A (in) segurança em questão

ESPÍRITO SANTO, Lúcio Emílio & MEIRELES, Amauri. Entendendo a nossa Insegurança. Belo Horizonte: Ed. Instituto Brasileiro de Policiologia, 2003.

Lúcio Alves de Barros

(Resenha publicada na Revista IMPULSO. Revista de Ciências Sociais e Humanas. Piracicaba, SP, UNIMEP, Volume 15, maio-agosto de 2004, pp. 123-125)

A sensação que se tem na leitura do livro Entendendo a nossa Insegurança, dos coronéis e autores Lúcio Emílio do Espírito Santo e Amauri Meireles, é uma mistura de mal-estar, indignação, resignação e esperança acerca da segurança, ou melhor dizendo, da (in)segurança pública. Explico melhor: trata-se de uma obra indispensável para aqueles que estão discutindo os mitos que há anos têm invadido o cenário das políticas públicas de segurança no Brasil. Dentre tantos, que encontramos em projetos políticos e estudos acadêmicos, os autores salientam ser necessária e obrigatória a discussão do lugar da polícia no espectro do que chamam de defesa anti-infracional, isto é, um conjunto de ações e mecanismos destinados a controlar as ameaças ao corpo social e à liberdade dos indivíduos. “A defesa anti-infracional se organiza sob a forma de um grande sistema pluri-institucional, vinculando a polícia preventiva, a polícia judiciária, o ministério público, a justiça criminal, a defensoria pública e a administração prisional” (p. 59).

O argumento é bom, principalmente, quando se sabe que aumentar o efetivo da polícia e investir maiores recursos materiais não causam o esperado declínio nos índices de criminalidade e do medo (Kelling, G. L. & Pate, T., 1974; Beato F., 2002). A polícia não deve caminhar nesse sentido. Cumpre à instituição a garantia do sentimento de segurança e, mais do que nunca, cabe aos órgãos públicos, e, no caso, não só aqueles associados à "defesa e segurança social", participar dessa sempre e nova empreitada.

O livro é didático e, ao mesmo tempo, instrutivo. Os autores não economizaram linhas - em 424 páginas - para descrever o que chamam da Grande Reforma Policial, iniciada em 1967; a Teoria do Vértice de Causas e Efeitos do crime, a descrição e evidência de um conjunto de conceitos que há muito recebem diversas roupagens no campo acadêmico e, dentre tantos outros assuntos, o que chamam de conhecimento policiológico.

Em meio a palavras e conceituações cuidadosas, os autores não deixaram de chamar atenção para inúmeras controvérsias que invadem as políticas públicas no tocante às “soluções” criadas para equilibrar os índices de criminalidade e aumento da violência. Nesse caminho, Espírito Santo e Meireles não pouparam críticas ao Estado Brasileiro – deficiente no campo normativo, cognitivo e pragmático da defesa social – que não soube ou não teve o interesse em aproveitar os diversos projetos e iniciativas públicas/institucionais que deram resultado no Brasil e, notadamente, em Minas Gerais. Existe muita experiência. O que falta é o conhecimento sistematizado e a efetiva implementação e “vontade” política de equacionar o problema.

Dois argumentos aparecem de forma contundente na obra. O primeiro refere-se ao lugar destinado aos municípios no sistema de defesa social: “Tanto o executivo quanto o legislativo ignoraram a histórica exclusão do município (...), restringindo a contribuição inestimável dos níveis comunitários locais na prevenção, repressão ou sustimento de infrações administrativas e desvios de conduta – que, crescendo, transformaram-se em fatores geradores de insegurança – o que poderá estar sendo corrigido com o novo sistema de defesa social” (p. 17).

O segundo argumento diz respeito à famigerada divisão de atribuições entre a Polícia Civil (de conteúdo investigatório e judicial) e a Polícia Militar (responsável pela prevenção e repressão aos delitos). Apesar de não deixarem de lado os problemas cotidianos presentes nas relações entre essas duas forças, creio que os autores reduziram a problemática ao que chamam de senso de historicidade, evidenciando o problema político em detrimento dos obstáculos gerenciais que operam nessas instituições.

