Metalinguagem – Diálogo entre poeta e poema pelos caminhos da poesia.

Há algum tempo atrás escrevi que o poeta afirma a poesia pela força dos seus poemas, desde então, voltei minha atenção para alguns meta poemas, todos os poetas de expressão significativa no ultimo século buscaram dialogar com poetas e poemas utilizando-se do seu material artístico.

Alguns dedicaram todo um volume ao passar em revista a atuação de determinada escola, como Cabral em Educação Pela Pedra, mas meu interesse se voltou integralmente para o dialogo proposto por Drummond em A Paixão Medida, um livro de mil novecentos e oitenta que por muito tempo ainda haverá de refletir na cabeça dos poetas reformando nossos versos.

Destaquei deste volume dois poemas que dialogam com emoção e técnica permitindo situar nossa atenção ao que somos e ao que nos falta. O poeta na estrita definição do termo não deve estar preso a esta ou aquela forma de expressão, deve compor conforme a sua conveniência, mas tal assertiva não propõe ignorar as competências que a trajetória dos artistas do passado sistematizou.

Havia no período em que viveu Drummond como agora quem considerasse versificação a burocracia da poesia, mas é apenas com atenção analítica e estudos que é possível avançar no desenvolvimento de uma arte dinâmica que vai sendo conformada junto com seu tempo, hábitos e direções.

Apresento em seguida os dois poemas em uma superficial leitura de confronto, onde o poeta que admiramos oferta uma generosa lição do alto de sua trajetória bem sucedida.

A paixão medida

Trocaica te amei, com ternura dáctila

e gesto espondeu.

Teus iambos aos meus com força entrelacei.

Em dia alcmânico, o instinto ropálico

rompeu, leonino,

a porta pentâmetra.

Gemido trilongo entre breves murmúrios.

E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,

senão a quebrada lembrança

de latina, de grega, inumerável delícia?

Carlos Drummond de Andrade

Arte poética

Uma breve uma longa, uma longa uma breve

uma longa duas breves

duas longas

duas breves entre duas longas

e tudo o mais é sentimento ou fingimento

levado pelo pé, abridor de aventura

conforme a cor da vida no papel.

Carlos Drummond de Andrade

Glossário:

Trocaíca – Referente à Troqueu, pé básico formado por uma sílaba longa e uma breve, o mesmo que Coreu; tem a seguinte representação gráfica: - U;

Dáctila – Referente à dáctilo, pé básico formado por uma sílaba longa e duas breves, refere-se ainda a determinado padrão de rima realizada por proparoxítonas, também chamada de rima esdrúxula; tem a seguinte representação gráfica – UU;

Espondeu - Pé composto formado por duas sílabas longas; tem a seguinte anotação gráfica --;

Iambo – Também conhecido por jambo, o pé formado por uma sílaba breve e uma longa, como um troqueu invertido; tem a seguinte anotação gráfica U-;

Alcmânicos – Referente à alcmanio, nome dado ao tetrâmetro dáctilo, devido ao poeta Alcman que o consagrou, tem a seguinte anotação gráfica: - UU, -UU, -UU, -UU, realizando um hendecassílabo regular;

Ropálico – Poema em metro crescente na razão de uma sílaba;

Leonino – Referente à ao padrão de rimas internas, também chamadas de rimas leoninas, onde a homofonia está situada nos hemistíquios ou unidades métricas (pés);

Pentâmetro – verso escrito em cinco pés iguais gerando uma anotação rítmica regular, o mais comum é o pentâmetro iâmbico na confecção dos decassílabos;

Trilongo – Referente à Molosso, pé composto formado por três sílabas longas, cuja anotação gráfica é: ---;

Ecóico – Padrão sonoro que aparece no verso pelo uso sucessivo da mesma rima, seria o uso ostensivo da rima leonina no mesmo verso;

Quebrada - São dois padrões de rima, uma chamada de mosaico, onde monossílabos e palavras curtas reproduzem a sonoridade desejada e, as quebradas propriamente ditas, quando a palavra é cortada no fim do verso;

Latina e grega – Refere-se à genealogia da nossa versificação;

Inumerável – Diz-se dos versos bárbaros, acima de doze sílabas fônicas, que possuem ritmo inumerável;

Quantitativo – É a base morfológica considerando a duração das sílabas, geralmente organizadas em pés ou metros, em seu tempo de prolação.

Longa – Duração da prolação da sílaba tônica na descrição quantitativa na prosódia greco-latina equivale ao tempo de duas breves, representa-se por um traço horizontal;

Breve – Na prosódia greco-latina é a silaba que tem duração de prolação breve, cujo tempo pode ser determinado como a metade da duração de uma longa, representa-se por um semicírculo côncavo.

