Leitura vadia de Relembranças, Pedro Leopoldo pra lembrar

Leio numa noite que já se torna fria a poesia de Rodrigo Vianna, Relembranças, Pedro Leopoldo pra lembrar, Editora Tavares, 2008.

De uma história tornada lembrança fala-nos o poeta, entregando-nos sua biografia, sua grafia e os fios com que tece e embala os testemunhos de sua cidade. Em seu embalo poético dormem sombras e acordam estrelas. No passeio turístico a que nos convida Rodrigo comparecem pigarros, teares, confissões, tintas... cenários humanos que bordam e tingem o tecido urbano vivo na memória de seu escrevente.

A escrita de uma cidade vivente – na palavra – é exercício de expurgo da morte de sentido, ao mesmo tempo que convite para embalo de nossas particulares – nem sempre coincidentes – lembranças dos mesmos lugares, pessoas e vícios de que nos fala Vianna. Perambulo por Pedro Leopoldo dita em Rodrigo: busco linhas e entrelinhas, vejo rugas nas mãos de quem assim descreve sua cidade. Vivo a leitura de um livro instigante e mordaz.

O rigor de sua escrita e o cuidado com a lembrança são capazes de encenar uma cidade irremediavelmente morta, uma queixa-lamento de coisa finda e linda. Curiosamente, são também capazes de atualizar a morte na memória poética, revificando-retificando o sonho de uma harmonia social ou mesmo de uma convivência plena de afetos, amores – não só desfeitos mas jamais refeitos. Ao percorrer as ruas, as pessoas e as entranhas da terra, Rodrigo não é somente calcário e pó: é bicho-homem capaz de devorar o passado, lançando-nos ao imediato presente – inventário de perdas e expiações.

A cidade-cenário que surge da lente de Enrique e Ataliba e do baú de Rodrigo nos invoca a deixar a ver cicatrizes, forçando a olhar o céu que risca o solo com luzes, sombras, vazios... e os tantos tons de cinzas de que foram capazes de expressar todas as foto(grafias) de Relembranças.

Arrisco dizer que Rodrigo é também um romântico: [estou eu aqui a descontar nele o que José Issa fez comigo]. É noiva morta a sua cidade. Em seu cemitério afetivo e histórico, atualiza o escritor o viúvo explícito numa barroca escrita, fazendo viver e lembrar a poesia capaz de inspirar outros românticos a chorar por suas próprias lembranças perdidas, talvez carcomidas.

Ler, nessa medida, é re-fazer, como lembrar não é reviver, mas também re-fazer. Escrita edificadora de cenários – muitos deles já suprimidos da paisagem urbana – mas ainda incômodos e belos na memória do poeta. A refazenda de sua cidade é leve e profunda, tal como são as coisas de brisa e calcário na cidade dos sonhos.

Por tudo isso, recomendo a apreciação da admirável poesia de Rodrigo. Um convite a passear pelos sítios e domínios de sua-nossa lembrança e uma forma de prestar homenagem ao poeta por legar aos nossos filhos o registro poético e ético de uma cidade plena de vida e lembrança, mas infelizmente às voltas com a insepultura de sua destruição histórica.

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 30/04/2008
Código do texto: T969189
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