A Queda do Solar de Usher - Edgar Alan Poe (Análise Literária)

"A queda do solar de usher"

Análise Literária

A trama, "A queda do solar de Usher'' de Edgar Allan Poe, é inteiramente narrada por um narrador homodiegético, compreendendo que o narrador, em sí, é um dos personagens do enredo, no entanto, não se configura como um protagonista. O narrador homodiegético, a princípio, se apresenta com uma focalização externa sobre o protagonista, assim, observando-o de fora e tentando decifrar as atitudes do protagonista. Dessa forma, a narrativa vai criando, cada vez mais, uma atmosfera misteriosa devido à própria limitação do narrador em tentar decifrar os mistérios (atos ou pensamentos) do protagonista, assim como o próprio narrador pontua no decorrer da narrativa.

Em uma obra literária, geralmente, tudo tem uma intencionalidade que é funcional dentro da trama. Afinal, é a intencionalidade da obra que vai estabelecer a mediação entre a intenção do autor, e a produção de sentidos do leitor. Durante a narração do conto de Edgar Allan Poe - A queda do solar de Usher - Observa-se que o nome do narrador não é indicado em momento algum, assim como o próprio protagonista que se refere ao narrador apenas pelo termo: " melhor e único amigo". O apagamento da identidade do narrador pode ser um indicativo de que ele não deve ter importância no enredo, e o fato do narrador ser definido como "melhor e único amigo" do protagonista é onde concentra-se a definição do que é adequado para o seu papel, isto é, da função do narrador homodiegético: que é mediar o drama do protagonista para o leitor.

O fato do narrador ser o mediador entre o drama do protagonista para o leitor, pode-se dizer que esse acompanha toda a trajetória espacial e temporal do conto a partir do olhar do narrador (o melhor amigo do protagonista - Roderick Usher). Ou seja, o leitor vai depender das impressões, pensamentos, suspeitas e interpretações do narrador sobre a narração, durante o conto é possível observar que o foco narrativo recai sobre o olhar do narrador.

De modo geral, o assunto da narrativa gira em torno da doença do Roderick, da relação do Roderick com a casa, e da relação dele com a sua irmã gêmea Madeleine - inclusive, ela raramente é vista, mas sua presença é decisiva na narrativa especialmente no final. Vale ressaltar que durante a trama há vários outros personagens menores que raramente aparecem, são esses: dois criados, o médico e, mesmo de maneira indeterminada, uma vaga menção da família Usher, dentro do poema; "O Palácio assombrado".

Primeiramente, vale destacar que o protagonista sofre um tipo de hipersensibilidade sensorial, e essa característica do Roderick Usher é interessante dentro da narrativa, pelo fato dessa característica do protagonista configurar-se um tipo de aparato técnico, que foi escolhido pelo autor ou narrador para guiar o leitor à atmosfera assombrosa e, assim, produzir o medo. Por isso, as características do protagonista são perfeitamente adequadas para suprir a intenção do autor.

Em segunda análise, adentrando um pouco levianamente na análise do conto, compreende-se, sugestivamente, a casa como uma entidade viva. Em termos técnicos, a casa não se constitui uma personagem, por outro lado a construção da atmosfera na narrativa, produz uma sugestão de que a casa é uma entidade, e é justamente essa sugestão que vai causar uma sensação de sobrenatural e, assim, amedrontar o leitor.

"Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher" (ALLAN POE, Edgar: A Queda do Solar de Usher, p. 1).

É a partir deste trecho, que inicia-se do primeiro parágrafo até o quinto, o narrador começa a introduzir as primeiras descrições da atmosfera em que se situa o enredo do conto. Através da construção do primeiro parágrafo da obra, podemos notar que o autor atribui três adjetivos mais um terceiro advérbio para construir a atmosfera e o espaço, que se passa em um dia nublado e aparentemente sem vida. Entretanto, podemos notar que os aparatos técnicos os quais o autor se serve como os adjetivos: "pesado", "sombrio" e "silente", além de mais um advérbio de tempo como: "outonal" torna-se fundamental para produzir o efeito da atmosfera opressiva em que o narrador vai situando o leitor. Logo após isso, o autor quebra o ritmo dos primeiros sintagmas abarcado por adjetivações, que por fim, dá início à construção da atmosfera opressiva. Em seguida, o leitor se depara com mais uma construção textual composta por adjetivos como "Melancólicos" e "Tristonha", além da sugestão de uma atmosfera densa, pesada como estivesse despencando. Ou seja, nas construções como "As nuvens pairavam opressivamente baixas" e "Ao caírem as sombras da tarde", exprimem sempre a ideia de um movimento descendente.

