Diário das minhas leituras/2
15/08/2018 – GONÇALO FERNANDES TRANCOSO
Um dos contos do Gonçalo Fernandes Trancoso que está em “Mar de Histórias” é uma das coisas mais absurdas que já li ou lerei na vida. Tem relação com o que falei na nota anterior, sobre a péssima imagem que se tinha das mulheres nas histórias da Idade Média e do Renascimento e, assim como o conto do Bandello, tem a ver com uma prova para testar a constância e a fidelidade da mulher. Também a mulher do conto do Trancoso “passa” no teste, mas a que preço! Primeiro, o homem substitui o bebê que os dois tiveram pelo cadáver de outro e faz crer que quem morreu foi o filho deles. O bebê, no entanto, foi levado para ser criado em outra parte. E então diz a ela que os criados estão falando mal dela por causa do filho morto e que seria melhor ela voltar para a casa do pai. A mulher se mostra submissa, seja feita a vossa vontade. Mas, agindo assim, ela passou no primeiro dos testes absurdos e o homem decidiu continuar com ela. Passam-se mais 12 anos, eles têm outro filho e, depois de algum tempo, o homem some com ele também. Vai ele de novo falar com a esposa, diz que os criados estão falando mal e que pretende se casar com outra moça, que está para visitá-los. A mulher abaixa a cabeça e diz que se contenta em ficar como criada na casa dele. O homem então traz para a casa deles quem? A filha tida como morta, que já é uma rapariga, e a apresenta para a mãe como a mulher com que vai se casar. A mãe dá os parabéns para ela, mostra toda a sua humildade e sua mansidão e então... Tcharam! Pegadinha do Malandro! Ié, ié, glu glu! O homem conta a verdade. A mulher passou em todos os testes. Todos ficam muito felizes e acontece uma grande festa. Essa história monstruosa foi publicada originalmente em um livro que tinha o belo nome de “Contos e histórias de proveito e exemplo”. O Trancoso achava que a história tinha uma moral edificante! Ainda bem que a moral muda e hoje essa história só é exemplo de que fomos piores.
16/08/2018 – CHARLES SOREL
Mas é incrível como gostavam de histórias em que se colocava à prova a fidelidade de alguém. Ao menos dessa vez é uma mulher que resolve testar um homem. Trata-se da “História daquele que se fez mudo para obedecer à sua dama e afinal a desposou”, de Charles Sorel. Noto como diferença que o tal teste foi feito antes do casamento. Não creio que exista um conto dessa época em que uma mulher resolva testar a fidelidade do marido. Uma vez casados, cobra-se apenas da mulher a constância. Quando é a mulher que cobra, é para se certificar de que vale a pena se casar com o sujeito. Mas há também outro reparo a se fazer: a mulher desse conto não duvidava dos homens como um todo. Ela duvidava é dos franceses!
16/08/2018 – JOHANN PETER HEBEL – E.T.A. HOFFMANN
Escondido, na parte final do livro, e com meras três páginas, está um dos melhores contos do volume 2 de “Mar de Histórias”. Falo de “Encontro inesperado”, do alemão Johann Peter Hebel. Foi a partir desse conto que E.T.A Hoffmann desenvolveu o seu “As minas de Falun” (um dos belos contos que li este ano). De fato, agora que conheço os dois contos, o de E.T.A Hoffmann parece uma versão estendida deste do Hebel. Há certamente muitas vantagens na ampliação da história, mas a mim me parece que também a versão pequena é belíssima e faz da própria concisão um mérito. Dois belos contos, dois belos escritores. E com isso eu reforço a minha admiração pela prosa alemã, que em geral não é muito celebrada.
17/08/2018 – XAVIER DE MAISTRE
Quando eu já não esperava mais nada do livro e estava satisfeito por ter encontrado o conto do Hebel, eis que me surge um Xavier de Maistre, que cometeu “O leproso da cidade de Aosta”, uma das coisas mais lindas e emocionantes que li durante este ano. É impossível não se deixar emocionar pela história daquele leproso, que, sob certos aspectos, pode gerar identificação em qualquer um que, padecendo de dramas físicos ou emocionais, se veja de algum modo privado das realizações humanas mais básicas, a começar pelo simples convívio com seus semelhantes. As falas do leproso são magníficas e despertam a nossa compaixão. Um texto feito para durar, ainda que, felizmente, a hanseníase tenda a desaparecer.
19/08/2018 – SÁNDOR MÁRAI
Infelizmente, li muita coisa ao longo da vida sobre a qual não fiz anotações. De alguns livros eu tirei uma frase ou outra. Convém que eu as deixe registradas aqui também, para facilitar a minha própria consulta. Essa é do Sándor Márai que eu colhi do belíssimo “As Brasas”, lido em 2013: “É o tormento mais cruel que o destino pode reservar ao homem. Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo. Devemos nos contentar em sermos feitos de uma certa maneira e em sabermos que, uma vez aceita essa realidade, a vida não nos louvará por nossa sabedoria, ninguém nos conferirá uma medalha de honra ao mérito só porque nos conforma-mos em ser vaidosos e egoístas, ou calvos e barrigudos - não, em troca dessa tomada de consciência não obteremos prêmios nem louvores. Devemos nos suportar tais como somos, este é o único segredo. Suportar nosso caráter, nossa natureza profunda, com todos os seus defeitos, seu egoísmo e sua cupidez, que não serão corrigidos nem com a experiência nem com boa vontade. Devemos aceitar que nossos sentimentos não são correspondidos, que as pessoas que amamos não nos retribuem o nosso amor, ou pelo menos não como gostaríamos. Devemos suportar a traição e a infidelidade, e sobretudo a coisa que nos parece mais intolerável: a superioridade intelectual ou moral de outro”.
