A beleza do engenho em Camões: um poema antitético analisado por suas unidades.

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luis Vaz de Camões.

Não há quem resista à beleza e a profundidade deste soneto, ele flutua por tantas dimensões que de alguma forma ele desperta a sensibilidade por todos os elementos que o constitui. Paradoxalmente, ele tem uma estrutura complexa e é escrito sobre diversos fragmentos precisamente situados para capturar o leitor.

Ele como todos os poemas excedem a situações de belo, devem ser lidos, comentados, analisados, aferidos, interpretados, sentidos, absorvidos pelos diversos aspectos que a sua leitura revela.

Tentemos analisar os versos pela sua tonicidade e padrões de rimas.

Amor é fogo que arde sem se ver

A/ mor/ é/ fo/ go/ que ar*/ de/ sem/ se/ ver,

Este verso pode ser definido como pentâmetro jambico, ainda que a sinérese de tonicidade ascendente* não seja matéria pacífica na versificação. Explora a cadência binária desenhando um ritmo marcado onde os efeitos da aliteração /r/ proporcionam a fluência que a declamação pede neste primeiro verso.

Quanto ao estilo atentemos para a comparação que ele realiza de uma das características do fogo para depois negá-la na segunda metade do verso, o fogo que arde no amor é invisível.

*Sinérese de tonicidade ascendente – Neste exemplo a partícula “que” átona, herda parte da tonicidade da sílaba “ar” de ‘arde’ descrevendo uma duração maior para a prolação e tornando-se desta forma tônica.

é/ fe/ ri/ da/ que/ dói,/ e/ não/ se/ sen/ te;

Aqui temos o primeiro padrão desta estrofe, o substantivo “amor” está elidido e a dor do amor encontra-se subjacente a felicidade que a sua vivencia promete.

A parte estilística realiza o segundo padrão nesta estrofe uma antítese sofisticada, uma dor insensível, quase um paradoxo.

é/ um/ con/ ten/ ta/ men/ to/ des/ con/ ten/ te,

Este verso apresenta uma construção sofisticada do ritmo, apesar das tônicas mais evidentes realizarem o padrão de um decassílabo heróico as subtônicas reforçam a construção binária do ritmo, uma característica dos poetas que compõe de ouvido.

Quanto ao estilo os paralelos prosseguem e aqui se realizam num paradoxo, quase um oximoro, traduzindo toda a carga antitética deste poema.

é/ dor/ que/ de/ sa/ ti/ na/ sem/ do/er*.

O ritmo repete a realização do verso anterior. A realização estilística saiu do paradoxo anterior para realizar uma comparação e assim descrever a irracionalidade material da dor de amor. É necessário temer a dor que enlouquece, desatina, ainda que não doa.

Lancemos um último olhar para a realização que esta estrofe pretende.

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

O padrão das rimas é interpolado ABBA, em versos agudos (oxítonos) e graves (paroxítonos) numa estrutura anafórica.

O que costuma escapar aos leitores menos atentos nesta estrofe é a elisão do substantivo amor, elidido na estrutura anafórica, mas realizando a condição de substantivo, detalhe capital para a situação do poema.

É/ um/ não/ que/ rer/ mais/ que/ bem/ que/ rer;

O ritmo conforma-se dentro do padrão já determinado na estrofe anterior, com tonicidade marcante na abertura do verso e um decréscimo bem ajustado em polissíndeto pela partícula “que”; reparem três tônicas e a primeira partícula, duas tônicas e a segunda partícula e finalmente as duas ultimas tônicas dentro do mesmo padrão.

é/ um/ an/ dar/ so/ li/ tá/ rio/ en/ tre a/ gen/te;

Permanece o padrão rítmico e os paralelos antitéticos na parte estilística. Quanto a versificação há encontros vocálicos que admitem a elisão e um hiato que não admite, que anoto apenas para reforçar as condições que possibilitam a assimilação de outra sílaba.

é/ nun/ ca/ con/ ten /tar/ -se/ de/ con/ ten/ te;

O padrão rítmico vem sendo mantido estilisticamente repete-se a figura do terceiro verso da primeira estrofe, anote, porém, que neste verso há uma inversão provocada por uma incapacidade aguda de preencher as demandas do amor mesmo quando ele se realiza, a inversão do esvaziamento no verso que ele se refere, aqui o contentamento é excessivo.

