Estação de Trânsito - Clifford D. Simak

ATENÇÃO - "MUITOS" SPOILERS!!

- Um Bucólico Espacial de Simak -

(Resenha incluída na edição nº 108 do fanzine Somnium)

Way Station (1963), ganhador do Prêmio Hugo em 1964, até onde sei nunca foi editado no Brasil. Em Portugal, recebeu tradução de Gilberto Almeida e foi publicado pela Argonauta (volume nº 130-A), aparecendo depois como o título nº 200 da Coleção Vampiro, em edição dupla com o romance policial O Caso da Vela Torcida, de Perry Mason. De Clifford Simak, eu havia lido apenas Boneca do Destino e, em seguida, Cidade. Gostei muito do primeiro livro, mas a paixão pela escrita de Simak surgiu com intensidade a partir da leitura do segundo. Cidade fez com que em me interessasse muito pela obra do autor. Pesquisei na internet e descobri que a coleção Argonauta publicou vários de seus romances. Também fiquei sabendo que, na opinião de muitos, Way Station disputa com City o título de obra mais relevante deste escritor.

Após muito procurar, consegui adquirir um exemplar da publicação feita pela Coleção Vampiro. Dizem, aliás, que o volume 130-A da Argonauta é muito mais raro, quase uma lenda, e que quem o possui teria uma verdadeira preciosidade em sua biblioteca. Hoje sou mais um dos que pensam assim. Seja pela raridade, seja pela qualidade da obra, Estação de Trânsito é, de fato, uma preciosidade literária.

Enoch Wallace era um veterano da Guerra de Secessão norte-americana, que passou a morar sozinho após a morte dos pais. Em determinado dia, ainda jovem (tinha cerca de trinta anos de idade), recebeu uma insólita visita em sua fazenda. O forasteiro tinha uma aparência incomum, de uma estranheza que chegou ao ápice no momento em que a roupagem humana da criatura começou a ser descortinada. O rosto do ser abriu-se, revelando uma face alienígena que causou espanto aos olhos de Enoch. A criatura, no entanto, era amigável e conseguia falar o idioma nativo com alguma clareza, tornando possível a comunicação entre ambos. Seu nome era impronunciável, por esta razão Enoch lhe pediu permissão para chamá-lo de Ulysses, explicando-lhe a origem do nome. O alienígena gostou do que ouviu e assentiu em ser assim chamado.

Ulysses, porém, não viera apenas para uma mera visita. Ele trazia uma inusitada proposta da Central Galáctica, entidade para a qual trabalhava. Os responsáveis por ela pretendiam transformar a casa de Enoch em uma espécie de estação de trânsito, por intermédio da qual habitantes dos planetas civilizados da Via Láctea transitariam durante suas viagens pelas estrelas. O lar de Enoch seria equipado com todo o aparato tecnológico necessário para receber e despachar os viajantes, servindo como escala nestas jornadas. Enoch, por sua vez, seria o encarregado desta estação de trânsito sui generis.

Passado o susto inicial, a proposta foi aceita e o alienígena Ulysses, com o tempo, tornou-se seu amigo.

Enoch passou a manter um diário detalhado sobre cada evento por ele presenciado, discorrendo sobre as visitas recebidas, suas impressões acerca dos visitantes e o que eles contavam sobre as particularidades de seus planetas de origem. Dentro da estação, ele não envelhecia nem sequer um minuto, o que lhe causou um problema: com o correr das décadas, sua eterna juventude passou a ser objeto de estranheza pelos moradores das propriedades vizinhas, obrigando-o a se tornar cada vez mais recluso. Ainda assim, a fama do homem que passara dos cem anos de idade mantendo a aparência de um jovem acabou chegando até entidades governamentais, despertando a curiosidade do Serviço Secreto, em especial do agente Claude Lewis. A partir de então, Enoch passou a ser vigiado.

Neste ponto, creio ser importante fazer um alerta aos que leem este texto: ele revela diversos detalhes da trama que alguns leitores podem preferir não conhecer. Sugiro, portanto, que leiam o restante apenas se não se importarem com o excesso de revelações.

