Humberto de Campos: "Um sonho de pobre"

HUMBERTO DE CAMPOS: UM SONHO DE POBRE
Miguel Carqueija


Resenha da coletânea de crônicas “Um sonho de pobre”: W.M. Jackson Inc. Editores (S.Paulo, 1960) – volume 12 das obras completas de Humberto de Campos.


Jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras, Humberto de Campos, falecido em 1934, com apenas 48 anos, foi especialmente um cronista, e dos melhores que o Brasil já teve, ainda que melancólico e conformado com a sua triste sorte. Pobre, doente, humilde, solitário, quase cego em seus últimos anos, deixou uma grande quantidade de crônicas humanas, escritas em estilo singelo e coloquial, publicadas em jornais e depois reunidas em livros, inclusive volumes póstumos como este. Também assinou contos e resenhas literárias, além de livros de memórias, mas nenhum romance. Ele mesmo se considerava um literato de menor categoria, que nem era citado pelos seus colegas da ABL.
“Um sonho de pobre” é uma compilação de 39 crônicas, todas interessantes, a lamentar que a editora não tenha se preocupado em colocar informações sobre a publicação original de cada uma delas, na imprensa, e à data em que saíram.
Os assuntos tratados são muitos, perpassados de suaves ironias. Chamou-me especial atenção “A morte do profeta gentil”, refere-se Campos ao curioso encontro que teve (na qualidade de repórter da “Folha do Norte”), em 1910, com certo José Antônio Picanço Diniz, quando este era Secretário da Fazenda no Pará. O encontro deu-se no palácio do governo estadual e o Sr. Picanço, que além de funcionário público era quiromante, teve a sua atenção despertada pelas mãos do escritor, pegou-as e fez uma leitura voluntária e gratuita delas, observando: “Menino, você sabe que há de ser muito rico?” E acrescentou: “A sua fortuna não é para agora: é para o fim da vida... Primeiro terá que sofrer muito, que vencer muitas dificuldades; mas depois virá a fortuna...”
E o que teve Humberto de Campos a dizer sobre esta profecia, escrevendo já em 1934, portanto o ano de sua morte? Eis:
“Vinte e quatro anos rolaram, já, sobre essa leitura amável das minhas mãos, feita espontaneamente por um homem de situação e responsabilidade. Por mais de uma vez, nas minhas quedas e nos desânimos que acompanhavam os meus insucessos, me lembre da profecia do secretário da Fazenda do Pará. E confesso que, quase sempre, essa lembrança foi, para mim, uma espécie de bastão que me fosse oferecido pela Esperança. (...) Por muitos anos fiquei sem notícias de Picanço Diniz. Quando Gastão Cruls o descobriu em Óbidos em 1928, tive uma idéia de escrever-lhe uma carta lembrando-lhe as palavras de quiromante e perguntando-lhe pelo dinheiro. Adiei, todavia, a consulta, e continuei a esperar. A velhice (sic; Campos viveu só 48 anos) saiu ao meu encontro, cumulou-me de achaques, turvou-me a vista, sobrecarregou-me de enfermidades graves. E é quando chego ao fim da viagem que leio a notícia da morte do meu profeta de 1910, sem que se tivesse cumprido, mesmo parcialmente, o oráculo generoso.”
Todavia o cronista não demonstra raiva ou ressentimento por tal logro: “A esperança do repouso tornou mais suportável o tormento da realidade.” “Devo-lhe o preço de uma ilusão.”
Bem recomenda a religião católica, não emprestar crédito a tais adivinhações do futuro...
Em “Pro domo mea...” e “Visita de irmãos” o autor digressa sobre os professores cegos do Instituto Benjamim Constant e suas agruras, pois o governo revolucionario de Getúlio Vargas (não mencionado nominalmente no texto) cortara parte de seus vencimentos. Sem ter a capacidade de escrever textos indignados, Campos mais lamenta que denuncia:
“Os cegos do Instituto não me procuraram, nem me procurarão, para encarregar-me da defesa dos seus interesses. Eles sabem que estou a caminho da casa deles, como companheiro para o resto da vida, e preferem esperar por mim a sair ao meu encontro.”
Campos já se conformava com a cegueira que batia à sua porta; creio porém que morreu antes que ela se tornasse completa. Sua resignação é patética:
“Atenda, pois, o Governo, o pedido dos cegos. E não me desanime, a mim, que estou velho, já, para aprender a fazer vassouras...”


Rio de Janeiro, 27 de agosto de 2015