Posto os termos específicos sobre versificação, como forma de subsidiar a leitura nas suas notas subjacentes, atentemos para o ritmo confeccionado verso a verso:

[b]A paixão medida[/b]

Tro/ [b]cai[/b]/ ca/ te a/[b]mei[/b],/[b] com[/b]/ ter/[b] nu[/b]/ ra/[b]dac[/b]/ (tila) (v.1)

U –, U U –, U – –, U -;

Iambo, Anapesto, Báquio e Iambo;

Decassílabo Heróico;

e/ [b]ges[/b]/ to es/ pon/ [b]deu[/b].(v,2)

Iambo, Anapesto;

Redondilha menor masculina;

[b]Teus[/b]/ [b]iam[/b]/ bos/ aos/ [b]meus[/b]/ [b]com[/b]/[b] for[/b]/ ça en/ tre/ la/[b]cei[/b]./ (v.3)

– - U U - - - U U U -

Jônico, Molosso e Peônio de quarta;

Hendecassílabo masculino;

Em/ [b]dia[/b]/ alc/[b]mâ[/b]/ ni/ co, o ins/[b] tin[/b]/ to/ ro/[b] pá[/b](lico) (v.4)

U – U – U U – U U –

Dipodia de Iambo, Dipodia de Anapesto;

Decassílabo em Gaita Galega;

rom/ [b]peu[/b],/ le/ o/[b]ni[/b](no),(v.5)

U – U U –

Iambo, Anapesto;

Redondilha menor feminina

a/ [b]por[/b]/ ta/ pen/[b] tâ[/b]/(metra).(v.6)

Iambo, Anapesto;

Redondilha menor esdrúxula

Ge/ [b]mi [/b]/ do/ tri/[b] lon[/b]/go en/tre/[b] bre[/b]/ves/ mur/[b]mu[/b](rios). (v.7)

U – U U – U U – U U –

Iambo, Tripodia de anapestos

Hendecassílabo feminino;

E/ que/[b] mais[/b],/ e/ que/ [b]mais[/b],/ no/ cre/[b] pus[/b]/ cu/ lo e/ [b]cói[/b](co), (v.8)

U U – U U – U U – U U – U U –

Alexandrino em tetrâmetro anapéstico;

se/ [b]não a[/b]/ que/[b] bra[/b]/ da/ lem/[b] bran[/b](ça) (v.9)

U – U – U U –

Dipodia de Iambos, Anapesto

Redondilha Maior feminina.

De/ la/[b] ti[/b]/ na,/ de/[b] gre[/b]/ ga, i/ nu/ me/[b] rá[/b]/ vel/ de/[b] li[/b](cia)? (v.10)

U U – U U – U U U – U U –

Dipodia de anapestos, Peônio de quarta e Anapesto;

Verso bárbaro.

Carlos Drummond de Andrade

[b] Arte poética[/b]

[b]U[/b]/ma/ [b]bre[/b]/ ve u/ma/ [b]lon[/b]/ ga, u/ma/ [b]lon[/b]/ ga u/ ma/ [b]bre[/b]/ (ve) (v.1)

- U – U U – U U – U U –

Crético, Tripodia de Anapestos

Alexandrino

[b]u[/b]/ ma/ [b]lon[/b]/ ga/[b] du[/b]/ as/[b] bre[/b]/(ves) (v.2)

– U – U – U –

Crético, Dipodia de Iambos

Redondilha Maior

[b]du[/b]/as/ [b]lon[/b]/(gas) (v.3)

Crético

Trissílabo

[b]du[/b]/ as/[b] bre[/b]/ves/[b] en[/b]/tre/[b] du[/b]/ as/[b] lon[/b]/(gas) (v.4)

Tripodia Trocaica, Crético

Eneassilabo.

e/ [b]tu[/b]/ do o/ [b]mais[/b]/ é/ sem/ ti/[b] men[/b]/to ou/ fin/ gi/[b]men[/b](to) (v.5)

U – U – U U U – U U U –

Dipodia de Iambos, Dipodia de peônios de quarta;

Dodecassílabo

le/ [b]va[/b]/ do/[b] pe[/b]/ lo/[b] pé[/b],/ a/ bri/[b] dor[/b]/ de a/ ven/ tu(ra)(v.6)

U – U – U – U U – U U –

Tripodia de Iambos, Dipodia de Anapestos;

Alexandrino;

con/ [b]for[/b]/ me a/ [b]cor[/b]/ da/[b] vi[/b]/ da/ no/ pa/ [b]pel[/b]. (v.7)

U – U – U – U U U –

Tripodia de Iambos, Peônio de quarta;

Decassílabo heróico.

Carlos Drummond de Andrade

Postas as anotações rítmicas, a nomenclatura do verso utilizado na composição além da situação das sílabas tônicas o poema começa a dar sentido a sua natureza.

Mediante a representação diversa da sonoridade e ritmo dos poemas Drummond realiza uma consideração madura sobre versificação, a técnica disponível para compor em versos. Utilizando-se de metros diversos, os mais freqüentes em forma fixa, variando a acentuação ao ponto de realizar as mais variadas unidades métricas na curta duração dos dois poemas.

