Observação da Atemporalidade de temáticas no poema Elegia 1938

Resumo: Uma análise da lírica drummondiana e seus temas recorrentes, com observações da atemporalidade que transparece na atualidade destes conteúdos, aplicada ao poema Elegia 1938.

Resumen: Un análisis de la lírica drummondiana y sus temas recurrentes, con la observación de su carácter atemporal que comproba el contenido actual, aplicado a la poesía Elegia 1938.

As propostas de inovação e criação do movimento modernista, que se estenderam influenciando um longo período da produção literária brasileira, podem ser encontradas com relativa facilidade nas obras dos autores de poesia moderna. Em Carlos Drummond de Andrade tais características embora presentes, parecem suavizadas na lírica do poeta em face dos caracteres muito particulares de sua poesia, em que se destaca a presença de uma individualidade predominante acompanhada de freqüente expressão de melancolia, ceticismo, e desencanto, que surgem todos permeados de perceptível ironia.

Todavia, a individualidade que transparece em Drummond segue acompanhada de uma grande atenção voltada para as questões da realidade social, de maneira que apesar da individualidade da poesia ainda assim existe em sua obra grande carga de crítica à sociedade e seus problemas, bem como as questões do conflito com o mundo, e seus pormenores cotidianos que fazem sua poesia assumir um caráter prosaico.

Na lírica drummondiana a abordagem das relações do indivíduo com o mundo surge apreciada em três posições diversas, que se apresentam revelando ora um indivíduo superior ao mundo, ora inferior a ele, ou ainda em estado de igualdade, sendo que esta penúltima pode ser considerada a mais recorrente entre as três variedades.

Uma produção do autor que exemplifica tais características é a poesia ‘Elegia – 1938’, publicada no livro ‘Sentimento do mundo’, e cuja análise revela os trabalhos e temas de maior destaque em sua obra. Analisando o conteúdo poético desta poesia é possível perceber um individuo desencaixado em sua realidade, embora em aparência possa estar inserido no meio em que se movimenta; destarte apresenta-se logo uma temática do sentimento de inadaptação do ser humano.

As descrições oferecidas do sujeito-lírico constroem a imagem do homem do mundo, cujas ocupações maiores se resumem às questões do trabalho e relações sociais, tão banalizadas e uniformes entre as pessoas, e talvez por isso mesmo desprovidas na essência de significado e exemplo; assim parece que este sujeito não encontra satisfação nas ações que executa com tanto labor, e tampouco enxerga razão num mundo que nomeia como ‘caduco’.

“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

Onde as formas e ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais.”

A inadaptação do sujeito torna-se visível em varias passagens da poesia, e em especial por meio da exposição da sociedade que lhe rodeia, e suas diferenças em relação a esta. O quadro que desenha essa sociedade expõe bastante de seus preceitos e problemas, além da posição divergente do sujeito-lírico diante de seus contemporâneos, os quais são alcunhados como ‘heróis’ numa provável demonstração da ironia do autor.

O sentimento do desencaixe e pequenez deste ser é compreensível, pois percebemos que ele se ‘arrasta’ enquanto tem de observar a postura inatingível de seus companheiros heróis; heróis que ao contrario dele (que vive tomado de desejos sexuais, fome, e calor), são capazes de viver perfeitamente e ostentam sua virtude, renúncia, e sangue-frio. Este sujeito, parafraseando Fernando Pessoa, não tem par nisto tudo neste mundo em que se encontra, logo é natural que este ser sinta frio, estando desacompanhado de iguais.

“sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. [...]

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

E preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.”

Não obstante tais atributos, é possível questionar a suposta perfeição desses heróis, cuja riqueza é visível na simbologia dos guarda-chuvas de bronze com que enfrentam a neblina noturna, uma riqueza e ostentação apesar de suas supostas renúncias; afinal é questionável sua reclusão em bibliotecas, e mais ainda ao se considerar o adjetivo ‘sinistra’ que o poeta atribui de forma incomum a estes lugares, talvez em um sutil indício de alguma alienação por parte desses chamados heróis.

Entretanto, pode-se deduzir que tal questão não esteja presente apenas nestes heróis, mas também no próprio sujeito lírico que talvez busque maneiras de fuga muito semelhantes. A apresentação da noite na poesia recorda a idéia poética e cheia de significados que ela transmite de escuridão, mistério, e até proteção para uma secreta libertação pessoal. Possivelmente o sujeito do texto compartilha parte dessa concepção, posto que encontra na noite abrigo da ‘morte’ e da ‘Grande Maquina’ que lhe devolve a estado de pequenez durante o despertar.