19/08/2018 – MAR DE HISTÓRIAS – CERVANTES – PU-SUNG-LING – DEFOE – KLEIST – IRVING
O Volume 2 de “Mar de histórias” compreende o período “Do fim da Idade Média ao Romantismo”. Os primeiros contos, isto é, aqueles do fim da Idade Média, são interessantes sob alguns pontos de vista, mas não são capazes de nos causar, hoje, o mesmo impacto que tiveram ao tempo de sua publicação. O que me pareceu, lendo os escritores dessa época, é que havia uma tendência incrível de desvalorizar a mulher e duvidar da sua fidelidade e constância. São diversos os contos nessa linha. Parece que era um tema-chave da literatura da época. Um dos contos do Trancoso, como falei, é das coisas mais absurdas que já li na vida. Por outro lado, o conto do Matteo Bandello vinga as mulheres (e todos os homens que não se sentem em nada superiores às mulheres). Sobre o Cervantes, eu tenho a impressão de que há em suas “Novelas exemplares” histórias mais saborosas que “Rinconete e Cortadillo”, escolhida pelos editores. Achei muito interessante os dois contos do chinês Pu-Sung-Ling. Por mais difícil que seja para o Ocidente conseguir absorver a maneira de se expressar do Oriente, acho que os contos escolhidos são de se apreciar. Chama a atenção, como destacado pelos editores, a naturalidade com que o autor inclui o elemento sobrenatural. Do Daniel Defoe há “O Diabo e o relojoeiro”, uma história muito bem contada que tem como único e importante defeito o fato de acabar abruptamente, quando era visto que merecia mais. Quando os contos começam a se aproximar do Romantismo, eles se tornam mais palatáveis à nossa atual mentalidade. “O terremoto do Chile”, do Heinrich von Kleist, eu já conhecia, e ele me admira por sua força e pela carga dramática. Um dos melhores do livro. “Encontro inesperado”, do Johann Peter Hebel, de quem já falei, é igualmente um dos mais bonitos. O Xavier de Maistre leva o posto de melhor conto do livro com o insuperável “O leproso da cidade de Aosta”. E o livro termina bem com o famoso “Rip Van Winkle”, do Washingon Irving, que, se não é o melhor conto de todos, deixa antever a evolução que teria o conto em terras norte-americanas. Foi bom ler, bem mais pelo Romantismo que pela Idade Média.
20/08/2018 – KUNDERA
Algumas observações sobre o Kundera que fiz quando li um dos seus livros há sete anos: "A Lentidão" é o quinto livro que leio do Milan Kundera. É impressionante a sua capacidade em captar movimentos sutis dos nossos relacionamentos, e deles extrair toda a sua origem e motivação, sua beleza e sua dor. Nele, os episódios mais corriqueiros revelam os nossos maiores segredos. Além disso, Kundera faz com muita naturalidade uma coisa que admiro e acho muito difícil, que é escrever o passado no tempo presente.
21/08/2018 – SOMERSET MAUGHAM – RODRIGO PETRONIO
Gostei tanto do “Histórias dos mares do sul”, do Somerset Maugham. Acho que ele domina como poucos a arte de se contar uma história. Seus contos realmente prendem a atenção, suas tramas são originais e seus personagens despertam o nosso interesse. Sem falar que boa parte dos personagens são figuras complexas, ou seja, nem completamente bons e nem completamente ruins. Isso pode ser observado no primeiro conto do livro, “Mackintosh”, e que chega a ser problematizado abertamente no segundo, o belo “O degenerado”. Os contos todos se passam em Ilhas do Pacífico, notadamente Samoa, e abrangem as questões de adaptação de homens brancos a cultura dos habitantes daquela região. Essas relações vão desde a total integração, como no citado “O degenerado”, até a quase aversão, como em “O poço”. Uma coisa que se manifesta com frequência é a questão racial, através do preconceito dos brancos. Embora eventualmente o texto insinue preconceitos do próprio autor, sobretudo contra mulheres, o melhor conto de Maugham, “Chuva”, se vinga da visão etnocentrista do colonizador europeu que deseja converter os “selvagens” aos cultos dos seus deuses. Toda hipocrisia religiosa vem à tona em um conto repleto de ações surpreendentes, com desfecho improvável. Um conto que não consegui largar até terminar. Tem ainda o belo “Vermelho”, que eu já conhecia do “Maravilhas do conto inglês”. Foi uma grata surpresa esse Maugham, mas foi bom que eu tenha deixado para ler o prefácio por último, do contrário eu não gostaria nada do livro. De fato, Rodrigo Petronio fez um prefácio que, depois, depois de algumas palavras bonitas no início, desanca o livro e Maugham de tal forma que fatalmente iria me influenciar negativamente se eu tivesse cometido a temeridade de lê-lo antes do livro propriamente. Aparentemente, a crítica literária vê Maugham com muito má vontade, sobretudo porque fazia sucesso, e só então por eventuais defeitos de seus textos. Reconheço, por exemplo, clichês no conto “O degenerado”, que nem por isso deixou de ser um dos que mais gostei do livro. Talvez o meu gosto não seja tão refinado quando tais críticos desejam. Diz o Petronio que dificilmente alguém colocaria Maugham ao lado de grandes nomes da literatura. Vou cometer uma heresia, mas eu gostei até mais de “Chuva” do que de “Bola de sebo” do Maupassant.