Em seguida, do segundo parágrafo ao quinto, a narrativa produz explicações para o leitor. Nesse primeiro momento o narrador inicia a descrição e explicação do entorno, essencial para a construção da atmosfera, estado da casa e da natureza em torno, madeiramento e estrutura do solar, principalmente, a fenda, como também, as primeiras informações sobre as características do protagonista, além da própria família Usher, porque até o parágrafo anterior, o leitor conhece apenas o narrador.

Posteriormente, já no terceiro parágrafo o narrador aponta elementos, os quais afirmam que a condição de saúde do protagonista se deve a própria construção hereditária da família Usher, ou seja, um tipo de família que foi constituída a partir de relações incestuosas, e essa característica dos Ushers é muito intrigante, porque essa característica vai influenciar a debilidade física dos seus descendentes, no caso do protagonista que possui uma condição física debilitada e uma hipersensibilidade sensorial. Nesse viés, podemos afirmar que estes elementos são funcionais dentro da obra, pelo fato que a funcionalidade dele é essencial para construção do caráter do protagonista e, consequentemente, da atmosfera em que a narração ocorre. Ressaltando que essa característica do protagonista é bem pontuado pelo narrador no trecho:

"Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota, de que do tronco da família Usher, apesar de sua nobre Antiguidade, jamais brotara, em qualquer lugar, um ramo duradouro [...] A família inteira só se perpetuava por descendência direta" ( p. 82).

No quarto parágrafo o narrador introduz outros aspectos sobre a fantasia em torno do edifício, no qual retorna à empregar os mesmos tipos de adjetivos utilizados no primeiro parágrafo, e produzir a mesma atmosfera visualizada anteriormente. No trecho:

"... atmosfera que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se exalava das árvores apodrecidas e do muro cinzento e do lago silencioso - um vapor pestilento e misterioso, pesado, lento, fracamente visível e cor de chumbo" (p. 81)

Podemos observar mais uma construção carregada de adjetivações que se referem à atmosfera do local, a qual encontra-se submersa num tipo de vapor pesado - atenção para este adjetivo que foi, inclusive, apontado no início da narrativa, pestilento e misterioso etc. Vale salientar, que todos esses elementos, como as característica atmosféricas, elementos fantasmagórico em torno do edifício, além da própria linhagem da família Usher são elementos fundamentais para produzir o suspense em torno do protagonista e seu "habitat", objetos, correlação com o sentimento ( ou seja, todos esses elementos espaciais estão correlacionados com a atmosfera, que vai criar um determinado sentimento no narrador), e a comparação do passado memorizado com o presente ( de acordo com Bakhtin, que denomina esse artifício como "Cronotopo", onde o tempo da narrativa cria uma relação entre dois espaços, o espaço do passado da infância, e o espaço do presente do narrado e do protagonista, semelhante à nostalgia com que relembramos um episódio da vida).

No sétimo parágrafo, após o narrador entrar no Solar de Usher, ele descreve o interior do edifício dos Usher, assim causando um certo contraste com a descrição da atmosfera no primeiro parágrafo. O narrador produz um certo contraste entre a altura do solar e a atmosfera em torno do edifício, tentando sugerir que altura do edifício sobrepõe-se à altura da atmosfera, o que acentua, ainda mais, o caráter medonho e aterrorizante do solar, desse modo produzindo no leitor a impressão de uma casa realmente mal assombrada. Podemos perceber melhor este contraste espacial no trecho:

"O aposento em que me achei era muito amplo e elevado. As janelas,as eram longas, estreitas e pontadas, a uma distância tão vasta do sonho de carvalho negro que, de pé sobre este, não as poderíamos atingir" (p. 83, pr. 7).

