AUTO DA BARCA DO INFERNO / ANÁLISE E....


AUTO DA BARCA DO INFERNO (GIL VICENTE)

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO BASEADA NO ESTABELECIMENTO
DO TEXTO PELO PROFESSOR SEGISMUNDO SPINA


Nosso trabalho vai abordar, principalmente, os planos moral e filosófico-religioso, sem deixar inteiramente de lado o plano social. Para tanto, partiremos de uma caracterização das personagens, tentando aplicar as noções de Consciência e Inconsciência; Bem e Mal; Virtude e Pecado. Com isso pretende-se especificar a função do Anjo e do Diabo no "plano divino" e chegar à constatação da existência de um círculo vicioso.É assim que, desenvolvendo o tema do "juízo" retratado na peça, pretendemos afirmar que a partir de uma repetição nos ciclos da Natureza, gera-se uma perenidade dos fatos.
As personagens envolvidas fazem parte das diversas camadas sociais e profissionais da época. O "Auto da Barca do Inferno" retrata a moral e os costumes dessa época:
Relacionado à nobreza, temos o fidalgo. Ele pretende privilégios, acompanha-se de um Moço que lhe carrega uma cadeira, deseja ser tratado com cortesia S. Spina (1973, p. 57).
Com relação à instituição religiosa, são mencionados dois aspectos: o clero, corrompido, na figura do frade dançando o tordião, portando armas de esgrima, levando a amante (Spina, 1973, pp. 65-66); os crentes, na figura dos quatro cavaleiros, felizes e vitoriosos por sua fé em Cristo. (idem, p. 78).
Amostra mais detalhada, nos fornece das classes profissionais, que de uma ou de outra forma exploram o próximo em proveito próprio: o onzeneiro, praticando aagiotagem (idem, p. 61); o sapateiro, abarcando lucros ilícitos (idem, p. 64); a alcoviteira, praticando a cirurgia genital e explorando a prostituição (idem, pp. 68-69); o corregedor e o procurador, exercendo a Justiça "segundo o que as partes trazem" (idem, p. 73).
Temos ainda elementos não integrados nesses grupos: o judeu, "vai à toa" porque é pessoa ruim (idem, p.71); o parvo, tolo, que, se errou, foi por simpleza (idem, p. 63); o enforcado, tão sem personalidade ao enforcar-se, induzido por outro, com esperança de alcançar o céu com tal ato (idem, p. 76).
Isso é o que pode ser deduzido de forma geral. Certamente notamos que algumas personagens, em sua complexidade enquadram-se em mais de uma dessas classificações, mas isso se fará por detalhes mais sutis, que não atentam ao nosso objetivo.
Ao chegar à "praia purgatória", cada personagem traz sua bagagem, conforme segue:
-fidalgo: tirania, senhorio, manto, cadeira;
-onzeneiro: bolsão;
-parvo: simpleza;
-sapateiro: quatro forminhas;
-frade: dança, amante, armas de esgrima;
-alcoviteira: arcas de feitiço, instrumentos de cirurgia genital, moças que vendia;
-judeu: bode;
-corregedor: feitos (processos);
-procurador: livros;
-enforcado: furtos, laço;
-cavaleiros: fé em Cristo.