“E sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer,

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

E te repõe, pequenino, [...]”

Outro indício dessa questão, ou ainda de outra questão presente em Drummond que observa a Idealização X Realidade, surge na poesia por meio de uma afirmação intrigante, que sugere a literatura como culpada de certa perda do sujeito; destarte podemos compreender que esse sujeito-lírico não aproveitou o sentimento do amor por talvez ter estado voltado para uma idealização que não correspondia a realidade, quem sabe em uma inconsciente fuga.

“A literatura estragou tuas melhores horas de amor.”

Efetivamente, a poesia é bastante individual e com acentuada ênfase nos visão do sujeito-lírico, que é mais facilmente percebida a partir da relação que há entre suas ações e o sentimento que têm em relação a elas; algumas dessas ações, aliás, precisam de uma análise mais apurada para que sua interpretação seja apreendida.

Um dos elementos que atraem atenção é a morte do ponto de vista do sujeito lírico, visto que este é um tema recorrente no poeta e apresenta-se em duas estrofes da poesia, havendo possivelmente uma relação entre ambas; efetivamente, a presença da morte pode ser considerada desde o título da poesia, porquanto se sabe que a elegia seria primitivamente uma forma de lamentação, muitas vezes destinada a lamentar por entes queridos ou ainda propor uma reflexão sobre a própria morte.

“E sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.”

“Caminhas entre mortos e com eles conversas.”

Ao serem considerados esses versos, percebe-se parcialmente a visão sujeito-lírico, e inicia-se um questionamento sobre qual realmente seria essa ‘morte’ por ele mencionada, posto que evidentemente não se trata de um sentido literal. Recordando o já discutido sentimento de desencaixe deste individuo, e o fato dele não participar dessa morte ‘dispensando-se’ dela ao dormir, é possível estabelecer alguma relação entre estes mortos com os quais ele trava conversação e a sociedade na qual ele não se adapta.

Analisando estes conflitos do individuo apresentado em ‘Elegia – 1938’, e buscando observar seus sentimentos de angústia, pequenez, inadaptação, e solidão, é perfeitamente compreensível o derrotismo e ceticismo que envolvem a última estrofe da poesia, na qual há um total reconhecimento da incapacidade desse individuo em relacionar-se e alterar a ordem da grande maquina em que vive, uma ‘maquina do mundo’ certamente movimentada pela ordem capitalista a julgar pela referência a um dos centros comerciais apontada por meio da ‘Ilha de Manhattan’.

“Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

Por que não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.”

Embora possa acreditar-se que a expressão desses sentimentos de ceticismo, desencaixe, e melancolia, tão recorrentes na poesia drummondiana, somente promovam um alto grau de individualidade, na verdade eles concorrem para o sucesso de um efeito contrário: Esses conflitos e angústias do sujeito-lírico, tão aparentemente particularizado e individual, são temas sociais e talvez universais, desde que esse individuo partilha de angustias comuns a outros seres – as do espírito inadaptado, a pequenez frente um mundo grandioso e mecânico, a solidão diante da sociedade, e ainda sua condição para com estes elementos. É extremamente humano, e ainda atual.

O sucesso deste trabalho na poesia de Carlos Drummond de Andrade, é ainda mais completo uma vez que tais temas, relevantes em maior ou menor escala, permanecem presentes no mundo contemporâneo após sessenta e nove anos de sua publicação. Conquanto a época de sua escritura fosse assombrada pela passagem da 2º Guerra Mundial, e hoje tais angústias mundiais não sejam sempre tão visíveis como nessa ocasião, ainda constituem um dos problemas do homem atual; isto, bem como seu desencaixe e solidão, ou a hipocrisia da sociedade que se volta para posturas idealizadas e promove má distribuição recordando a ‘Elegia-1938’ em que heróis hipócritas enfrentam a neblina com ricos guarda-chuvas de bronze ao passo que um outro indivíduo tem de se sujeitar a simplesmente ‘aceitar a chuva’ e desproteção que lhe cabe.

Assim sendo, a breve análise dessa produção de Carlos Drummond de Andrade reafirmar a reconhecida atemporalidade do autor, cujos temas permanecem presentes mesmo quando observados de uma perspectiva atual; sendo especialmente interessantes por conseguirem produzir uma individualidade que se volta para a realidade social.