A Revolução dos Bichos na Fazenda de Chico Buarque - III: Fazenda Modelo: novela pecuária, a obra de Chico Buarque

Resenha Crítica

Fazenda Modelo: novela pecuária, como o próprio título revela é uma novela. Esta narrativa, produzida no auge da Ditadura Militar, aborda sutilmente os problemas enfrentados pela sociedade, reprimida e emoldurada pelos mandos da censura da época.

A obra referida também é uma fábula, protagonizada por bois e vacas, faz uma alusão de como o povo brasileiro se submetia ao governo durante a ditadura militar, iniciada com o Golpe de 1964.

Fazenda Modelo: novela pecuária é uma alegoria do Brasil: ao invés de indivíduos, bois e vacas como protagonistas e como cenário uma enorme fazenda, e não o país. Permeando o enredo, uma alegórica narrativa pecuarista representando o discurso político e ditador da época – científica e não ficcional em alguns pontos – aliás, o teor científico utilizado por Buarque só fez a colaborar com a alegoria do romance. O prefácio que recomenda o livro “a todos os pecuaristas do mundo” e a vasta bibliografia técnica listada ao fim do volume, são indícios de que ao redigir a obra, Buarque estava fundamentado, sabia exatamente como e o que iria retratar, mas de forma muito enrustida, as vezes, em certos trechos confusa e de difícil leitura. A filosofia começa onde termina a cientificidade (Bakhtin, 2003).

O quadro imaginário apresentado em Fazenda Modelo pode ser chamado de distópico. Configura, afinal, um mundo onde as ordens vigentes buscam o próprio benefício e o fim dos conflitos sociais, por meio da extirpação da liberdade popular.

A fazenda é chamada de Modelo tanto por ser dissimuladamente apresentada como ideal, um exemplo a ser seguido por qualquer pecuarista, quanto por alegoricamente representar, em uma escala menor, o regime ditatorial e o cerceamento do indivíduo contemporâneo à escritura. Conforme é sugerido, a atividade do pecuarista Juvenal, proprietário da Fazenda Modelo, embora também seja um boi, remete aos mandos e aos desmandos governamentais, enquanto ao povo, o gado, não é dada alternativa além da submissão. A paisagem é idealizada, luxuriante e tropical habitada por um “gado” natural, sexualmente não-reprimido.

Antes do advento do regime de Juvenal, vacas e touros associavam-se livremente e desfrutavam de sua liberdade para vagar, e a espontaneidade e a sexualidade eram livres, assim como o é para os bichos que não usam mordaças, ou seja, não têm donos.

Abá, é o ideal da raça e por isso precisa se reproduzir incessantemente, há trechos no livro os quais retratam os diversos processos de coleta de sêmen do boi – coleta de sêmen da vagina, vagina artificial, coleta por massagem retal e o mais aceito pelo boi e bem sucedido, a eletroejaculação. A descrição é enfadonha, metódica e científica, serve de alegoria ao processo de submissão do indivíduo ao Estado.

Abá é virtualmente destruído pelo programa da Fazenda Modelo, e nem sua virilidade, antes notória, se sustenta por muito, assim como os ideais de muitos jovens foram destruídos durante o regime militar.

Dessa forma, a seleção dos melhores indivíduos da raça, mostra a repressão e a decorrente perda de liberdade e da identidade individual experimentada, à época, pelos brasileiros.

A própria Fazenda Modelo acaba por ruir; o gado que a sustenta fica triste e insatisfeito, levando à dissolução do estabelecimento. Na conclusão, Juvenal manda liquidar o gado restante, decretando o fim da experiência pecuária na Fazenda Modelo e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à plantação de soja, tão-somente porque resulta mais barato, mais tratável e contém mais proteínas.

Chico Buarque ao produzir Fazenda Modelo foi um visionário, mesmo fazendo parte daquela sociedade cuja história discorria naquele presente, ele foi capaz de enxergar que a Ditadura teria um fim, que aquele regime não duraria muito, e foi assim que ela foi extinta, pelas próprias mãos de quem a criou.