Cada personagem traz consigo pertences que, de alguma forma, caracterizam seu tipo de vida anterior. No caso das personagens que vão para a "barca do inferno", a carga é justamente o que os impede de serem aceitos pelo "anjo". Subentende-se que essa carga seria, pois, o que os leva à condenação.Verificamos que cada um alude à própria bagagem como se nada fora. Parece-nos, que não estão interiormente convencidos, de que suas suas atitudes são corretas, mas não conseguem desvencilhar-se delas, pois afinal são sua característica, fazem parte de seu modo de ser. Tentam, então, negar a dúvida interior através de um apego ainda maior às coisas terrenas. Por outro lado, tentam também compensar seu saldo negativo com atitudes aparentemente piedosas.Há uma oposição entre o que é aparente e o que é real, um conflito entre "vida ascética" e "vida dedicada aos prazeres mundanos", delineia-se dentro da peça. especificando, conforme o que dizem as personagens:
-fidalgo: "-Não sei por que haveis por mal"
"que entre minha senhoria." (Spina, p. 57).
"-Que deixo na outra vida"
"quem reze sempre por mim." (Spina, p.56).
-onzeneiro: "-Por quê?"
"-Juro a Deus que vai vazio!" (Spina, p. 61).
-sapateiro: "-Ora eu muito me espanto"
"que seja estorvo isto tanto"
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"-Quantas missas eu ouvi,"
"não me hão elas de prestar?" (Spina, p.64).
-frade: "-Por minha a tenho eu,"
"e sempre a tive de meu."
"-Juro a Deus que não te entendo!"
"E este hábito não me vai? (Spina, p.65).
-alcoviteira: "Pois estou-vos eu contando"
"por que haveis de me levar." (Spina, p.70).
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"E eu sou apostolada,"
"angelada e marteirada"
"e fiz obras mui divinas" (Spina, p. 69).
-judeu: "-Passai-ma por meu dinheiro."
"-Eis aqui quatro tostões"
"e mais se vos pagará." (Spina, p. 70).
-corregedor:"-Nestes feitos e vereis." (Spina, p. 72).
"-Eu mui bem me confessei,"
"mas tudo quanto roubei"
"encobri ao confessor..." (Spina, p. 74).
-procurador:"-Porque, se não retornais,"
"não vos querem absolver;"
"e é muito mau devolver"
"depois que o apanhais."
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"Não cuidei que era extremo,"
"nem de morte a minha dor." (Spina, p. 74).
-enforcado:"-Com a corda no pescoço"
"mui mal presta a pregação..."
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"que os que morrem como eu fiz"
"São livres de Satanás" (Spina, p. 76).
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"que, pelos frutos que eu fiz,"
"sou santo canonizado,"
"pois morri dependurado"
"como o tordo na boiz." (Spina, p. 75).

Os quatro cavaleiros e o parvo são os únicos que aparecem sem bagagem. Estes são os que vão para a "barca do anjo". O parvo, por sua limitação, está a salvo de juízo; os cavaleiros são os únicos a alcançar a ascese, morrendo por Cristo.
Notamos que o fidalgo, o parvo, o sapateiro, o frade, o corregedor e o procurador não reconhecem o diabo (o Mal) no primeiro arrais com que se deparam. Há uma inconsciência em relação ao Mal, fato tanto mais grave no caso do frade, do corregedor e do procurador. Estes, por seu mister, deveriam ter uma consciência clara no que concerne ao Bem e ao Mal. O mesmo não acontece com a alcoviteira, o onzeneiro e o enforcado. Somente os cavaleiros têm essa consciência clara pois, não só reconhecem o arrais do inferno, como sabem que esse não é o seu destino, que seu destino é a barca do anjo. (Spina, p. 78).
A partir dessas considerações, podemos concebar uma escala que vai do "pecado" à "virtude", obedecendo à seguinte gradação: tanto mais pecador quanto mais consciente seja em relação ao Bem e ao Mal e tenha optado por este, ou ainda, quanto mais inconsciente seja, mesmo quando teria todos os elementos para não sê-lo. Tanto mais virtuoso quanto mais consciente for a escolha pelo Bem. A gradação seria, então: frade > corregedor > procurador > enforcado > alcoviteira > onzeneiro > judeu > parvo > cavaleiros. O judeu, condenado, ao que parece, naquele contexto, pela própria condição de sua raça, aceitaria ser embarcado em qualquer barca, compraria até sua passagem, mas é rejeitado pelo diabo.

