"Tecendo a manhã." - Análise Literária do poema de João Cabral de Melo Neto.

Integrante da geração de quarenta e cinco, um importante corte na concepção literária nacional, João Cabral de Melo Neto caracterizou-se pela busca da construção consciente do verso.

João Cabral de Melo Neto inaugurou um novo modo de fazer poesia em nossa literatura. A essência de sua atividade poética mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade, que se apresentam como um desafio para a inteligência do poeta.

Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e volta-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva, sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto.

Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito.

A Educação pela Pedra, 1966; indica a depuração atingida pela poética de João Cabral de Melo Neto. A abordagem da realidade exige um contínuo processo de educação: os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemática para obterem a consistência e a resistência de uma pedra. Nesse processo, não cabem metáforas: o poeta deve buscar a simetria entre a estrutura da linguagem e da realidade representada.

A coletânea reúne 48 poemas marcados pelo didatismo do poema 'A Educação pela Pedra', seu núcleo temático.

Para análise:

Tecendo a Manhã.

João Cabral de Melo Neto

"Um galo sozinho não tece a manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro: de outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzam

os fios de sol de seus gritos de galo

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão".

Este poema faz parte de um conjunto de meta poemas lançado em mil novecentos e sessenta e seis que consolidaria a abordagem lógica da preciosa poesia de Cabral.

O poema apresenta uma construção em metro irregular, os versos não seguem um padrão referente ao número de sílabas poéticas, apesar da divisão em estrofes caracterizar o tratamento das divisões comuns em forma fixa.

Quanto ao ritmo, este elemento recebe um tratamento rico, complexo e incomum. O poeta utiliza desde a situação das silabas tônicas e pausas, sem buscar a regularidade padrão na realização dos poemas em forma fixa, realiza reiteradamente das homofonias para através da coincidência sonora e proximidade dos radicais, buscando um padrão sonoro coincidente e harmônico. Este tratamento estabeleceu uma relação original com os elementos de versificação e acrescentou valores importantes a obra deste poeta.

Os esquemas de rimas seguem um padrão de sonoridade ao fim de cada verso, na primeira estrofe o substantivo “galo” nos versos pares, alterna-se num metro irregular ausente de coincidência sonora; na segunda estrofe os três primeiros versos terminam com palavras de sonoridade semelhante, a proximidade delas no verso treze chega a realizar uma rima preciosa, pouco comum neste modelo de versificação.

Registremos a tensão poética por uma característica comum em Cabral, ainda no verso treze a utilização de um neologismo “entretendendo” que somado a ocorrência descrita anteriormente, estabelece a tensão que encerra as rimas consoantes da segunda estrofe.

Os três primeiros versos da segunda estrofe com a flexão verbal no gerúndio realizam a nasalização do inicio de quase todos os versos da segunda estrofe a exceção do último verso.

As aliterações dão apoio consistente à realização do ritmo, merece destaque /m/; /t/; /d/;/n/ e /g/. As assonâncias mais marcantes são /a/; /o/ e /ã/, apoiando as pausas necessárias dentro dos versos.

Outro dado pertinente é a repetição de palavras, cujo efeito é estabelecer a relação entre substantivo e verbo, merecem destaque: galo, grito, todos, toldos, manhã e as derivações de tecer.

Algumas ocorrências merecem atenção especial dentro de leitura criteriosa, os versos três e cinco apresentam a elisão do verbo lançar com as suas devidas flexões, este recurso evita o eco no verso seguinte sem obstruir a reiteração pela repetição que é uma das características marcantes neste poema, talvez uma forma de esquivar-se da anadiplose.

Outra ocorrência que merece atenção é no penúltimo verso o vocábulo “tecido” na função de substantivo, retorna no ultimo verso como verbo, em outra reiteração dentro da mesma restrição do vocabulário.

Analisando o tratamento estilístico podemos situar o poema como uma alegoria sobre a identidade coletiva através de uma realização, mas esta seria uma leitura mais abrangente que subordinaria o texto a uma única apreciação limitando a exposição de elementos empregados na construção desta figura maior.

Anotemos então isoladamente as figuras mais evidentes:

"Um galo sozinho não tece a manhã: (v.1) - Prosopopéia.

De um que apanhe esse grito que ele (v.3) – Metáfora - Elipse.

que apanhe o grito que um galo antes(v.5) – Metáfora – Elipse.

os fios de sol de seus gritos de galo (v.8) – Eufemismo.

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos. (v.9 e 10) – Prolepse e Silepse.

E se encorpando em tela, entre todos, (v.11)

se erguendo tenda, onde entrem todos, (v.12)

se entretendendo para todos, no toldo (v.13) – Polissíndeto.

se entretendendo para todos, no toldo (v.13) – Paranomasia – Neologismo.

(a manhã) que plana livre de armação. (v.14) - Anáfora.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo (v.15) - Anáfora – Metáfora.

que, tecido, se eleva por si: luz balão". (v.16) – Metáfora.

Não devemos deixar de considerar a abordagem metalingüística deste poema, e aproximar o canto do galo “tecendo a manhã” com o canto do poeta sendo tecido, verso a verso, fio a fio no poema.

Esta abordagem torna-se consistente logo após o neologismo “entretendendo” que funde entreter com entendendo abrindo a dimensão semântica do texto para a metalinguagem.

Podemos notar na divisão de estrofes dois movimentos bem assinalados, na primeira estrofe os galos convocam a manhã que se apresenta no verso dez e domina a segunda estrofe de forma leve (aérea), quando convocada no verso dezesseis: “que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

Diante dos elementos expostos podemos considerar o eu - lírico transitando por duas dimensões de tempo, presente e futuro, e duas situações: individual e coletiva.

Nestas oposições um único canto não será capaz de trazer a luz e anular a escuridão, torna-se necessário que o galo convoque todos os galos e que eles possam desta forma invocar a manhã, que pela alocação do artigo definido transforma-se em amanhã, numa clara projeção de futuro.

Não devemos permitir que nos escape a paráfrase do provérbio popular: “uma andorinha só não faz verão”; as flexões verbais que partem do presente, passa pelo gerúndio e particípio e retoma o presente no último verso, cobrindo um dos aspectos cruciais na elaboração de texto, a relação.

Convém ressaltar quanto a este aspecto que o poema é impecável, fica bastante evidente a repetição, a progressão, a não contradição e a relação no texto elaborado.

Para concluir, gostaria de caracterizar estas anotações como leitura, uma forma de identificar e valorizar um texto que demanda interesse e é incessantemente cogitado para debates acerca dos diversos movimentos literários contemporâneos.

Pesquisando em bibliografia recente há muito pouco relatado sobre os elementos específicos trabalhados em alguns textos deste poeta, este texto em particular por estar presente em inúmeros livros didáticos em diferentes níveis de educação pede uma atenção mais específica dos diletantes de poesia.

Desde já agradeço qualquer contribuição ou acréscimo, ainda que seja para aclarar qualquer aspecto que tenha sido anotado de forma imprecisa ou mesmo equivocada.