Menino de lugar nenhum - David Mitchell

David Mitchell - Menino de lugar nenhum, São Paulo, Companhia das Letras, 2008

Jace ou Jason Taylor, é um garoto de 13 anos que vive em Black Swan Green, condado de Worcestershire e estuda na escola pública local. Tem um sério problema de gagueira e faz tratamento com uma fonoaudióloga. Mas ainda sofre terrivelmente quando tem de responder às perguntas dos professores ou ler em voz alta na classe. Mesmo sabendo muitas das respostas, quase sempre se cala para não ser atacado pelo “carrasco” que habita sua garganta e que a trava, impedindo que fale fluentemente.

Por conta desse problema é motivo de riso e de maus-tratos de seus colegas mais velhos ou mais fortes – os valentões da escola e do pedaço. Para complicar um pouco mais, Jason tem praticamente como único amigo Mongol, garoto pobre que é assim apelidado pelos delinquentes escolares por não ser exatamente um modelo de esperteza e inteligência. Ele se chama verdadeiramente Dean Moran, mas o próprio Jason reconhece: “Mongol tem a minha altura e é um cara legal, mas, meu Deus, como ele fede a molho de carne!” E o pai de Mongol é chegadão num destilado...

Bem, mas os problemas de Jace vão além dessa amizade, da escola, das brincadeiras da rua ou no campo de futebol e das excursões pela floresta das redondezas - “nenhuma Amazônia”, é certo, mas igualmente povoada de mistérios. Também em casa muitas vezes nem tudo são flores. O pai é controlador e severo demais, a irmã mais velha não permite que ele ouça seus discos (especialmente Abbey Road, dos Beatles) ou mexa em seus pertences, etc. - ela chama Jason de “o Coiso”.

Sua mãe está mais ligada em decoração e reformas da casa do que em outras coisas: quer porque é moda, um laguinho com carpas no quintal, para desespero do marido – ela acabou de reformar o banheiro recentemente. E como os pais discutem com frequência ou vivem trocando ironias entre si, Jason também se preocupa com o fato de que eles possam se separar um dia...

Tudo isso e mais alguma coisa tornam-no um garoto introspectivo, que frequentemente conversa com seu próprio duplo, um tal Gêmeo Inexistente que inventou e que costumeiramente “age” (ou pensa) ao contrário do que ele agiria, especialmente em situações limítrofes. Além disso, costuma ter constantes pesadelos motivados por seu problema de gagueira, e não apenas quando está dormindo...

Mas ao mesmo tempo nós o vemos como um garoto inteligente e bem-humorado, que faz observações curiosas, engraçadas ou espirituosas sobre todas as coisas ou pessoas que o rodeiam ou das quais tem notícia (entre elas, p. e., Margaret Thatcher, a dama de ferro inglesa). Suas descobertas sobre amor e sexo e reflexões sobre esses assuntos, espalhadas ao longo de todo o livro, são verdadeiramente hilariantes. Isso torna o romance delicioso de se ler.

Se bem que Jace (ou algum valentão de sua escola) jamais usaria “delicioso” ou “hilariante” abertamente para designar algo; tampouco diria estar “adorando ler isso ou aquilo” ou alguma outra coisa. Então ele tem de se policiar não apenas para não gaguejar (o que pode igualmente indicar medo, insegurança, fragilidade, etc.), mas também para não incorrer no erro de usar certas palavras ou expressões verdadeiramente proibidas pelo bando escolar – dizer “lindo” em qualquer ocasião é, digamos, assinar a própria sentença de morte...

Pois, como dizem alguns dos delinquentes, menino que é homem de verdade não diz que acha alguma coisa "deliciosa" ou “linda” ou que está "adorando" algo, pois "isso é coisa de boiola, gay, veado, bichinha”, etc. Já não saber resolver um problema fácil de matemática ou algo similar é porque o sujeitinho não passa de um “retardado mental” mesmo. E quanto aos apelidos que eles se dão ou dão aos rivais, muitos deles são impublicáveis aqui.

Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell, se passa durante o ano de 1982, enquanto Margaret Thatcher governava o país e no Atlântico Sul ocorria a desastrada (para a Argentina) Guerra das Falklands (ou Malvinas). Então os argentinos são chamados das piores coisas possíveis, mas Jason reconhece que os hermanos são melhores do que os ingleses sim, mas numa única coisa: jogando futebol.

Resumindo agora um bocado essa ópera infanto-juvenil: as aventuras do garoto Jason Taylor quase sempre se resumem a apanhar dos colegas de escola mais velhos, ser roubado, espezinhado ou humilhado por eles. Mas incluem ainda sua estranha e curta amizade com uma idosa e sábia senhora dissidente da Alemanha Oriental, uma inesperada visita a um acampamento de - segundo os habitantes de Black Swan Green - perigosos ciganos, e ter encontrado, numa noite no parque de diversões local, a carteira perdida (e recheada de seiscentas libras esterlinas, uma fortuna então) de seu pior desafeto escolar e concorrente no amor de certa garota.

Todos esses episódios, e igualmente outros, vêm permeados de poesia, ternura, emoção e humor. Especialmente humor. E falando nisso, aqui vai um trecho do início do livro, quando Mongol, durante uma brincadeira sobre o gelo escorrega, cai de traseiro no chão e reclama: “Acho que sofri uma concussão.” Jace rapidamente retruca: “Pra sofrer uma concussão você precisa bater a cabeça. Por acaso seu cérebro fica na bunda?” Mais tarde ele escreve em suas anotações: “Que frase! Pena que ninguém importante estava ali pra ouvir.” E isso é apenas uma pequena amostra...

O livro de David Mitchell, que espero seja um dia tão cultuado quanto O Apanhador no Campo de Centeio (J. D. Salinger) ou David Copperfield (Charles Dickens), não somente foi para minha lista de melhores livros lidos nos últimos tempos como também para a galeria de meus favoritos; aqueles livros que merecem uma releitura um dia.