Compreendendo que o narrador se lança sobre aspectos, genuinamente, góticos para descrever de maneira objetiva o Solar de Usher, que sugere a imagem de um castelo sombrio e assustador, ele provoca a imaginação do leitor que, visualiza, cada vez mais, a imagem de um castelo, produzindo um sentido quase semiótico com uma catedral. Essa interpretação quase semiótica da qual falamos anteriormente, se deve a alguns elementos semióticos da descrição, aparentemente objetivos, que o narrador apresenta no texto, ou seja, a relação da opulência do castelo com uma catedral, por exemplo: quando o narrador descreve as janelas do edifício, nos remete a pensar em uma arquitetura absurda para uma janela típica de uma moradia residencial, no entanto, esse tipo de arquitetura é um tanto comum nas catedrais. E por fim, a catedral com a nobreza. Neste parágrafo o autor destaca a presença dos vitrais do edifício de Usher, que são "penetrados por uma luz purpúrea" (p. 83, pr. 7), a qual provoca uma iluminação atmosférica nebulosa e sombria e "purpúreo" assim como aponta o narrador. Esse entorno nebuloso, sombrio e "purpúreo" é essencial para construir uma atmosfera de imprecisão no leitor. No mesmo parágrafo, o narrador descobre os aspectos do mobiliário do edifício, que são o reflexo da debilidade física do Roderick. O autor se refere aos objetos através dos adjetivos "profuso, desconfortável, antigo e desconjutado" (p. 83, pr. 7), ou seja três adjetivos negativos, e o narrador segue descrevendo "... mas nenhuma vivacidade conseguiam eles dar ao cenário" (p. 83, pr. 7). Lembrando que a questão do adjetivo "vivacidade" reflete, enfaticamente, no sintagma "os fracos clarões" e, posteriormente, até no caráter da moralidade do protagonista.

No último sintagma do sétimo parágrafo, o narrador aponta um certo direcionamento da dimensão da atmosfera textual, em que os aspectos de um romantismo excessivo e de elementos do gênero gótico se misturam, assim criando uma dimensão que produz um certo tipo de introspecção entre o narrador, o protagonista e o espaço, no trecho:

"Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Um ar de melancolia acre, profunda e irremissível pairava ali, penetrando tudo" (p. 83, pr. 7).

Podemos notar que o verbo "penetrar" é recorrente no texto, e é esse aspecto que produz um certo direcionamento da dimensão textual rumo à interiorização, e atenta apenas a sua própria sensibilidade na sua relação com o narrador e com o protagonista.

Logo mais, o narrador distancia-se do espaço concreto em torno, e o foco narrativo desloca-se para a fisionomia do Roderick no trecho:

"... Usher ergueu-se de um sofá em que estivera deitado, ao comprido, e saudou-me com o vivo calor que em si tinha muito, pensei eu a princípio, de cordialidade constrangida, do esforço obrigatório do homem de sociedade entediado." ( p. 84, pr. 8)

Nesse trecho o narrador produz uma espécie de análise da personalidade do protagonista, em que, primeiramente, ele realiza uma contradição entre duas impressões que ele percebe sobre o Roderick, em: "vivo calor" e, em seguida, "cordialidade constrangida", em que o autor utiliza uma espécie de micro temporalidade no texto (quando o autor apresenta uma impressão inicial do narrador e, posteriormente, como essa impressão inicial é desfeita e outra impressão toma o lugar dessa primeira), dessa forma o autor produz um efeito de ironia no texto, de modo muito sutil. Além do mais, é possível compreender através da descrição do narrador sobre o protagonista, um certo Spleen Baudelairiano (percebe-se aqui uma forte presença do que, posteriormente, será a ideia central do Baudelaire sobre a noção do homem moderno e como esse homem é afetado por essa vida na sociedade moderna. A modernidade é um tema recorrente nas obras do Baudelaire, ele vai trabalhar com uma atmosfera sugestiva e tentar sugerir - apenas uma sugestão, em suas obras, essa modernidade decadente na visão dele) como um dos aspectos da condição do Roderick Usher, ou seja, um homem entediado e desanimado. Apesar da impressão que o narrador adquire sobre o protagonista em um primeiro momento, foi desconstruída no texto, posteriormente, isso, no entanto, não a torna uma impressão errada ou equivocada e sim podemos pensar como um recurso temporal da interação entre os dois personagens, que deve ser ressaltada para o leitor.