é/ um/ cui/dar/ que/ ga/nha em/ se/ per/der.

O ritmo segue impecável e a condução estilística neste verso consolida pela utilização arbitrária dos verbos para construir uma poderosa antítese.

Analisando a estrofe:

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

Permanece o padrão interpolado para as rimas e versos.

O substantivo “amor” que se encontrava elidido na anáfora anterior flexiona para a condição de verbo “amar” mudando a situação de sujeito para estado e alterando a relação de contigüidade pela aplicação do infinitivo.

Predomina nesta estrofe a realização semântica, amar é um desvario, pois cada verso pode ser traduzido pela intensidade e excessos. Duas negativas, não e nunca se alternam com paradoxos resultando numa superposição antitética que constrói o nexo do poema.

É/ que/ rer/ es/ tar/ pre/ so/ por/ von/ ta/de;

O ritmo é uma constante e os paralelos seguem conformando a antítese.

é/ ser/ vir/ a/ quem/ ven/ ce, o/ ven/ ce/ dor;

Este ponto do poema realiza uma preciosa lição da conformação semântica, a figura do vencedor está semanticamente obstruída e de difícil definição pelo que o poeta anotou. A tensão semântica é tal que o prêmio para vencedor e vencido é o mesmo e a identidade de amante e amado se confundem nesta difusão.

A antítese realizada com a licença de uma anástrofe imperfeita, mas adequadamente aplicada para a imagem produzida pelo verso.

é/ ter/ com/ quem/ nos/ ma/ ta,/ le/ al/ da/ de.

Os leitores mais atentos ao ritmo perceberão o uso ostensivo das tônicas no pé de abertura deste verso realizando uma catarse rítmica pela declamação das aliterações /m/ e /d/ que acrescenta o contraste entre “nos mata” e “lealdade”.

Analisando a estrofe:

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

“Amar” segue elidido, pois a construção semântica está calcada no estado, a estrutura anafórica se mantém; há recursos de construção presente nos dois últimos versos, artesanalmente trabalhados para estabelecer o preâmbulo que sua ultima unidade exige.

Mas/ co/ mo/ cau/ sar/ po/ de/ seu/ fa/ vor

O ritmo do poema tem a sua condução alterada, inicia o verso numa sílaba fraca e com sonoridade uniforme, a inversão “de causar pode” desacelera a cadência declamatória rompendo definitivamente com o padrão de sonoridade, neste ponto é a captura semântica que se sobrepõe para fechar o poema. A nota quanto ao estilo é a supressão da força antitética desenvolvida até aqui trazendo a atenção para a superfície do poema.

nos/ co/ ra/ ções/ hu/ ma/ nos/ a/ mi/ za/ de,

Permanece o ritmo pausado do verso anterior estabelecendo um nível menor de tensão que exige complementação no último verso. Estilisticamente segue o abandono a antítese.

se/ tão/ con/ trá/ rio a/ si/ é o/ mes/ mo A/ mor?

O ritmo retorna a cadência binária, apesar da tônica em sétima. Considerando aspectos de versificação há duas elisões a primeira parece conflitar com o exemplo no verso seis, mas o hiato absorve pacificamente a vogal numa supressão de gênero, a segunda elisão é típica, nada a comentar.

Semanticamente este verso retoma as antíteses e num movimento de contração finda num falso questionamento, pois o que deveria ser a dúvida na verdade é a explicação para o que parece inquirir, fechando de forma soberba as antíteses.

Analisando a estrofe:

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Os recursos mais notados na construção desta estrofe apontam para o propósito semântico, estilisticamente o poema abandona a estrutura anafórica e veste uma superfície quase denotativa, não fosse seu ultimo verso.

O ritmo binário retorna somente no último verso mostrando claramente o propósito catártico da indagação final, numa contração construída nos dois versos anteriores.

