Como assim? Você sabe da TERRA MÉDIA e ignora o LISO DO SUSSUARÃO?

Meu senhor, minha senhora, não se vexem de tal lapso. Carece não. Vem. Mire e veja:

Estou relendo o romance Grande Sertão: Veredas (GSV). A primeira vez que o li foi há vinte anos, e me lembro de como fiquei fascinado pelo mundo rosiano, da jagunçada, do sertão mineiro, do cerrado, dos rios, das veredas, dos buritizais, dos passarinhos, e até das pedras.

Geografia ali é de sobejo, mas com bons olhos o que se vê é para além, os universais mistérios, os segredados nas entrelinhas. Cada uma delas, todas cavernas de rica essência, farta dos elementares. Há uma alquimia no conjunto das palavras, talvez magia boa, pois é difícil não se enlevar no susseguinte delas. Teste, pois. Se bobear, vai encontrar até um semelhantemente Fausto, de mefistas e cabrunhãs avençadezas, por entre burizais.

Ler GSV não é o comum de se debruçar em outras obras. Primeiro que, por espanto, já na forma não sabemos se a obra, narrada em primeira pessoa pelo ex-chefe de jagunço Riobaldo, é um monólogo ou, como lá dizem as pessoas da academia, um diálogo de única voz, em que o interlocutor, que tudo ouve, não aparece em fala, só pelo ouvido da mente do leitor, que entrevê o oculto.

Confesso, sem falsa modéstia. Creio que por ter nascido no interior de São Paulo, em cidade pequena, de diversos encontros de gente de paragens todas do Brasil, no enriquecer a nossa caipirice, não tenho muita dificuldade de compreender a escrita de Grande Sertão: Veredas. Até as palavras inventadas, por mor de poesia, logo apreendi-as, com boas e tantas exceções, o que me socorro dos especialistas. Tem muita resenha disponível da lavra de brilhantes estudiosos das Letras. É saboroso complemento, o que de sobra recomendo.

Volvendo ao que eu vinha a dizer, a minha dificuldade com o GSV e outras obras do JGR é manter o correr dar águas da leitura, sem parada. Amigo, amiga, amigx, é uma escrita tão linda, tão diferente, tão rebelde, de engenhosa musicalidade lírica, esta, que se dá na forma, na insubordinação da pontuação, na brincadeira, com 'logos', de construir, de inventar palavras, que eu acabo por parar e sorrir de alegre, mas de alegre mesmo. Aí eu risco o trecho extasiante. Deixo ele amarelo com canetinha. E não me contenho. Corro compartilhar com alguém. Muitas vezes procuro minha mãe e leio o belo texto. É um presente que dou. Saboroso mesmo.

Agradeço ao escritor, o versado, letrado, brilhante, gênio, mas caipira de cidade pequena, esse senhor Guimarães Rosa. Porque nele me vejo, vejo todo mundo: espio toda a nossa gente. Ele fala é de nós ali. Não trata de reis, de poderosos. Não. Ele dá voz à quem nunca se deu o microfone, no protagonismo real, fulcral, em centro, digamos. É uma humanidade o conjunto da obra. E o mais bom, o meu observável: Guimarães Rosa nos encanta porque também foi encantado em antes, por aquela gente simples, rude, esquecida, bruta, paradoxal de tanta sabedoria, de pedras filosofais, de tamanhas humanidades, nas vicissitudes.

Há o mundo, há os planetas, há as galáxias, há o universo, o 'cosmos'. E, numa replicação, há os microcosmos, e nesses há cada um de nós, cada planta e coisa em fenômeno de se olhar ou não. Eu acho que o Rosa visava ao fundo de uma Unidade, sempre no esforço dele em mostrar que em tudo, até no mais humilde ser humano, o todo se replica, e ninguém é o mais importante num círculo desses complexos engenhos. Quiçá, eu esteja enganado. Mas que tudo é muito sublime em GSV, isso é!

Vamos, enfim, ao modo da escrita dele. Ao mundo FANTÁSTICO, tão no aqui, agora em.

A língua portuguesa do Guimarães Rosa não é a mesma do nosso ramerrão, da rotina. Quer dizer: é e não é, pois cuida de um "idioma" peculiar, por próprio, de revoltantes linhas que a todo segundinho deturpa a sintaxe, se rebela com os advérbios, em usufrutos de lirismo de se fazer brilhar o olho do leitor.

Vejo muita gente que se arvora apaixonado pela literatura fantástica, e tais e quais levam ao extremo a sabência em Tolkien, em George R. R. Martin, em elevado sentimento de êxtase. Ora, não se negue e não, em sequer, admite desprestigiar as obras dos escritores renomados da língua inglesa, e seus "mundos-mais-do mesmo-mundo-do-sempiterno-deles" contado eurocentrismo. Mas, contudo, há os poréns, eis que.

