O coração dos heróis - David Malouf

Heróis e homens dos tempos homéricos num romance psicológico escrito com delicadeza e elegância

David Malouf - O coração dos heróis, SP, Leya Brasil, 2011

Onde termina a Ilíada homérica começa justamente a narrativa de O Coração dos Heróis, de David Malouf, que vai bem além desse ponto. A história original é conhecida: durante a guerra de Troia o grego Aquiles mata Heitor, o filho do rei troiano Príamo. Desse modo ele vinga a morte de Pátroclo, companheiro inseparável - ou seu amado, como querem Platão em O Banquete e a romancista Madeline Miller em A Canção de Aquiles. Em seguida, durante vários dias o vingativo e desesperado guerreiro arrasta o corpo profanado de Heitor pelas ruas e caminhos, quando deveria cremá-lo numa pira, segundo o costume da época. O ato do grego é uma humilhação para Troia, especialmente para Príamo.

Grande parte da narrativa é sobre a decisão do rei troiano de resgatar o corpo do filho em território inimigo. Antes que isso aconteça Malouf se aprofunda na descrição do caráter de seus personagens, primeiro de Aquiles, já nas páginas iniciais, depois ele escreve sobre Príamo e sua esposa, Hécuba. Mais tarde entra em cena o carroceiro Somax, homem do povo, contratado para ajudar Príamo a transportar o corpo de Heitor de volta para Troia. Seguem-se muitas páginas em que o rei e o carroceiro conversam, expõem abertamente ao leitor suas fraquezas em pensamentos ou em diálogos, e esse é certamente o ponto alto do livro, o capítulo de maior densidade.

Assim, o leitor não deve esperar empolgantes cenas de lutas, batalhas ou coisa parecida, pois não é propriamente o heroísmo dos personagens que está em questão, mas a sua humanidade. Seja Aquiles destroçado pela morte do adorado Pátroclo e enciumado do servo Automedonte, que colheu o último suspiro do companheiro, morto em seus braços, seja Príamo lamentando a morte do amado filho, observamos a transformação por que passam: de heróis e reis para seres humanos comuns. Daí que a dor de Príamo pouco difere da dor do carroceiro Somax, que também perdeu seu querido filho há pouco, não apenas ele. Mais uma vez fica evidente: O Coração dos Heróis não é um romance de guerra, é sobretudo um romance psicológico, escrito com certa delicadeza e bastante elegância, reconhecidos talentos de Malouf.

Mais algumas páginas e caminhamos para o resgate do corpo de Heitor, que é quando ocorre o encontro mítico entre Príamo e Aquiles, numa cena comovente, em que Aquiles, traído pelos sentidos e a emoção dos acontecimentos enxerga, na figura do velho rei, o próprio pai, Peleu. E também lhe vem à mente lembranças do filho Neoptólemo, que ele não vê faz nove anos, agora um rapaz de dezesseis. E temos Príamo implorando que Aquiles libere o corpo de Heitor para que em seguida se iniciem em Troia as cerimônias de luto e cremação. No final vem o posfácio pelo próprio Malouf

É claro que mundo afora as pessoas vão continuar lendo a Ilíada de Homero e certamente O Coração dos Heróis permanecerá desconhecido para muitos leitores. Mas elas perderão a oportunidade de ter muito próximos de si, em sua inteira humanidade, envoltos em lirismo e inquietação, personagens que há milênios são parte de um dos maiores épicos da civilização ocidental. Coisa que o livro de Malouf proporciona com maestria.