Breve análise de alguns haicais de Flora Thomé

Sobre vitórias-régias

O sol se derrama

Compondo girassóis.

Paisagem urbana:

parabólicas no ar.

Homem implora companhia.

Quase flor

quase flora

falta adubo.

..............................................................

Outono:

Nudez nas árvores

Mudez no coração.

Longa é a noite

Com pernilongos.

Mais longa é a sós.

Silêncio esfolado

Não vai, nem vem.

Uma ausência cresce.

Não lamentes

pétalas desfolhadas.

Outras há... outras virão!

No mundo surdo-mudo

palavras brotam das mãos

deslaçando nós.

Me chamam de Flora

A flor

Que não se aflora.

Quando te sinto

Nada me aflige.

Alma enxuta. Ponto final.

Abraços sem pressa,

Adeus ou melancolia.

Abraços feitos de nós.

Poupar desejos

E abraços

é não ser matinal.

(Flora Thomé)

Breve análise de alguns haicais de Flora Thomé.

Por Ana Claudia Brida.

O haicai é uma composição poética de origem japonesa, composta de uma estrofe com apenas três versos. A sua inclusão na poesia brasileira deu-se através dos poetas modernistas que buscavam a inovação nas formas literárias.

Em Mato Grosso do Sul, quem explorou com afinco a estrutura dos haicais foi Flora Thomé, poetisa natural de Três Lagoas. Grande parte da sua obra poética retrata o ponto de vista da Natureza sendo tomada pela civilização moderna, como no texto que se inicia com o verso “Paisagem urbana”.

Devido a variedade de haicais compostos pela autora, serão analisados neste trabalho apenas doze deles, sendo que seis abordam o tema “natureza” e os outros seis abordam o tema “solidão”. A seguir, breve análise dos seis primeiros haicais.

No primeiro, Flora Thomé retrata que através do reflexo do sol sobre as vitórias-régias, as mesmas se tornam amarelas como os girassóis; vale ressaltar que ambas as flores têm uma característica em comum: são grandes e vistosas. Ao segundo poema, Flora faz um retrato da contemporaneidade ao mencionar que a paisagem urbana é composta por antenas parabólicas, ou seja, grandes flores de metal e sem vida, causando no homem um sentimento de solidão, uma vez que sendo ele um ser vivo, não poderia viver só, num ambiente tão artificial.

No terceiro texto, a poetisa tenta mostrar que apesar de todo o seu conhecimento, ela está sempre disposta a aprender mais sobre a vida, onde o verso “Falta adubo” aponta para essa sede de conhecimento que causa nela uma certa inquietação, como se ela fosse um botão de uma flor (“Quase flor”) que precisa de vários cuidados para florescer em sua plenitude.

No quarto haicai, a autora passa uma advertência ao leitor, para que este não se prenda aos fatos não-satisfatórios do passado, mas que encare o presente e o futuro com a certeza de que, mesmo que algumas coisas se percam, outras serão ganhas na mesma medida, tal como numa planta, onde as flores nascem e morrem simultaneamente. O quinto poema nos permite duas interpretações: a primeira, que num mundo onde não há entendimento, um gesto simples de bondade que se realize, quebra muitas barreiras; a segunda interpretação refere-se à linguagem de sinais utilizada pelas pessoas portadoras de deficiência auditiva, pois através das dificuldades enfrentadas, eles ainda encontram formas de se expressar e se comunicar com os demais. O ponto interessante deste poema é o verbo “brotar” utilizado pela autora, verbo esse que denota romper, desabrochar, ou seja, as palavras brotam como flores que rompem a terra e espalham toda a sua beleza e perfume.

O último poema refere-se à própria autora e ao significado de seu nome, que se assimila a uma flor que ainda não brotou; talvez com isso a poetisa queira dizer que ainda não atingiu seus objetivos, como nos mostra os versos “a flor / que não se aflora”.

Intertextualizando esses seis poemas, vemos uma figura predominante: a imagem da flor, que costumadamente representa um princípio passivo que caracteriza a própria feminilidade. Como o haicai é de origem japonesa, também se encontra uma simbologia dessa origem para a flor, que é considerada um modelo do desenvolvimento da manifestação, da arte espontânea e ao mesmo tempo perfeita, embora efêmera.