Os autores são convincentes ao relacionarem uma série de fatores que interferem no aumento da criminalidade e da violência. Não esqueceram que o “crime é normal” (Durkheim, E., 1990), “isto é, é, preciso ver o crime como transgressão a uma regra de convivência, possibilidade presente na vida de qualquer ser humano” (p. 385) e que o sentimento de insegurança faz parte das relações sociais. O paradoxo que se assenta no aumento da criminalidade, notadamente dos homicídios, no mesmo intervalo em que se abriram as instituições para a democracia, é revelado com acuidade na análise da Reconstrução Democrática (1988-2003). O período mencionado recebeu muitas críticas, principalmente no que se entendeu pelas autoridades por segurança pública. A Constituição de 1988 comportou leis inadequadas sobre essa temática. Primeiro, porque não marcou os limites do que se entendia por defesa social, defesa anti-infracional e nacional. Em segundo porque manteve a dicotomia entre as Polícias Civil e Militar, fato que se mostrou bastante danoso ao aparelho (que se acreditou existir) de segurança social. Para os autores, nesse período, a sociedade perdeu a oportunidade de aperfeiçoar e criar eficientes mecanismos de defesa social. Isto porque, foram poucos, ou quase inexistiram, interesses em modificar os imperativos constitucionais. A Polícia Militar continuou submetida aos poderes do Exército e tornou-se engessada pelos imperativos burocráticos e autoritários inaugurados em 1964.

As proposições ressaltadas pelos autores, aparentemente, caminham em um campo no qual existe um certo consenso no mundo acadêmico. Ressaltam a importância e o fortalecimento do capital social, a questão da responsabilidade dos setores repressores do Estado, a necessária integração dos órgãos de defesa social, a desmistificação do crime a partir da convergência de políticas públicas polivalentes capazes de atingir diversas dimensões da sociedade, e, por fim, o maior cuidado que devem ter as instituições midiáticas na veiculação de informações acerca da criminalidade e da violência.

O livro pode causar uma certa apreensão pela sua aparência e número de páginas, mas não deve deixar de ser lido. Algumas críticas tocam em cheio os cientistas sociais, outras atingem diretamente as autoridades públicas. Contudo, é possível encontrar uma leve omissão de fatos que sacudiram esse país, como foram as greves dos policiais iniciadas em 1997 em Belo Horizonte e os recentes achados das ciências sociais no que concerne às explicações do aumento da criminalidade e de homicídios, principalmente entre os jovens e adolescentes.

Creio não ser exagero afirmar que Espírito Santo e Meireles não se recusaram em abrir a "Caixa de Pandorra" que é o campo da “insegurança pública”. Eles foram bem sucedidos na função de nos tornar mais cientes dos problemas que fazem parte dessa temática. Contudo, não basta abrir e novamente fechar a porta da caixa. Muito do que se encontra no livro, já havia sido mencionado em artigos escritos pelos próprios autores na conhecida Revista O Alferes. Tantos outros assuntos, entretanto, não apareceram, possivelmente por economias de páginas e aproveitamento de outras oportunidades que certamente aparecerão. Espero que esse empreendimento, levado a efeito pelos coronéis, que fazem parte do Instituto Brasileiro de Policiologia, não termine por aqui, mas que gerem novos estudos no campo do que os autores chamam de policiologia.

Bibliografia

BEATO FILHO, Cláudio Chaves. Reinventar a polícia: a implementação de um programa de policiamento comunitário. Belo Horizonte, CRISP, UFMG, 2002. (mimeo).

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 14a ed.. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1990. A primeira edição é de 1895.

KELLING, George L.; PATE, Tony; DIECKMAN, Duane; BROWN, Charles E.. The Kansas City Preventive Patrol Experiment. A Summary Report. Washington, DC, Police Foudation, 1974.