A realização antitética deste poema é uma das características que sustenta a força com que ele se faz presente em nossas memórias. O eu lírico ao tentar tornar inteligível o que é de natureza sensível percebe-se desprovido de ferramentas expressivas e conduz suas descrições para além do arbítrio das idealizações.

Transitando por imagens e sensações comuns, fogo, dor, solidão; somos conduzidos para o estranhamento dos extremos, finito e infinito, material e espiritual.

A expressão é conduzida ao limite numa tentativa de definir poeticamente a idealização do amor, neoplatonismo, em toda a sua tensão e fragilidade. O itinerário das antíteses leva a duas dimensões distintas e opostas, na primeira estrofe amor é maiúsculo, substantivo corresponde à idealização que perseguimos, mas imperfeitos que somos obtemos dela apenas a manifestação sensível da “dor que desatina”, explicitamente sensual, quando de fato, desejamos “que se sente sem doer”.

A segunda estrofe traz o amor na sua manifestação concreta, física, a realização possível do amor, bastante aquém da idealização. Esta tentativa de transpor logicamente a idealização do amor leva a considerações dos extremos e deixando uma série de questões que no final se conformam numa ultima indagação que sintetiza tudo o que o poema buscava expressar.

Há cuidados com a versificação em todo poema, há um nexo em cada unidade que o poema foi dividido, por isso esta forma de analisar; havemos ainda que considerar um vocabulário simples que permite a qualquer leitor adentrar no texto para iniciar o seu processo de leitura.

Apenas para acrescentar novos elementos nesta forma de análise atentemos para as marcas de tempo e espaço deixadas pelo poeta dentro da sua realização, apesar da proximidade que o tempo verbal realiza, a aplicação do verbo no infinitivo transforma o nosso poema numa peça atemporal, coloca amar numa circunstancia infinita e o espaço é a condição humana pela transição de substantivo para verbo onde Amor muda da condição ideal (substantivo) para situação real (verbo).

O ser humano quer o Amor, mas só consegue amar. Esta sentença traduz a condição geral concernente a toda humanidade e recaí sobre a limitação de cada indivíduo, o amor possível.

Está desta forma tudo aí, escrito e descrito no poema.

Notas de Antonio Cândido.

COMENTÁRIOS.

Trata-se de um soneto.

Significativo: adoção de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos), apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda ao tempo de Camões: o silogismo. Em geral, contém uma proposição ou uma série de proposições (ou algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar).

Este soneto obedece ao modelo clássico. E composto em decassílabos e obedece ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Isto permite a divisão do tema e a constituição de uma rica unidade sonora, na qual a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro ajuda ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da exposição poética (proposição, conclusões).

O decassílabo, como aqui aparece, é de invenção italiana, embora exista com outros ritmos na poesia de outras línguas. Verso capaz de conter uma emissão sonora prolongada, e bastante variada para se ajustar ao conteúdo.

Este soneto apresenta uma particularidade: a proposição é feita por uma justaposição de conceitos nos dois primeiros quartetos, estendendo-se ao primeiro terceto. Só nó último tem lugar à conclusão (que é uma conseqüência do exposto), que de ordinário principia no anterior.

Quanto à estrutura rítmica, notar que na parte propositiva (onze versos), todos os versos têm cesura na sexta silaba, permitindo um destaque de dois membros, o primeiro dos quais exprime a primeira parte de uma antítese, exprimindo o segundo a segunda parte. Vemos aqui a função lógica ou psicológica da métrica, ao ajustar-se à marcha intelectual e afetiva do poema.

Note-se ainda que o poeta recorre discretamente à aliteração, isto é, à freqüência num ou mais versos das mesmas consoantes, formando uma determinada constante sonora, ou antes, um efeito sonoro particular: /r/ no primeiro verso; /t/ no terceiro e sétimo; /d/ no quarto; /v/ no décimo, etc.

Quanto a outras circunstâncias exteriores à interpretação, como data de composição, situação na vida do poeta, etc., não há elementos no caso. Apenas um pormenor erudito de variantes.

INTERPRETAÇÃO

Primeira parte: aspecto expressivo formal.