Assim, nos poemas de Flora Thomé impera a sua feminilidade, constituída de imagens delicadas de flores (“quase flor”, “me chamam de flora / a flor”) e termos que remetem ao desenvolvimento efêmero (“outras há... outras virão!”), bem como há as imagens que representam as diversas formas de flores (“vitórias-régias”, “girassóis”, “parabólicas”).

O efêmero pode ser caracterizado não apenas através de símbolos escolhidos pela autora, mas também pela estrutura poética adotada – o haicai – que é uma das menores manifestações poéticas existentes. Vale ressaltar que, para finalizar esta primeira parte, todos os termos remetem ao nome da poetisa, demonstrando um eu - lírico extremamente ativo e intimista. Passemos agora para a análise dos outros seis haicais de Flora Thomé, que tratam do tema “solidão”.

No primeiro, Flora retrata uma paisagem triste de outono, quando as árvores perdem suas folhas e entram em estado de dormência e compara-as com a solidão que estaria sentindo, fazendo uma simples troca de fonema em uma das palavras. Essa solidão também é vista no próximo poema, que nos revela a solidão como uma espécie de tortura, pois além dos pernilongos mencionados no segundo verso, há também a presença da insônia que é a conseqüência maior dessa solidão.

A impaciência, também causada pela solidão, é um fato visível no terceiro haicai, onde é demonstrado um certo incômodo pela ausência da pessoa amada, como nos mostra o último verso “Uma ausência cresce”. No quarto haicai, a poetisa tenta esquecer um pouco esse vazio ao relembrar o contato que vinha tendo com a sua metade, onde os versos “Quando te sinto / nada me aflige” mostram que seu estado solitário, ainda que torturante, é transitório, fato esse que ameniza um pouco a falta que ela sente do ser amado.

Já o texto seguinte retrata uma tristeza, um sentimento de perda que a autora tenta adiar no primeiro verso “Abraços sem pressa”, mas que se torna real no segundo “Adeus ou melancolia”. É neste verso que ela começa a retornar ao seu estado de solidão e inicia o ciclo novamente. O último verso “Abraços feitos de nós” é apresentado de forma ambígua, uma vez que a palavra nós possui dois significados: no primeiro, “nós” estaria empregado como pronome pessoal do caso reto, na primeira pessoa do plural. Assim, “Abraços feitos de nós” poderia ser entendido como “abraços feitos da gente”, no caso a autora e a pessoa a quem ela se refere; no segundo significado, o vocábulo “nós” poderia estar empregado na forma de objeto, no caso o nó, que aqui é visto como dificuldade, obstáculo, barreira. Assim, “abraços feitos de nós” poderia ser interpretado como “abraços feitos de barreiras”. Há ainda dentro desse ponto de vista, um outro lado deste verso a ser analisado: os nós a que a poetisa se refere poderiam ser aqueles nós da garganta, da vontade de chorar por estar se despedindo da pessoa amada. A atitude da autora neste poema é justificada no sexto e último desta seleção a ser analisada “Poupar desejos / e abraços / é não ser matinal”, uma vez que, ciente de toda a solidão que a espera, a poetisa deseja aproveitar ao máximo o momento ao lado do parceiro. Isso se aplica como a expressão latina Carpe Diem, que significa justamente aproveitar o dia, o momento presente sem se preocupar com o que irá suceder depois, sendo esta a mensagem deixada pela autora para os seus leitores neste último haicai.

Finalizando, os haicais selecionados para esta breve análise trazem na essência a necessidade humana de estar junto de outrem, amá-lo e receber seu amor de forma incondicional ao longo de suas vidas. Isso proporciona uma beleza incrível a esses haicais de Flora Thomé, que mostra uma maneira muito mais simples e encantadora de ver a poesia.

BIBLIOGRAFIA

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos. 16ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1986.

MAIA, João Domingues. Literatura: textos e técnicas. São Paulo: Ática, 1995.

SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 14/01/2009
Código do texto: T1384625
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.