O narrador então, interrompe o parágrafo com uma frase brevíssima e pontual, não mais que: "Sentamo-nos." (P. , pr. 8). Com apenas um verbo acompanhado de um pronome ele interrompe todo o estado de trânsito que o narrador fez até o início do oitavo parágrafo, assim, ele inicia a descrição da impressão que o protagonista nele causou. Inicialmente, o narrador utiliza um recurso textual que produz um certo tipo de contraste entre o Roderick da infância, e o Roderick na vida adulta. Comparando o passado da infância e o presente, o narrador, dessa maneira, promove uma espécie de efeitos de realidade, que dialogam com a realidade do leitor. Ressaltando que esses efeitos de realidade vão ser mais explorados, posteriormente, durante o Realismo do século XIX, que surgiu um pouco depois do Allan Poe. Os artistas do realismo vão investir, enfaticamente, em um modelo artístico que vai refletir tanto na literatura como Gustave Flaubert, quanto nas artes plásticas (Belas Artes) como Gustave Courbet.

No próximo parágrafo (9° parágrafo) o narrador adentra minuciosamente nos aspectos fisionômicos do Roderick, e inicia uma espécie de análise fisionômica, a qual o conto explora bastante, do rosto do protagonista. Apesar da descrição fisionômica dos personagens, nas obras literárias serem exploradas com modéstia na literatura moderna, outrora, esse recurso textual constituiu a principal característica do estilo dos escritores do século XIX.

O narrador abre o parágrafo nove já com uma referência à uma espécie de mote principal da narrativa, que é nada mais nada menos que a morte, no trecho:

"Uma compleição cadavérica; um olhar amplo, líquido e luminoso, além de qualquer comparação; [...] nariz de delicado modelo hebraico, [...] um queixo finamente modelado, denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral" (p. , pr. 9).

Em outros termos "a compleição cadavérica" aponta para essa dimensão do mote principal da trama, primeiramente a falsa morte da irmã do protagonista (Madeleine), depois a verdadeira morte dela e do Roderick e, metaforicamente, a morte da próprio solar dos Usher, que adentrando levianamente, poderia ser uma alegoria da morte da própria família Usher.

Posteriormente, o autor começa a delinear alguns traços sobre a fisionomia do Roderick, longe de uma descrição realista, o narrador segue delineando sugestivamente as feições do protagonista, pois, se observamos o narrador emprega três adjetivos que sugerem vagamente os aspectos fisionômicos do Roderick, ou uma impressão que o narrador sentiu sobre fisionomia do protagonista, assim, produzindo um aspecto longe de ser extremamente literal e pictórica, mas provocando a partir dessa figura literária, subjetiva e poética a liberdade e a imaginação do leitor. Além disso, a argumentação por meio da negação é um recurso retórico que é uma das características do estilo edgariano de acentuar o grau de sugestividade, que o narrador sugere sobre a fisionomia do protagonista na narrativa, e transmite essa espécie de sugestão para que o leitor intérprete a partir de suas conclusões, nisso consiste o duplo horizonte da obra literária. Inclusive, a Estética da recepção propõe justamente esse duplo horizonte, em que de um lado encontra-se o implicado pela obra e do outro o projetado pelo leitor de determinada sociedade, e é nessa relação que teoria volta-se para as condições sócio-históricas das diversas interpretações textuais.

Na narrativa, também podemos notar que o narrador faz um tipo de leitura fisionômica do protagonista, assim constitui uma descrição até mesmo pictórica sobre a forma do rosto do Roderick, no trecho:

"... denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral…" ( p. 84, pr 9)

O autor faz uso de uma pseudociência da fisionomia, que foi muito explorada por Johann Kaspar Lavater (1741 - 1801), para que o narrador produza uma certa leitura da aparência do Roderick, e esse fato é literariamente interessante pelo fato desse recurso ser funcional na obra, porque ela cria uma espécie de atmosfera do oculto, o qual o autor deseja produzir. A teoria da fisionomia de Lavater influenciou muitos escritores do século XIX, e até mesmo a prosa Baudelairiana se serviu dessa pseudociência do Lavater. Agora, no conto de Allan Poe, por exemplo, a funcionalidade desse recurso encontra-se na fala do narrador sobre a falta de proeminência do queixo do Roderick ser o sinônimo de sua falta de caráter, ou seja, um detalhe físico possui um significado moral.

Em conclusão disso, em termos espaciais, a observação minuciosa do narrador sobre rosto do protagonista é um momento de intenso foco narrativo, em um espaço limitado. Porém, esse trânsito do narrador sobre o rosto do Roderick é o momento mais expressivo que podemos observar na narrativa.