Ulysses - James Joyce

Obra que desafia o leitor: densa, difícil, complexa...

James Joyce - Ulysses, São Paulo, Penguin-Companhia, 2011

Vale a pena ler Ulysses? Depende. Vale pela experiência da leitura, por saciar a curiosidade de se ter em mãos um livro sem igual na história da literatura universal. Mas aproveitar completamente seu texto, como fizemos com, por exemplo, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski ou José e Seus Irmãos, de Thomas Mann, obras também bastante volumosas, é outra história. No início, a Nota do Tradutor, Caetano Galindo, até que deixa o leitor um tanto animado diante das dificuldades que virão, sabendo ainda que para auxiliá-lo pode contar com outro volume, escrito pelo próprio Galindo, Sim, eu Digo Sim: Uma Visita Guiada ao Ulysses de James Joyce, o único que temos em português até o momento.

Mas depois, ao ler a longa e erudita Introdução do professor irlandês Declan Kiberd nosso entusiasmo (pelo menos o meu) arrefece um tanto e ficamos com aquela sensação de que Ulysses será uma leitura não exatamente prazerosa, mas bastante árdua (o que já sabíamos há tempos, convenhamos). É hora de prosseguir ou desistir, ficar com outras obras de Joyce, menos difíceis, como os contos de Dublinenses ou o romance Retrato do Artista Quando Jovem. Mas prosseguimos...

A história narrada em Ulysses é a de um dia, uma quinta-feira, 16 de junho de 1904, na vida de Leopold Bloom. Um irlandês comum, “filho, pai, amante, amigo, trabalhador e cidadão”, ao mesmo tempo um dos personagens mais conhecidos e estudados da literatura universal. Um homem comum: assim também é como Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica, vê Ulysses e os demais personagens criados por James Joyce (1882-1941), cuja obra ele analisou em Homem Comum Enfim (Companhia das Letras, 1994). Um homem comum que tem, no entanto, seu dia contado através de uma narrativa mutante, complexa, incomum. Extremamente incomum não apenas para a época em que o livro foi escrito (entre 1914 e 1921) mas ainda em nossos dias. Tanto que desde que foi lançado em 1922 inúmeros estudos sobre ele têm sido publicados mundo afora.

Em Ulysses não se encontra (quase) nada daquela escrita tradicional a que estamos acostumados, das histórias com começo, meio e fim tudo certinho, mas uma torre de Babel narrativa, uma montanha-russa de informações e dados com inúmeras alusões à literatura grega, à Bíblia, a Shakespeare e outras fontes, muitas fontes, diversas delas citadas em francês, italiano, alemão, gaélico, hebraico, latim etc. Predominam como formas de expressão dos personagens principais o fluxo de consciência, o monólogo interior, não há distinção precisa entre o que seja descrição, narrativa ou ação: é tudo junto e misturado. Portanto, ler Ulysses não é fácil, entendê-lo completamente (para mim) parece impossível.

Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, muitos críticos elegeram o livro de Joyce como a obra literária mais importante do século XX. Por sua modernidade, por ser inovadora, revolucionária e plena de palavras (algumas inventadas, outras juntadas etc.), expressões e frases de duplo sentido, majoritariamente sexual, muitos palavrões cabeludos e um tanto de escatologia. Um exemplo apenas: o escritor (fictício) favorito da personagem Molly Bloom, é um tal Paul de Kock (“Nome bonito que ele tem.”, diz ela ao marido). Entendeu? Falando ainda em Molly, seu monólogo interior, a parte final de Ulysses, é a melhor de todo o livro, a afirmação da figura feminina, que até esse ponto não tinha papel central na história.

À altura do personagem-título de Joyce estariam, para alguns críticos, apenas os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (1871-1922), publicados entre 1913 e 1927. Em listas dos melhores livros de todos os tempos, não apenas do século passado, Joyce e Proust costumam perder para Miguel de Cervantes e seu Dom Quixote. Todavia, para o tradutor Ulysses talvez seja mesmo o maior de todos os romances publicados até hoje. Galindo não está falando do número de páginas, evidentemente, que é extenso, apenas deseja que os leitores não vejam em Ulysses somente um quebra-cabeças exemplar, mas um romance de fato.

Porém, são tantas as charadas, as dificuldades de entender certas passagens (ou a maioria delas) que o leitor comum encontra em sua leitura, que o romance fica parecido, sim, com um grande jogo montado para divertimento do próprio Joyce e de algumas pessoas de seu círculo em Dublin, capazes de decifrar todos os enigmas que o livro apresenta ou a maioria deles. Claro que não é isso, mas...

Em Doutor Pasavento (Cosac Naify, 2009), Enrique Vila-Matas escreve que “A literatura consiste em dar à trama da vida uma lógica que ela não tem.” Parece uma frase bastante apropriada para quase todos os livros comuns que lemos, mas parece também que em Ulysses Joyce fez exatamente o contrário: o que havia de lógico (ou ilógico, contraditório, curioso etc.) na vida de Bloom, Molly ou Dedalus, pessoas comuns vivendo histórias comuns que poderiam acontecer com qualquer um, torna-se aqui um quebra-cabeças denso e complicado em que o leitor tem de se esforçar muito para juntar as peças e entender alguma coisa do que é contado. Não apenas o leitor, especialistas e críticos também.

Senão não haveria tantos livros, teses e artigos tentando explicar um livro que parodia a Odisseia homérica, que “reconstrói” o clássico grego. É a história em cíclica repetição, como se fosse um ”eterno retorno” nietzschiano, mas com várias diferenças agora: Leopold Bloom aparece como um moderno Odisseu (em grego; Ulisses em latim), sua mulher Molly (Marion Tweedy, na verdade) seria Penélope e o amigo Stephen Dedalus (o alter ego de Joyce) pode ser visto como Telêmaco. E assim por diante com os demais personagens. Tudo mais ou menos assim, não exatamente semelhante conforme se passou com a narrativa homérica, transportada por Joyce para a Dublin do início do século XX.

