Sapatos, ecos e uma preciosidade.

A literatura de Clarice era marcada pela grande introspecção das personagens. Ela analisava as características que constituíam a individualidade, ela não se preocupava com um enredo estruturado (aqueles com começo, meio e fim). As narrativas focavam o momento em que uma personagem tem consciência de sua individualidade, como aconteceu com a jovem de “preciosidade”, após ser tocada descobriu quem era, ou quem ela poderia ser. Muitos de seus contos tratavam da condição feminina, das dificuldades de relacionamento humano e a busca pelo “eu”.

Era sempre muito original ao escrever suas ficções e ao escrever este magnífico conto, parte integrante do livro “Laços de Família”, retrata a iniciação feminina. É contada a história de uma adolescente que tem a sua rotina diária em seu próprio mundo, onde ninguém a vê e ninguém a percebe, se sentia intensa como uma jóia até que em um fatídico amanhecer é tocada e perde sua “preciosidade” (supõe-se que tal preciosidade seria a própria virgindade).

Uma menina cujos sapatos de madeira faziam estrondoso barulho nas e corredores por onde passava. Solitária, magra e feia. Não se cuida, não tem vaidade, muito pudica em relação aos homens, se escondia de tudo e de todos, tinha medo de que fizessem ou falassem algo proibido. Sem amigos, sem ambições na vida. Não gostava de ser notada, reparada, ou qualquer coisa semelhante. Seu andar era de quem se esforçava para não chamar atenção, mas algo a impedia disso. Aqueles únicos e fadigados sapatos de madeira. Apesar de pequena, comia muito, devorava sua refeição e se lançava ao tédio de uma tarde que não termina, até que sua família retornasse da repartição e transforme sua casa novamente em um lar.

Um dia, ao sair mais cedo por engano, percebe que ainda era madrugada e deparou-se no caminho com dois homens vindo em sentido contrario ao seu e sentiu quatro mãos que a tocaram contra a sua vontade. E ao ser tocada, sentiu-se estranha, tranqüila e paralisou-se diante de um muro, perdendo a noção do tempo e chegando atrasada na escola, mas acabou que descobriu um novo mundo ao qual agora ela pertencia. Enfim foi desejada. Sentiu-se mulher. De noite, na calma do jantar, em uma explosão de rancor, exigiu sapatos novos, como se a culpa de suas desgraças estivessem no toc toc dos calçados, alegou que já era mulher e que aqueles sapatos não lhe eram apropriados. Não ousaram negar-lhe.

Agora ela queria ser bonita, aproveitar a vida, ser amada e desejada.

*Resenha do conto "Preciosidade" de Clarice Lispector

Danielle Gusman
Enviado por Danielle Gusman em 14/11/2007
Código do texto: T736425