A solidão de Enoch, intensa, emociona o leitor. Como responsável por uma estação de trânsito galáctica, ele recebia muitos passageiros, os mais diversos e inimagináveis seres alienígenas, porém eram quase sempre visitas rápidas. Além disso, a dificuldade de interação entre as espécies era muito grande. Enoch pouco saía da estação. Fazia apenas um pequeno passeio diário e ia até a agência de correios local para retirar os periódicos que assinava, como única forma de se manter informado sobre o que acontecia em nosso mundo. Winslowe, o carteiro, tornou-se um de seus poucos amigos, o único ser humano com quem conversava com habitualidade. A outra humana com a qual mantinha contato era Lucy Fisher, a filha surda-muda do fazendeiro vizinho. Enoch e Lucy entendiam-se graças a uma afinidade silenciosa. Havia uma ligação especial entre eles. Comunicavam-se pela troca de olhares, às vezes quase por telepatia. Dentre os amigos alienígenas, além de Ulysses, merecem destaque os representantes de uma espécie que ele chamava de Hazers, seres extremamente amigáveis que projetavam uma aura colorida à sua volta, emitindo energias de pacificidade e amizade.

Lucy Fisher parecia ter poderes que excediam a compreensão humana. Foi capaz de curar uma borboleta que tinha uma asa partida, sem lançar mão de qualquer medicamento ou procedimento específico. Para realizar tal proeza, usou apenas uma espécie de energia espiritual (pelo que fica subentendido, sua pureza). Ela também foi capaz de colocar em funcionamento um misterioso aparato alienígena, uma pirâmide formada pela junção de diversas esferas coloridas e cintilantes, presente que Enoch ganhara há muitos anos e que jamais imaginara qual seria sua utilidade. Era, porém, a bondade de Lucy, assim como sua conexão com a Natureza, que a faziam tão especial. A garota parecia estar sempre em contato com algo sublime.

“Lucy era um ser dos bosques e das colinas, da flor da Primavera e do voo dos pássaros no Outono. Conhecia estas coisas, vivia com elas, e era, de um modo algo pessoal, uma parte específica delas. Era alguém que habitava à parte um velho e perdido compartimento do mundo natural. Ocupava um lugar que o Homem de há muito abandonara, se é que, de facto, algum vez lhe pertenceu.” (página 44)

Durante a obra, fica clara a preocupação de Simak com o futuro da humanidade e com a questão da espiritualidade. Ele questiona a razão de estarmos aqui e parece espelhar nas preocupações de Enoch suas próprias inquietudes. Quando Enoch reflete – e esta obra é essencialmente reflexiva – acredito ser Simak que está refletindo e manifestando suas preocupações e pesadelos. Em determinado momento, ele discorre sobre um complexo mecanismo conhecido como Talismã, por intermédio do qual seria possível realizar contatos com a força espiritual que governaria a galáxia. Parece-me – não estou certo – que o autor desenvolveu o assunto mais profundamente em outra(s) obra(s). Há um livro de sua autoria, inclusive, chamado A Irmandade do Talismã, publicado pela Argonauta na edição nº 294. Este engenho ainda voltaria a ser assunto na parte final da trama, cujo desfecho não convém revelar, pois isto macularia ao menos parcialmente o prazer da leitura.

“Ele sentiu que estremeceu ao pensar nisso – o puro arrebatamento de tocar a espiritualidade que inundava a galáxia e, sem dúvida alguma, o Universo. Isso seria uma garantia, pensou, uma garantia de que a vida ocupava um lugar especial no grande esquema da existência, de que qualquer pessoa, por muito pequena, fraca, ou insignificante que fosse, podia mesmo assim contar para alguma coisa na imensidão do espaço e do tempo.” (página 83)

A solidão fez com que Enoch criasse amigos imaginários, espécies de hologramas fabricados com tecnologia das estrelas, mas que pareciam feitos de carne e osso. Dentre estes, merece destaque Mary, uma espécie de mulher ideal para o protagonista, uma junção de Lucy com uma bela garota que Enoch conhecera apenas de relance nos tempos em que era soldado. E então o inevitável acontece: Enoch apaixona-se por sua Monalisa. A boa surpresa é que seu amor é correspondido. Entretanto, o relacionamento entre o ser real e a criatura imaginária (mas que se sentia plenamente viva) chegou a um ponto de inevitável ruptura. Simak discorreu com maestria sobre toda a carga emocional que o fim do relacionamento causou.

“Mary nunca mais voltaria, nem ele tornaria a chamá-la, ainda que pudesse, e tanto o seu mundo irreal como o seu irreal amor, o único amor que já verdadeiramente tivera, desapareceriam para sempre.” (página 89)

Por várias décadas, a rotina de Enoch como administrador/encarregado da estação pouco se alterou, porém seus aprendizados foram imensuráveis. Dentre os fatos marcantes, o falecimento de um Hazer dentro da estação. Seguindo orientações da Central Galáctica, Enoch adotou um procedimento padrão da Terra no caso de óbitos, enterrando o viajante em sua propriedade, com todas as honras, ao lado dos corpos de seus pais. Anos depois, todavia, o investigador Claude Lewis desenterrou o corpo do alienígena, subtraindo-o, atitude que deu início a uma discórdia entre as espécies que compunham a Central Galáctica, um desentendimento de grandes proporções que poderia por fim não apenas à única estação de trânsito da Terra, mas também, para desespero de Enoch e Ulysses, a todo o projeto de expansão das estações no braço espiral da galáxia. Neste ponto, cumpre observar que a obra foi escrita entre fins dos anos 1950 e início da década de 1960, época na qual começava a se desvendar a existência de braços espirais na Via Láctea. Provavelmente, Simak referia-se à ramificação de Órion.

Simak parece ter escrito a obra sob uma forte influência dos horrores da Segunda Guerra Mundial e do ambiente tenso da Guerra Fria. O personagem principal – um veterano da Guerra Civil norte-americana, como mencionado no início deste texto – em dado momento viu-se diante da iminência de outro conflito, de proporções mundiais e potencialmente muito mais danoso do que aquele do qual participara. Utilizando um complexo mecanismo estatístico criado por especialistas alienígenas, Enoch descobriu que a Terra estava a caminho de um devastador conflito mundial. Foi inevitável que recordasse seus distantes tempos de soldado – os quatro anos durante os quais teve de matar para não ser morto – e refletisse sobre a insensatez da espécie humana.

“Compreendera nesse momento a loucura da guerra, o gesto fútil que a dada altura deixou de ter significado, a ira impensada que deve ser alimentada para além do incidente que a originou, a crença ilógica de que um homem só, pela morte ou pelo sofrimento, podia justificar um direito ou sustentar um princípio.

Algures, pensou, no longo retrocesso pela história, a raça humana tinha aceitado uma demência por princípio e tinha persistido nela [...].” (páginas 162-163)

Diante deste cenário, em conversa com o amigo Ulysses, Enoch descobriu que, como membro da Central Galáctica há tantos anos, poderia falar em nome da Terra, solicitando ajuda àquela entidade para que a guerra que vislumbrou não acontecesse. Segundo Ulysses, Enoch tinha chances de ter o seu pedido atendido, porém o preço a ser pago pelo “tratamento” – por toda a espécie humana – seria alto: uma regressão intelectual, com a perda da habilidade de compreender e manejar tecnologias avançadas. Com isto, o ser humano tornar-se-ia incapaz de produzir instrumentos potencialmente devastadores para o planeta, mas também os aparatos tecnológicos pacíficos. Ainda poderia haver guerras, porém com a utilização de armas menos destrutivas.

Enoch passou a refletir sobre a enorme responsabilidade que lhe competia: decidir se devia ou não pedir a ajuda da Central Galáctica e, assim, optar pela provável guerra mundial ou por um processo de regressão intelectual do ser humano, como tratamento para nossa belicosidade. Começou a pensar em todo o conhecimento que acumulara nos contatos com as criaturas das estrelas, saberes que jamais pudera ou poderia vir a compartilhar com os demais membros de sua espécie. Enoch pensou nos livros, artefatos e conhecimentos médicos de origem extraterrestre, em especial numa caixa que ganhara e que continha substâncias capazes de curar todos os males. O processo de crise psicológica do protagonista foi descrito com profundidade, revelando-se um mergulho na psique de Enoch. Simak conseguia descrever muito bem a imensa crise de consciência que aquele dilema levou-o a enfrentar.

“Poderia um homem decidir, por comparação, se a guerra seria pior que a estupidez, ou vice-versa? A resposta parecia ser que não. Não havia processo de medir a possível catástrofe em qualquer das circunstâncias.” (página 155)

São estes dois fatos que conduzem ao clímax na parte final da obra: a possibilidade de desativação da estação de trânsito terrestre, com abandono do projeto de expansão destas vias galácticas, e a terceira guerra mundial, que, segundo previsões estatísticas infalíveis, se avizinhava da Terra. Cerca de cem anos tinham decorrido desde que Enoch iniciara aquele trabalho e, ao refletir sobre tudo o que vivenciara, ele questionou que espécie de criatura teria sido ele durante estes cem anos de solidão. Ao mesmo tempo em que procurava recuperar o corpo do alienígena, como forma de minorar as consequências do incidente intergaláctico, uma revolta contra ele era arquitetada pelo pai de Lucy, sob a falsa acusação de rapto da jovem. A vida de Enoch começou a correr risco.

Estação de Trânsito é um romance campestre, com belíssimas descrições que lembram o bucolismo. A casinha em meio à natureza, com poucos vizinhos, os hábitos simples... Você quase pode sentir a terra sob seus pés e o aroma das flores do campo. E, no entanto, é um romance de ficção científica, que envolve uma quantidade incontável de espécies alienígenas (com todas as suas características físicas e psicológicas peculiares), tecnologias avançadíssimas e conflitos de proporções galácticas. Este romance pode parecer uma incongruência em si mesmo, mas não é. Antes, é uma bem sucedida junção do heterogêneo em uma obra escrita com qualidade literária difícil de ser igualada. Simak consegue fazer com que o clima rural de uma velha casa de campo nos pareça o cenário perfeito para que Enoch contracene com o futurismo [muito] controverso das viagens acima da velocidade da luz. A ideia que serviu de premissa inicial ao texto – a existência de uma estação de passagem, uma “escala” para viajantes da galáxia – é original e muito imaginativa. A residência de Enoch transforma-se numa espécie de ponto de encontro, um local propício para se celebrar amizades com seres de outros mundos. Os diálogos mantidos entre o protagonista e estas criaturas – tanto as reais quanto as imaginárias – são bem elaborados, o que aumenta o prazer da leitura. Não conheço outro livro com tal premissa e, se algum escritor no futuro se basear em proposta semelhante, não creio que seja capaz de desenvolver o texto com o mesmo brilhantismo de Clifford Simak.

E as qualidades de Estação de Trânsito não param por aí. Trata-se de obra que evita o banal expediente das cenas de violência, podendo ser indicada (apesar de tratar de temas adultos) até para leitores mais jovens. Embora Enoch tenha uma espingarda como companheira quase inseparável, habitualmente só a colocava em funcionamento durante simulações de caça a seres irreais (note-se: a obra foi escrita há pelo menos cinquenta anos e seu autor já previa o uso de realidades virtuais como forma de entretenimento), que realizava no subterrâneo de sua casa-estação. Na verdade, como já frisado nesta resenha, o personagem principal praticamente não saía da estação que administrava. Este panorama pode parecer tedioso para muitos leitores, porém o romance ganha uma força incomensurável graças à capacidade de cativar existente tanto na escrita de Simak quanto na personalidade do protagonista. Enoch é um administrador diligente, que leva muito a sério suas responsabilidades e tem imenso prazer em receber os passageiros galácticos, estudando seus comportamentos, suas fisiologias, e imaginando como deveriam ser belos, sob as mais diferentes óticas, os planetas de onde se originavam. É um observador do outro, um estudioso do diferente, um contemplador da diversidade da Criação.

Com suas reflexões, Enoch nos conduz a também meditar. Sinto-me à vontade para dizer que Estação de Trânsito é a ficção científica mais reflexiva a que já tive acesso. Em momento algum a adrenalina é usada como um ingrediente da obra. São poucas as cenas de ação. Elas surgem apenas ao se aproximar o final da trama, onde há momentos de tensão, com situações criadas por explosões de sentimentos, mas que culminam em pacificidade e, sobretudo, em aprendizado. Todo este cenário – vale frisar – foi conduzido com muita maturidade pelo autor. Simak fez questão de dar primazia à profundidade dos sentimentos e reflexões, mesmo quando seus personagens se viram diante de situações de confronto físico. Nada de violência gratuita.

Estação de Trânsito cativa com naturalidade; agrada sem precisar utilizar qualquer artifício. É uma viagem por toda a galáxia e também ao interior de diversas criaturas, sobretudo do atormentado Enoch, sem que para isso seja necessário sair de dentro de sua propriedade no campo. Some-se a isso a escrita rica de Simak – quase poética, a exemplo da de Bradbury – e a criatividade sem limites do autor. Uma obra fascinante.

“Era verdade, pensou Enoch. Assim acontecia com o Homem; fora sempre assim. Trouxera o terror dentro de si; e a razão do seu medo fora, sempre, ele mesmo.” (página 209)

Ao final da leitura, fica difícil entender porque Estação de Trânsito não ganha novas edições em língua portuguesa.