Análise interpretativa ante as metáforas de Júlio Cortázar em “Alguns aspectos do conto”

Considerando o que expressou Cortázar no texto referência, percebe-se que as suas impressões metafóricas parecem querer expressar algo transcendente. Indo muito mais além do que parece ser uma teorização do conto, o autor trata de relatar, através de imagens, o sentimento que acompanha este conceito. Defende que é necessário se ter uma “idéia viva” do que vem a ser o conto, resultado de uma “batalha fraternal” que travam a vida (pela captação de elementos do real) e a expressão dessa própria vida. Mas o que sobra dessa “batalha”, senão essa expressão, a vida cumprindo sua estrada tal qual na realidade.

Ao autor cabe transmiti-la de forma sintetizada, tal qual “a lenda do barba ruiva” : ... “às vezes surge das águas um ser humano que pela manhã é um menino, ao meio-dia um rapaz de barbas ruivas e, pela noite, um velho de barbas brancas...”

Para o Julio Cortázar, este tipo de narrativa pode ser entendida como um tremor de água dentro de um cristal – primeira metáfora a ser analisada – que abrange uma fugacidade (o rápido movimento d´água) numa permanência (enclausurada em algo rígido fisicamente, mas que pode ser observado externamente). O surgimento abstrato, enigmático e casual desse canal de observação, é o grande responsável pela revelação da grandiosidade de certos contos, é que traz à tona toda a água e seu movimento (essência), é o resultado da ressonância oriunda da alquimia secreta (decodificada por nossas mentes), que só com imagens nos é transmitida.

Portanto, percebe-se que o conto revela-se como escrita diferenciada, que não privilegia ação e tramas ágeis, traz em si um caráter mais intimista. Trata-se de uma exibição de um estilo que mescla o lírico(1) e filosófico, que foge de um modelo tradicional de contar histórias. O conto tende a propiciar ao leitor a descoberta de um tipo de escrita, que se enquadra de forma verossímil à metáfora de Julio Cortázar, “qual o tremor de água dentro de um cristal”(2).

Os contos caracterizam-se mais pelas densidades humanas impressas nas pequenas tramas e pelo brilho da escrita, do estilo e da linguagem, do que propriamente pelas histórias narradas – seguindo a linha de abordagem da professora Dra. Sara Almarza, remeto-me a duas de suas indagações referentes ao papel ínfimo da história linearmente posta no papel: “O que isso importa (a história)?” - “Que diferença isso faz?”. Realmente em nada importa, o autor, o contista nada mais é que um criador de vibrações as quais se perdem os limites entre planos distintos da realidade, com farto uso do insólito(3) , do onírico(4), do fantasioso, alcançado unicamente com uma destacada eficiência técnica por parte do autor. Convém ainda, fazer-se mister à utilização da fantasia como combustível ficcional, refletindo na ênfase ao excepcional, ao estranho, ao absurdo

Mas surge outro questionamento: e a cota do leitor, reside aonde? Enfim, nesse caso temos o dever de destacar a carga cuja qual o leitor deve ter ao decifrar o caracol da linguagem - segunda metáfora a ser analisada - a tentar por meio de sua imaginação desentranhar o seu núcleo, seja ele qual for (na verdade a exatidão, a equação e as fórmulas não são importantes, mas a ânsia pela busca, pela descoberta e o produto dessa introspecção é que são). A densidade psicológica de certos contos remete o leitor a certos devaneios, que transformam a linearidade do eixo autor – leitor numa interrogação conduzida e alimentada pelo obscurantismo afeto aos rasgos do caracol: o infinito, a incerteza e a margem para múltiplas interpretações.

O fio da narrativa não se atém à realidade, a escrita serve como meio de expressão e reprodução de formas de representação alegórica(5). A linha aparentemente reta da realidade é substituída pela elipse (tal qual o tom esquivo e antagônico tratado por Julio Cortázar ao tentar definir o caracol da linguagem), circular (à imagem do mero caracol, secreto de sua essência e voltado para si mesmo conforme Cortázar); círculo que é figura e emblema dos contos em geral, que representa o onipresente, é dizer, em todos os lugares ao mesmo tempo sem começo, meio ou fim.

Concluo este pequeno trabalho ressaltando a importância do conto como contribuinte para apagar as fronteiras dos gêneros literários tradicionais, basta lembrar seu caráter esquivo e seus múltiplos e antagônicos aspectos. Os contos, segundo o próprio Autor, são secretos e voltados para si mesmo. Lembrando ainda de seu parentesco misterioso com a poesia, percebe-se mais pertinente o trecho de Cortázar, para quem o conto é um gênero de dificílima definição, gênero enfim “tão secreto e dobrado sobre si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário”.

NOTAS

(1)Diz-se do gênero de poesia em que o poeta canta as suas emoções e sentimentos íntimos. Dicionário Aurélio Século XXI.

(2)Metáfora constante da obra: “Alguns aspectos do conto” , Perspectiva, 1974, pp. 147-163.

(3)Anormal; incomum; extraordinário. Dicionário Aurélio Século XXI.

(4)Relativo a, ou próprio de sonhos. Dicionário Aurélio Século XXI.

(5)Imagem literária que possui sentido oculto e onde as abstrações ou coisas inanimadas são representadas por meio de personagens, enredos e situações. Enciclopédia Barsa (1966).

BIBLIOGRAFIA

Cortazar, Julio “Alguns aspectos do conto” , Valise de cronópio, São Paulo, Perspectiva, 1974, pp. 147-163.

Cascudo, Luís da Câmara, Lendas Brasileiras, Rio de Janeiro, Ediouro, 2000.

Fabrício de Andrade
Enviado por Fabrício de Andrade em 22/08/2007
Código do texto: T619418