Um gênero em extinção

Numa das cenas mais lembradas do romance “O corcunda de Notre-Dame”, de Victor Hugo, o arquidiácono da catedral de Notre-Dame, apontando para um livro e, em seguida, para um edifício, diz: “Isto matará aquilo”. Victor Hugo inspirou-se numa frase dita no século XV, época em que apareciam os primeiros livros impressos, e que manifestava o temor da Igreja com relação à divulgação de idéias através dos livros. A profecia se realizou: o livro matou o edifício; não era mais necessário ir à igreja para adquirir conhecimento, que passou a ser oferecido pelos livros impressos.

Toda tecnologia surge para substituir uma tecnologia anterior: o livro substituiu o edifício, o automóvel substituiu o cavalo, o microcomputador substituiu a máquina de escrever. Os exemplos se multiplicam. E nem poderia ser de outro modo; ora, se o microcomputador só apresenta vantagens em comparação à máquina de escrever, por que continuar a usar esta? Será que alguém gosta de prender os dedos nos vãos das teclas? E o barulho? Parece mais uma metralhadora!

Nem sempre, porém, a nova invenção supera a anterior.

O e-mail, por exemplo, destruiu uma antiga invenção sem substituí-la. Ele destruiu a carta e, não obstante tenha algumas vantagens sobre esta, não pôde substituí-la em todas as suas dimensões. Seu primeiro defeito, que divide com as demais formas virtuais de comunicação, é ser descartável. Um e-mail nós lemos e apagamos. Uma carta, geralmente, nós guardamos pelo resto da vida. Embora o e-mail também seja escrito, por sua efemeridade podemos equipará-lo à palavra num conhecido brocardo latino: verba volant, scripta manent – as palavras voam, os escritos permanecem.

Mas quais são as dimensões da carta tradicional que o e-mail não atingiu?

As cartas, como sabemos, constituem-se em valiosos documentos para o estudo de acontecimentos históricos e dos costumes da época em que foram escritas. Se alguém envia uma carta a um amigo noticiando um casamento, podemos encontrar nela o sistema de transporte, o vestuário, a culinária e tantos outros detalhes do lugar e da época em que se deu esse casamento.

A principal função das cartas sempre foi noticiar um fato a alguém. Em alguns casos, contudo, elas ultrapassam os limites da simples comunicação e formam um gênero literário independente. A carta, ou epístola, pode ter conteúdo filosófico, poético, político; enfim, pode tratar de qualquer assunto. O que identifica uma epístola é apenas a indicação de um destinatário, que pode ser fictício. Já sua estrutura e seu conteúdo têm variado muito de época para época; as epístolas latinas, por exemplo, são bem distintas dos romances epistolares que surgiram a partir do século XVIII.

O gênero epistolar foi amplamente cultivado na Antigüidade latina por escritores como Horácio e Sêneca. Só para se ter uma idéia de como se desenvolveu o gênero em Roma, havia vários tipos diferentes de cartas (carta privada, pública, oficial, poética, etc.), cada uma com características próprias. Passando pela Idade Média e pelo Renascimento, a carta alcançou o Século das Luzes em pleno vigor, com representantes como Voltaire e Diderot. Foi nesse mesmo século que Goethe escreveu o romance epistolar “Os sofrimentos do jovem Werther”, que inspirou gerações de escritores românticos em todo o mundo. Em língua portuguesa, Camões e Machado de Assis possuem uma correspondência de alto valor literário.

Agora a pergunta: como os e-mails, que sequer guardamos, irão substituir as cartas? Como substituirão essa literatura, construída pelos espíritos mais nobres de cada época desde a Antigüidade, se nem os guardamos? Voltando à afirmação do início, nem toda nova invenção substitui plenamente a anterior; o e-mail pode ser mais rápido, mais barato e mais prático do que a carta tradicional, mas quem o escreve não produz literatura. Como a personagem do romance de Victor Hugo, já podemos lamentar a morte de uma invenção pelo surgimento de outra. A diferença é que, no nosso caso, a nova tecnologia não substituiu a antiga.