Evidentemente se trata de um poema construído em torno de antíteses, organizadas longitudinalmente em forma simétrica, por efeito da cesura significativa, dando nítida impressão de estrutura bilateral regular, ordenada em torno de uma tensão dialética. São duas séries de membros que se opõem, prolongando durante onze versos um movimento de entrechoque.

Esta forma estrutural geral é movimentada por uma progressão constante do argumento poético, manifestadas inicialmente pelo efeito de acúmulo das imagens, que acabam criando uma atmosfera de antítese; posteriormente pela abstração progressiva das categorias gramaticais básicas, que são no caso vocábulos chaves do ponto de vista poético.

Assim é que temos sucessivamente uma área de substantivos, uma área de verbos substantivados e uma área de verbos.

Substantivos: primeira estrofe: fogo, ferida, contentamento, dor.

Verbos substantivados: segunda estrofe: um querer, um andar (solitário pode ser substantivo ou adjetivo, aliás; dupla leitura possível). Transição no terceiro verso que prepara a passagem para a área seguinte verbal (/um/ nunca contentar-se).

Verbos: terceira estrofe, e já fim da segunda: querer estar, servir, ter.

Trata-se de um nítido processo de abstração, que revela a passagem do estado passivo do sujeito poético à sua ação, intensificando a sua força emocional. Ainda sob este aspecto, note-se na área dos substantivos a evolução da causa material - fogo - para a conseqüência material imediata e apenas metaforicamente imaterial - ferida, - e dela para a conseqüência imaterial mediata - contentamento e dor, que são estados da sensibilidade.

Na última estrofe, a cesura* não divide o verso, há transposição ("enjam-bement**", e todo o terceto se apresenta como unidade expressiva coesa e ininterrupta, pela presença de uma conseqüência lógico-poética, sob a forma de interrogação. Esta interrogação exprime a perplexidade do poeta e permite transitar à nossa segunda parte. (Ver nota abaixo).

Segunda parte: aspecto expressivo existencial.

Este soneto exprime, sob aparente rigidez lógica, uma densa e dramática tensão existencial; é o encerramento de uma profunda experiência humana, baseada na perplexidade ante o caráter contraditório (bilateral, para usar a expressão aplicada à forma estrutural do soneto) da vida humana.

A vida é contraditória, e como os poetas não cansam de lembrar, amor e ódio, prazer e dor, alegria e tristeza, andam juntos. Sabemos hoje pela psicologia moderna que isto não constitui, para a ciência, motivo de perplexidade, mas a própria realidade dos sentimentos de toda a personalidade. A arte percebeu antes da ciência.

No soneto de Camões há uma rebeldia apenas retórica, sob a perplexidade do último terceto. Mas no corpo dialético do poema reponta uma aceitação das duas metades da vida, pelo conhecimento do seu caráter inevitável.

A profunda experiência de um homem que viveu guerras, prisão, vícios, gozos do espírito, leva-o a esta análise que reconhece a divisão na unidade. E a própria conclusão perplexa do fim é o reconhecimento de que a unidade se sobrepõe afinal à divisão do ser no plano da experiência humana total. O amor é tudo o que vimos, e ele é aspiração de plenitude graças à qual o nosso ser se organiza e se sente existir. Grande mistério - sugere o poeta - que sendo tão aparentemente oposto à unidade do ser, ele seja um unificador dos seres (na medida em que é amizade).

A simetria antitética perfeitamente regular exprime a presença de uma ordem no caos. O espírito unifica no plano da arte as contradições da vida, não as destruindo, mas integrando-as.

Nota: Seria possível representar graficamente o soneto de Camões, levando em conta a estrutura antitética das três primeiras estrofes, cortadas verticalmente pela cesura no 6a verso, e o ritmo unificador da estrofe final.

Cesura* – Corte ou pausa que se observa como elemento estrutural de certos versos, separando-lhe os membros métricos ou hemistíquios.

Enjambement** – O mesmo que cavalgamento; fenômeno que se verifica quando o sentido de uma frase é interrompido no final de um verso e vai completar-se no outro.

Candido, Antonio – O Estudo Analítico do Poema. Humanitas, 1996.

Campos, Geir – Pequeno Dicionário de Arte Poética. Cultrix, 1978.