Valendo-se do domínio dos aspectos menos rígidos da versificação Drummond anota na dimensão sintática e semântica anotações acessíveis apenas em tratados de versificação, põe a nu as estruturas do poema desvendando sua estrutura rítmica, fônica e sonora.

A diversidade de metros empregados pode dar a sensação de composição em versos livres, mas esta definição não alcança o propósito do poema, por tudo que realiza e pela gama de informações que anota.

Estamos diante de dois meta poemas que cunham sob estrita licença poética, um rigor em forma e conteúdo que desafia as considerações de razão e emoção na composição do poema. Se no primeiro momento a diversidade de metros estrutura os versos em coincidências difusas, os pés e seus significados restabelecem a ordenação clássica em cada metro utilizado.

Em Arte Poética, o poeta divide o poema em dois movimentos e estruturas, e dentro destes movimentos suas dimensões abrindo caminhos para os desvendamentos do poema e seus propósitos.

Os primeiros quatro versos compõem o primeiro movimento do poema, em anotações de duração das sílabas poéticas, o poeta vai meticulosamente descrevendo pés, unidades rítmicas em versificação, e metros, extensão dos versos com nomenclatura definida. A saber, o primeiro verso ele descreve um antipasto num verso alexandrino; no segundo verso o pé corresponde a um dáctilo e o verso uma redondilha maior; no terceiro verso o pé descrito é um espondeu e o verso um trissílabo e no último verso deste movimento, o quarto do poema o poeta descreve um coriambo utilizando-se de um verso eneassílabo para esta descrição.

Os três versos que seguem abandonam a dimensão técnica da versificação clássica e veste seus valores sintáticos e semânticos; no verso cinco “e tudo mais é sentimento ou fingimento” numa estrutura dodecassilabíca o poeta realiza numa antítese um confronto entre razão e emoção numa intertextualidade direta com Autopsicografia de Pessoa e confrontando o ideário místico que encontra lugar em algumas escolas.

O verso que segue, “levado pelo pé, abridor de aventura” é uma típica provocação do inquieto itabirano; o alexandrino poderia ter uma elisão na sétima sílaba, mas uma vírgula aumenta a pausa natural da declamação criando um intervalo que não admite a elisão, transcrito no papel a elisão é possível, o alexandrino citado declamado na forma composta acelera, e a cadencia do verso fica prejudicada.

O verso final só poderia ser o decassílabo heróico clássico, com sua abertura binária e ritmo crescente, de peculiar apenas a opção masculina para o verso, muito comum nos sonetos modernistas de Drummond.

Enquanto parnasianos escreviam tratados para sancionar uma versificação apurada nos rigores, Drummond experimentava e dialogava com a contemporaneidade apenas recorrendo aos seus versos.

O primeiro poema a partir das notas acima vai tornando-se menos hermético; somado o glossário e a dinâmica de "Arte Poética" ficam estabelecidos meios e modos para relacionar a paixão madura e plena do poeta com a febre sensual, conformados nos termos e enunciados pertinentes a versificação.

Há detalhes que demandam maior cuidado, como a sua atenção a rima e suas denotações técnicas, pés e versos alternando com descrições eróticas de tal forma que a tessitura do poema vai sendo comparada a cópula, há uma descrição minuciosa do clichê da defloração, um preâmbulo cifrado que vai moldando as marcas de tempo desde a ternura do encantamento do primeiro verso até o êxtase do gozo em inumerável delícia, um verso bárbaro onde “inumerável” realiza fundo denotativo e conotativo em qualquer leitura deste verso.

Inicialmente o livro A Paixão Medida foi publicado de encomenda para um seleto publico, posteriormente foi destinado ao grande público e ainda hoje renova a sensibilidade leitora dos diletantes da poesia.

Há muita discussão sobre escrever com razão ou emoção, impossível haver vencedor quando só há estas opções; razão e emoção não se anulam, escrever não faz parte das nossas particularidades naturais é um saber que vai sendo constituído e agregando elementos para uma relação cada vez mais minuciosa diante dos textos, seja lendo ou produzindo razão e emoção estarão presentes desde a sensibilidade até a expressividade pela via formal da escrita.

Drummond põe as coisas nestas medidas, alfineta tratados de versificação ao recusá-los como cânone, mas não abdica da historicidade que sua sistematização proporciona, falseia uma escrita em versos livres enquanto elabora sofisticada leveza em diversos ritmos clássicos dentro de uma mesma estrutura poética. Provável que estes dois poemas escapassem da atenção do leitor menos afeito ao universo da versificação, mas a quem se destina estes poemas, abre-se um mundo, sem fronteiras e sem patrões.

Bibliografia:

Pequeno dicionário de arte poética – Campos, Geir – Cultrix 1978

A paixão medida – Andrade, Carlos Drummond. – Record 1980.

Tratado de versificação – Bilac, Olavo, Guimarães Passos. – Editora Moderna 1941.