O Anel das Lembranças dos Gênios do Nilo -

Memória e identidade às margens do Nilo

Recém traduzido para o português pelas Edições Nova Acrópole, O anel das lembranças dos gênios do Nilo é um desses livros intrigantes que causam profundo desconcerto no leitor moderno, acostumado a acreditar mais nas verdades da ciência do que em sua própria capacidade de reflexão.

Esse também é o dilema do protagonista da narrativa, Ask, médico espanhol radicado no Egito, de mentalidade estruturada, mas ao mesmo tempo profundamente angustiado e em busca constante de respostas – seu próprio nome o qualifica e o denuncia como um questionador.

Em um dos mercados egípcios, Ask recebe um anel mágico – como a lâmpada de Aladim – no qual habita um gênio: o gênio da lembrança. A partir desse momento, a narrativa se bifurca em dois tempos: o tempo presente de Ask e o tempo passado, do Egito antigo, onde está Ani, uma espécie de duplo de Ask, o protagonista da narrativa que se desenvolve no tempo passado.

Como na História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, os tempos não se desenvolvem em paralelo, mas numa estrutura paratática, onde o passado invade o presente e o presente possibilita a releitura do passado; as personagens e a própria narrativa se tocam, se justapõem.

Não se trata, portanto, de um resgate nostálgico do tempo passado, de uma reconstrução arcaica e desolada do que já esvaeceu, mas de uma necessidade de quebra, de ruptura da condição presente, da condição moderna e angustiante em que vive Ask.

Lembro, aqui, o conceito de Filosofia da História, de Walter Benjamin, e sua idéia de origem (Ursprung) como prática transformadora e revolucionária, como explicita Jeanne Gagnebin em seu livro História e Narração em Walter Benjamin. A história dos vencidos aqui é a do Antigo Egito, que já não existe mais como civilização, existe apenas em ruínas, mas permanece como tradição a ser resgatada. Será essa narrativa clássica que, como corrente de tempo, corrente de força, emergirá no tempo presente, transformando a vida de Ask, até então muito urdida nas malhas estruturalistas da sociedade contemporânea.

Não será a História, como fato documentado do passado, aquela que teria que nos dar a verdade desse passado, mas sim as Histórias, os fatos narrados através de um ser fantástico, o gnomo do Anel, que trará a verdade particular: uma visão da verdade. O anel das lembranças dos gênios do Nilo é um modelo de encontro entre a filosofia da história, como reflexão filosófica do passado, e a literatura, como fonte de narrativas, o contar histórias.

Essa recuperação do passado pela lembrança através das histórias narradas configurará uma nova identidade para Ask; afinal, como ensinava Platão, a formação do sujeito está relacionada com o conhecimento, e o conhecimento, com a reminiscência.

O lembrar constrói uma nova identidade e permite a construção de um novo ambiente, de um novo tipo de vida, pois recordação é também esquecimento. A nova identidade se faz pela incorporação de outros olhares, de outras concepções que ocuparão o lugar daquelas que devem ser apagadas: lembrar e esquecer, as duas faces da memória; fluxo e refluxo na narrativa de O anel das lembranças dos gênios do Nilo.

O conceito de origem não é a simples negação da modernidade, mas a retomada na própria modernidade de uma harmonia perdida, um estado anterior que não é somente origem, mas também destino. O tempo da narrativa não é cartesiano, embora os fatos possam ser cronologicamente encadeados. O passado no presente causa uma ruptura desse tempo linear, o tempo se torna labiríntico, a narrativa vai e vem, costura os vários tempos, enlaça-os, tece-os, assim como Penélope teceu sua colcha e Ulisses teceu sua Odisséia. A narrativa costura as personagens e, a cada costura, modifica-as; as personagens também estão em seu labirinto particular: Ask vai ao centro de si mesmo para encontrar uma solução que responda às suas necessidades e angústias.

O Anel, o elo entre os dois tempos, esse símbolo do infinito que liga todas as finitudes, é presidido por um gênio, um gnomo chamado Zander, um ser fantástico que desestrutura a racionalidade de Ask: “seria o gnomo um sonho ou uma realidade não explicável?”

Como todo ser fantástico, o gnomo é a própria abertura de possibilidades, a hesitação entre a explicação racional do sonho e a aceitação de uma realidade que não tem explicação racional, mas que está presente, que abre a visão do outro, do excluído, daquilo que não é da mesma qualidade e característica do normalmente aceito, no caso, aquilo que a sociedade contemporânea e cientificista do médico Ask toma como normal.

Zander é a abertura para uma nova concepção, uma nova visão de mundo, assim como o livro O anel das lembranças dos gênios do Nilo é um livro que nos abre possibilidades de reflexão sobre nossa sociedade e sobre a necessidade filosófico-histórica de resgatar os elementos do passado, restaurar a harmonia perdida, voltar às origens e, quem sabe, acelerar o tempo em direção ao futuro.