Se Odisseu levou dez anos para voltar a Ítaca após a guerra de Troia (mesmo tempo que Galindo levou para traduzir o livro), Leopold Bloom gasta cerca de dezesseis horas perambulando por Dublin antes de voltar para o número 7 da Eccles Street, sua residência. Naquela quinta-feira, 16, Molly, a moderna Penélope, esperava não exatamente a volta do marido para casa, mas a visita do amante à tarde. Stephen Dedalus não sai à procura de Bloom como Telêmaco saiu à procura do pai, eles se encontram pela cidade. Ao contrário da história original, é Bloom (Poldy, para a mulher, diminutivo de Leopold) que busca encontrar no jovem escritor o filho que morreu logo após o nascimento.

E se Molly Bloom, esposa, mãe e cantora lírica, também não é um modelo de fidelidade e virtudes, como foi Penélope, que ficou esperando o herói Odisseu tanto tempo, o marido tampouco tem algo de grande herói, é um homem comum como já foi dito (mas com alguns hábitos estranhos; segundo um acusador, Bloom guardava para contemplação um pedaço nojento de papel higiênico usado por uma prostituta). Ele é apenas um agenciador de anúncios em Dublin, filho de pai judeu e mãe católica: isso importava muito para alguém vivendo num mundo católico, o irlandês.

Joyce pretendia que Leopold Bloom, com todas as suas fraquezas e qualidades, representasse os múltiplos aspectos de cada ser humano, quer dizer, da humanidade. Por isso é que seu personagem não é um homem exatamente viril (tolerava as corneadas que Molly lhe dava, entre outras fraquezas), porque Joyce acreditava, conforme o professor Kiberd, que ele, Leopold, poderia ser o homem andrógino do futuro, com comportamento masculino e feminino perfeito. Mas enquanto isso não ocorre, Bloom, o andrógino imperfeito, inicia seu dia joycianamente. Perambula pela cidade, vai a diversos lugares, a um enterro, mais tarde a uma maternidade, depois a um prostíbulo, relembra ou imagina coisas, conversa com diversas pessoas, observa outras, caminha com Stephen Dedalus pelas ruas etc.

Não quer voltar cedo para casa, daí que seu dia é uma verdadeira odisséia por Dublin. E a razão disso tudo, de não querer regressar cedo, é que ele espera que Molly esteja dormindo quando chegar. O motivo? A relação entre os dois não vai bem: Bloom sabe que a mulher, que é bela e admirada por muitos homens, o está traindo com seu empresário (dela, que é soprano, como foi dito antes). Nisso Molly é o oposto da fiel Penélope de Homero: é assim que Joyce nos apresenta a mulher de Bloom. E isso é um jogo, uma brincadeira do autor para com o leitor, entre tantas outras que o livro traz. Joyce faz isso com todos os seus personagens, apronta para o leitor brincadeiras, charadas, enigmas. Dessas coisas o livro está cheio e nem sempre (quase nunca, na verdade) é fácil decifrá-las sem ajuda.

Então é preciso ter em mente que sem algum (ou muito, depende) conhecimento prévio a leitura de Ulysses não irá muito longe, ficará extremamente difícil, complicada, aborrecida. Há gente que recomenda ler não apenas a Odisseia, de Homero, Hamlet, de Shakespeare, Dublinenses e Retrato do Artista Quando Jovem, do próprio Joyce, mas também uma introdução à literatura joyciana como o livro de Anthony Burgess, Homem Comum Enfim, ou o guia do próprio tradutor, Sim, eu Digo Sim, já citado. Foi o que usei: antes de ler cada episódio de Ulysses lia o capítulo correspondente no guia de Galindo. Ajudou um tanto, deu para entender o significado geral da obra e alguma outra coisa, mas o guia não traz explicação para tudo, como o próprio autor reconhece:

“Este livro não é um tratado acadêmico sobre o Ulysses. Ele também não é a chave de todos os enigmas nem a fonte de todos os dados. Foi inteiro pensado para o “leitor comum” e prefere partir do princípio de que o Ulysses — complexo, denso etc. — de certa forma ainda padece por causa dessas reputações. Elas são todas verdadeiras, reconheçamos, mas talvez tenham obscurecido outros méritos e outros atrativos. A ideia básica aqui é a de que todo leitor interessado em literatura de qualidade tem a capacidade e o direito de passar pela experiência profundamente transformadora que é a leitura do romance de Joyce. E não apenas os especialistas. E não somente os obcecados por charadas e estruturas.”

Para finalizar, falando em textos complexos, charadas, enigmas e quetais, há pouco me lembrei de um conto de David Foster Wallace (de quem Galindo traduziu Graça Infinita em 2014) do livro Breves Entrevistas com Homens Hediondos, Datum centurio, que me pareceu mais a descrição de um disco rígido, um DVD, uma listagem de um programa de computação, ou coisa parecida, não me recordo bem (li faz alguns anos), do que propriamente uma peça literária. Ainda que não longo, foi o texto de leitura mais desagradável do volume, o mais difícil de chegar ao final, o mais hediondo. Perto dele Ulysses até que é um tanto palatável, e além de tudo tem aqui e ali pitadas de humor, zombaria e diversas curiosidades e esquisitices que amenizam nossa leitura, sem o que ela poderia ser encarada como algo parecido com um pé no saco do leitor. Do leitor comum, eu.