas experiências impedem qualquer conclusão nesse sentido.

E, no entanto, ele deseja acreditar: “Ah, se houvesse uma verdadeira religião…”. Reconhece que “o homem não pode confiar no homem”, mas, para que se rendesse à ideia de um Deus que o transcendesse, seria preciso encontrar “um padre de verdade”, capaz de reunir as almas brandas do mundo, livrando-as assim do isolamento. Esse padre, contudo, teria dificuldade em falar sobre o Deus da Bíblia, associado profundamente por Julien à ideia de vingança. Ele tem mais simpatia pelo “Deus de Voltaire”, esse sim tido como bom, justo e infinito…

A imagem que tem dos religiosos em geral não é, certamente, nem um pouco favorecida pelo padre que, já no final do livro, pede que Julien se converta “com alarde”, julgando que assim seria mais fácil usar a influência da igreja em favor da sua causa. Julien gostaria de acreditar nesse Deus, mas como acreditar “depois do horrível abuso que nossos padres fizeram dele?”. De maneira semelhante aos escribas e fariseus admoestados por Jesus, eles fecharam a Julien o reino dos céus: nem eles entraram, nem deixaram que entrasse o que estava entrando.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 24/08/2015
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