O nó górdio revisitado

Quando revisitamos as histórias mitológicas, encontramos Górdio, um pobre camponês que foi escolhido pelo povo para rei de Frígia, em obediência à profecia do oráculo, segundo o qual o futuro rei chegaria numa carroça com a mulher e o filho. Tornando-se rei, Górdio dedicou a carroça à divindade do oráculo, amarrando-a com um nó, o famoso nó górdio, a propósito do qual se dizia que, quem fosse capaz de desatá-lo, tornar-se-ia senhor de toda a Ásia. Muitos tentaram, até que Alexandre Magno chegou a Frígia, tentou desatar o nó, impacientou-se, arrancou da espada e cortou-o. Portanto, a expressão “nó górdio”, hoje em dia, significa, quase sempre, a possibilidade de resolver um problema complexo de modo simples, diferente do que se espera.

Carlos Eduardo Leal, psicanalista e poeta, assim intitulou seu primeiro romance O NÓ GÓRDIO, editado pela Companhia de Freud, em setembro de 2007. A personagem Alice, artista plástica de reconhecido talento na Europa, e sua mãe, Elza, recobrem de delicadeza e espanto uma narrativa que nos toca exatamente porque reinventa o sentido do nó mítico. Carlos Eduardo Leal constrói um narrador que, ao contrário de Alexandre Magno, se detém pacientemente a olhar o nó de Alice, sua origem, suas escolhas, suas descobertas, e insiste em nos fazer pensar, em um discurso pra lá de erótico, sobre o nó que marca nossa própria humanidade:“Este movimento atonal de desfazer-se sempre foi corriqueiro em sua vida. Desde criança ela tinha essa sensação de não ser, ou melhor, de ser mimesis.” Longe da idéia de cortá-lo, o enredo aproxima o nosso olhar sobre a dor e a ferida aberta de Alice em sua saudade do pai, em sua dependente convivência com a mãe e na mais pura ilusão que o amor é capaz de dar.

O romance é recheado por interlúnios (capítulos em que a personagem Alice narra suas memórias), capturando o leitor com uma rara oportunidade de ler a história sob o ponto de vista do narrador em terceira pessoa e sob o ponto de vista da própria protagonista: “Há um abismo, verdadeiro cisma que acontece na divisão entre o que há em mim por dentro e o que falta em mim por fora. Queria ser eu pelo avesso. Não conheço ninguém que seja assim, ao avesso.” Dessa forma, é provável que nós leitores terminemos este livro pedindo, como a personagem de um dos melhores filmes de Pedro Almodóvar: ata-me.

Adriana Bittencourt Guedes
Enviado por Adriana Bittencourt Guedes em 17/09/2007
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