Precisamos, nós amantes da literatura, do fantástico, do mágico, desabrochar o nosso próprio "eu", pois em terras nossas, além da Terra Média, da branquitude, há uns espaços tão nossos, de imensa epopeia, esquecidos, encobertos, por toda nossa gente, com parcas exceções.

Tal neblima, tal bruma, nevoeiro em nossas vistas, será que é por manejos de bruxaria do além-mar ou no interno supro da gente, de ignorar-se?

Há que desembaçar esse nosso espelho para que nos vejamos defronte em si.

Que encantamento é esse, sobejo, que faz a gente enxergar as terras de Frodo, de Gandolf, do Hobbit, do Khal Drogo, da Terra Média, além-mar, atlântico-e-pacifico-em-trás, mas nos cega do que nos é próximo e palpável? Tapa-nos para esses mundos tão essencialmente nossos, tais sertões que se confinam com as bordas do universal?

Como é possível, nós leitores brasileiros, amantes e degustadores da boa literatura, da fantástica, da mágica, da mística, ignorar em pleno desatino a existência do LISO DO SUSSUARÃO? Logo ali, no interior pátrio.

Ah! Bem sei que você desconhece tal paragem. Pois bem, conto-lhe como por anos vem descrito, em assombro, por Riobaldo. Mire e veja:

"LISO DO SUSSUARÃO, é o mais longe ? pra lá, pra lá, nos êrmos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não se avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumia do, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaro."

O mundo atravessado de banda a banda por Riobaldo e sua jagunçada, homens do líder Medeiro Vaz, é cheio de grotas, esconsos, de nascentes d'água, de flores, mas há as maldades, os ruins, o Belzebu, as bruxarias e os feitiços. Lendas de vila em vila, em corrente.

Na Terra Média há os deuses e as deusas, no intervir por algo, contudo, o sertão é rude, rústico a ponto de se afirmar que "Viver é muito perigoso". E até Deus se vier, previna-se:

"O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, QUE VENHA ARMADO!"

Ah, mas no Senhor dos Anéis tem o sábio Gandalf, que enriquece a história, pode me alertar um ávido leitor dos estrangeiros.

Gandalf tem aforismos profundos, como esse :

"Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado."

Contrarrazões, em pois.

Quem disse que as veredas estão desguarnecidas de sabedoria Apresento-lhes um homem muito querido de Riobaldo, seu compadre Quelemém, de doutrina Cardéque. Luz para seus entes, seus queridos.

Foi compadre Quelemém quem disse, ciente, em enfrentamento de raciocínio incauto do Riobaldo:

"Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..."

Convite para viagem ao LISO DO SUSSUARÃO

Sendo assim, fica o convite para a DESCOBERTA de um mundo fantástico bem em solo que pisamos, na sua continental extensão, Grande Sertão: Veredas

Recomendação para os aventureiros ao ler Guimarães Rosa

A escrita do Rosa é bem peculiar, oral, de modo que nos trechos de maior dificuldade, leia em voz alta, a compreensão ganha clareza. E não se sinta limitado. A obra dele é enigmática, e há especialistas para cada singular elementos dela. Sinta-se numa Palavroteca, divirta-se e siga adiante. Rosa cria palavras, neologismo. Com um pouco de esforço e quiçá pesquinha rápida no Google, tudo se alumiará. Não desista.

Em epígrafe, alertando os necessários eventuais revolteios de parágrafos.

"Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo se entenderá sob luz inteiramente outra"

(Schopenhauer)

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Uma obra rica em reflexão randomizada, de amplitude universal

O ex-chefe da jagunçada, Riobaldo, enquanto narra sua vida a um homem instruído da cidade, traz a lume, às claras, a sua conclusão sobre a vida, sobre o homem, sobre Deus, sobre o Diabo, sobre a religião, sobre o amor, a guerra e as tantas coisas do que vê, vive e se ouve dizer no transcorrer existencial, na travessia.

Atente. Jusante, infra, por modo dadivoso de agradar nossa e minha "amizadagem", recolho excertos do Grande Sertão, em que Riobaldo fala de Deus e da religião, cuja matéria ele trocou muita sábia conversa com seu Compadre Quelemém, de doutrina Cardéque.

"Compadre Quelemém nunca fala vazio, não subtrata", afirma Riobaldo.

Riobaldo, um socrático, por velhaca sabedoria, sem falsa modéstia, na solta palavra, avisa seu interlocutor, o homem instruído da cidade:

"EU QUASE NADA NÃO SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA."

Trechos "cogito", por substancial

"Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo o rio? uma só para mim é pouca, talvez não me chegue."

"O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho"

"A força de Deus quando quer ? moço! ? me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho ? assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se discutindo, se economiza."

"Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar ? é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo."

"Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver."