Arthur Rimbaud : Poesia Completa e Cartas

[Texto originalmente publicado no www.culturanja.blogspot.com]

Vou deixar uma dica de leitura das boas. Dois volumes sobre o poeta Arthur Rimbaud. O primeiro volume: Poesia Completa de Arthur Rimbaud, lançado em 1994, em edição bilíngüe Português-Francês, com tradução de Ivo Barroso. O segundo volume contém as cartas pessoais de Rimbaud, e ainda não possui previsão para lançamento no Brasil, mas como eu já lí a versão em inglês, vou deixá-los com água na boca e chupando o dedo ao mesmo tempo. A editora deste tesouro é a Topbooks. E lá vamos nós!

Revolucionar a poesia francesa dos 16 aos 21 anos de idade e morrer doente aos quase 37, após vários anos desbravando o norte da África como empreiteiro e comerciante de armas. Esse é o resumo, superficialíssimo da vida de Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, nascido em 20 de outubro de 1854, na pequena cidade de Charleville, que fica na região de Champagne-Ardene, noroeste da França, fazendo fronteira com a Bélgica. Interessante é a bandeira dessa província: dois corações, um verde e um amarelo, entrelaçados - brasileiríssimo.

Interessantemente as influências deste jovem poeta, na época apelidado até de L'enfant Shakespeare (o jovem Shakespeare) não morreram junto com ele, pelo contrario, continuam crescendo a cada dia. Até hoje muitos – não só poetas – conclamam Rimbaud como uma importante influência. Nesse time estão pessoas do quilate de Vinícius de Moraes; os Simbolistas e Surrealistas; Cazuza; Jim Morrisson e outros tantos Beatniks como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg. A ideologia libertária da juventude revolucionária dos anos 60 e 70 encontrou respaldo na poesia e na própria vida de Rimbaud. Enfim, o conceito de liberdade na cultura ocidental tem um toque desse revolucionário poeta menino.

Depois de tanto revolucionar o mundo, Rimbaud chega ao Brasil em uma tradução que corresponda seu valor, em edição bilíngüe. Apesar de várias poesias esparsas já se encontrarem em português, não havia nada tão meticuloso relacionado a ele no pais. O trabalho do tradutor e também poeta Ivo Barroso, estudioso de Rimbaud desde os anos 50 quando publicou a tradução do “Soneto das Vogais” no suplemento dominical do Jornal do Brasil, seguindo pelos anos 70 quando publicou a tradução de “Une Saison En Enfer” (Uma estadia no inferno)” e finalmente em 1994, ao finalizar o primeiro volume da coleção sobre a qual falamos: a Poesia Completa de Arthur Rimbaud.

Neste primeiro volume, é possível vislumbrar toda a preocupação do tradutor em manter a métrica, o ritmo, a rima e o máximo possível das sutilezas do verso e da personalidade do jovem poeta francês, enfim, respeitar a essência da poesia de Rimbaud. O trabalho de tradução durou muitos anos de dedicação integral, garimpando-se mundo afora livros, variantes, curiosidades sobre o poeta. É nesse livro onde se percebe as idéias e versos que contaminaram milhares de outros poetas posteriores Rimbaud. Aqui vai um exemplo:

"Le Bateau Ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,

Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:

De Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles

Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J' étais insoucieux de tous les équipages,

Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.

Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages

Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

...................................

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,

L'eau verte pénétra ma coque de sapin

Et des taches de vins bleus et des vomissures

Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème

De la Mer, infusé d'astres , et lactescent,

Dévorant les azurs verts; où, flottaison blême

Et ravie, un noyé pensif parfois descend;

...................................

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache

Noire et froide où vers le créspuscule embaumé

Un enfant accroupi plein de tristesses , lâche

Un bateau frêle comme un papillon de mai.

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,

Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,

Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,

Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

O Barco Ébrio

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,

Não me sentia mais atado aos sirgadores;

Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,

Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,

Fossem trigo flamengo ou algodão inglês.

Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,

Pelos Rios segui, liberto desta vez.

...................................

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,

A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então

De azuis manchas de vinho e vômitos escuros

Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema

Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga

O verde-azul, por onde, aparição extrema

E lívida, um cadáver pensativo vaga;

...................................

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,

Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,

A que um menino chega e tristemente lança

Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,

A esteira perseguir dos barcos de algodões,

Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,

Nem vogar sob a vista horrível dos pontões."

Neste poema (parcialmente citado), o Rimbaud cria a figura do barco louco, embriagado de infinito, navegando ao acaso, rumando ao desconhecido. O barco é, na verdade, uma metáfora para o poeta, o Eu, a incerteza da vida.

O segundo volume, ainda não lançado no Brasil, mas conforme o autor, está em processo de finalização, encontramos as cartas que Arthur Rimbaud mandava para sua família e amigos. As cartas datam do início de 1870 até 09 de novembro de 1891, um dia antes de sua morte, doente de tifo, sem uma perna, num hospital em Marselha, na França. Tive o prazer de ler este livro na versão em inglês, com tradução de outro expert em Rimbaud: Wyatt Mason.

Em 1870, Rimbaud tinha apenas 16 anos, e em suas cartas discutia poesia, criação poética e coerência entre a vida do poeta e sua poesia. Cartas maravilhosas, onde se percebe a genialidade do garoto. É nessa fase que ele inicia sua relação homossexual e turbulenta com Paul Verlaine, também um grande poeta francês, com o qual vai morar em Paris. Também é possível ler em várias das cartas, versões de alguns poemas ainda inacabados naquela época, para os quais Arthur pedia sugestões (ele gostava de discutir suas obras com amigos poetas) proporcionando uma visão mais profunda sobre a real significação daqueles versos.

É interessante ver a mudança no assunto das cartas a partir de 1875, onde Arthur, durante uma longa caminhada pela Europa (sim, à pé mesmo!) começa a se desinteressar pela poesia e, progressivamente, a correspondência do poeta que decretou a necessidade de se “reinventar o amor” torna-se a correspondência de um homem comum destinada a sua família distante. Durante essa segunda fase de sua vida, acompanhamos o poeta em sua jornada solitária pelo norte da África e por sua alma inquieta. Não há mais poesia, são apenas reflexões sobre o que efetivamente é a vida. Porém, entre pedidos de livros de agrimensura, dicionários de árabe, reclamações sobre o calor infernal da região e demais aspectos do choque cultural, vemos muitas reflexões sobre a vida, sem poesia, mas bastante tocantes. Tão impressionantes quanto seus versos que exalavam rebeldia, agonia e erotismo.

Se está a procura de bons versos que destrincham a essência da alma, se busca inspiração para tocar a vida em frente, ou criar coragem para mudá-la radicalmente, encontrará nestes dois volumes deliciosamente inspiradores.

[Para mais resenhas deste autor e de outros, acesse também www.culturanja.blogspot.com]