Analisamos os elementos estruturais da peça da seguinte forma:
Na segunda cena temos o diabo dizendo que a "maré é de prata", que há "um ventozinho que mata" trazendo valentes remadores, cantando depois -"vos me venirés a la mano" / "e la mano veniredes" / "e vos veredes" / "peixes nas redes." (Spina, p. 58). Pela aliteração - venirés/veniredes/veredes/ redes - em que por acréscimo e supressão chega-se à idéia final, "redes" (=armadilha), que não se percebe claramente no primeira palavra, "venirés", notamos que o próprio conteúdo formal, corrobora a idéia de um contacto com o Mal, pouco consciente a princípio, do qual só se tem consciência tardiamente (=armadilha preparada pelo diabo).
Quando chegam à praia, todas as personagens falam com o diabo e com o anjo (=parvo) (Spina, p. 75), numa busca de identificação.Em maior ou menor grau, têm dificuldade em aceitar a "traquitana" e seus arrais, refletindo uma imagem caótica de seu mundo, mas o que o diabo salienta é que ele apresenta exatamente a imagem recebida anteriormente. (Spina, pp. 57-64-73). Ao falar com o anjo, procurando a barca "real", elas buscam uma imagem organizada e bela de seu mundo (e a maioria não encontra). O anjo e o diabo usam muitas vezes a mesma linguagem da personagem com que dialogam. A última fala do anjo na segunda cena é, todo o tempo, irônica e na décima cena temos uma identificação anjo/parvo através do plural "anjos". (Spina, p. 75). Todos falam com o anjo e com o diabo como se fossem uma coisa só, ou como se cada um contivesse aspectos do outro, ou se confundisse com o outro.Anjo e diabo podem corresponder a confrontações diante das quais todos têm que se apresentar. Eles estão num mesmo plano, a serviço de uma "entidade superior". As personagens que procuram, na barca do anjo, uma imagem correspondente apenas à sua aparência, ao vê-la destruída, aceitam a realidade. O inferno relaciona-se à consciência da culpa e a assunção da mesma: a realidade de nossa própria realidade ( o reconhecimento dela).
Ao chegar à "praia", cada personagem já está julgada. Falta apenas que se cumpra a sentença. O julgamento é apenas um símbolo, porque a salvação ou a perdição depende da opção entre o Bem e o Mal que cada um fez na vida.
Notamos no auto um ciclo que se repete: falar com o diabo < falar com o anjo < tentar voltar à terra < aceitar a entrada na barca,
numa repetição.
Resta, ainda, atentar para a fala dos quatro cavaleiros, cuja absolvição é outorgada pelos "Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja", isto é, pela Instituição que representa Deus. Eles dizem da transitoriedade da vida, da lembrança ques se deve ter do cais (final de viagem / início de viagem), do rio (=vida) em que "está a ventura de prazeres ou de dores." (Spina, p. 78).
A quebra do equilíbrio inicial (primeira recusa do anjo), percorre o auto num crescente, atinge o clímax com a chegada do enforcado. O equilíbrio só se restabelece com a chegada dos quatro cavaleiros.

Concluindo, temos então: todo indivíduo tem diante de si o Bem e o Mal (ambos existem e ele está diante dessas duas realidades);a partir daí, para não ficar em conflito, ele deve fazer uma opção; esta, pode ser mais, ou menos consciente; a partir dessa gradação se configura, na peça, a visão do Autor, de "pecado" e de "virtude" - ser virtuoso é resistir à tentação, consciente ou inconscientemente / ser pecador é entregar-se consciente ou inconscientemente, a uma vida de prazeres, relegando a um segundo plano as implicações dessa escolha. Há consciência da entrega aos prazeres, mas inconsciência quanto às conseqüências disso; dependendo da escolha e de como ela é feita, cumpre-se o "plano divino" -salvação ou perdição.
A repetição a que aludimos anteriormente poderia remeter à idéia de que os ciclos repetem-se eternamente e de que não se escapa deles.

Dos dados levantados pela análise feita, aventaríamos algumas possibilidades de leitura do auto, sem pretender esgotar sua riqueza temática:

-no plano moral: a opção, para o indivíduo, entre o Bem e o Mal, difícil muitas vezes pela atração que o Mal exerce;

-no plano religioso: a "instituição religiosa" não é falha; falhos são muitas vezes os indivíduos agregados a ela;

-no plano filosófico-religioso: o acesso A´virtude é dado a muito poucos indivíduos;

-no plano filosófico: uma inconsciência em relação à realidade do próprio "eu" pode levar à desintegração da personalidade;

-no plano social: até que ponto o judeu, marginalizado por algo que não lhe compete diretamente tem responsabilidade pela própria salvação? (Considerados a época e o contexto da peça).

Talvez pudéssemos encarar ainda, coordenando todos os dados anteriores, o auto como uma simbologia de todos esses conflitos em jogo dentro do próprio indivíduo. Talvez, sua mais verdadeira e bela significação.


Nilza A. Hoehne Rigo


Bibliografia:

MOISÉS, M. (1973). A Literatura Portuguesa. São Paulo:
Cultrix, 11ª edição revista.

SOLOMON, D. V. (1974). Como Fazer Uma Monografia. Belo
Horizonte: Interlivros.

SARAIVA, A.J. (1965). História da Literatura Portuguesa. Lisboa:
Publicações Europa-América, 8ª edição revista.

VICENTE, G. (1971). Introdução e Estudo Crítico pela prof.
Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Grifo Edições.
Instituto Nacional do Livro.

VICENTE, Gil. (1973). O Velho da Horta , Auto da Barca do
Inferno, Farsa de Inês Pereira. Introdução e Estabele-
cimento do Texto pelo Prof. Segismundo Spina. São Paulo:
Brasiliense, 6ª edição.