21. A - O Realismo Mágico

Este capítulo é, simultaneamente:

um prolongamento e complemento

de dois capítulos -

que corriam o risco de ficar demasiado longos:

= Por um lado, prolonga o capítulo 21

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= Por outro lado, completa o capítulo 17-B

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I – Antiguidade do Pensamento Mágico.

II - A transmissão das Fábulas, da Índia à Europa

III - Como compreender o Realismo Mágico como corrente literária de meados do século XX

IV - Do Realismo Mágico a José Afonso

V - Conclusão

I- ANTIGUIDADE DO PENSAMENTO MÁGICO

Formas de Pensamento Mágico existiram nas sociedades da Antiguidade. As religiões animistas da Antiguidade apresentam-nos estruturas de pensamento mágico, ao considerar as forças da Natureza como manifestações divinas:

A Humanidade dependia das forças da Natureza. Osíris e Ísis – os grandes deuses da religião egípcia – eram a deificação, respectivamente, do Sol, e da Lua.

Na antiga religião Grega, Zeus era a força criadora, Hera era a deusa do casamento e da família, Apolo era o deus Sol, Poseidon representava o Mar, Atena era a deusa da sabedoria, da civilização, da estratégia em batalha, das artes; Afrodite, nascida da espuma do mar, era a deusa do Amor... Temos ainda as tradições Celta e Escandinava, com o elemento “maravilhoso” das respectivas religiões – o seu culto da Natureza, e as suas crenças em seres sobrenaturais – as Fadas, com os seus mistérios, encantamentos, e magias!

Os Deuses antigos representavam as valências misteriosas e divinizadas – masculina e feminina – da Natureza.

Poderemos concluir que o pensamento “maravilhoso” é um produto espiritual das épocas remotas de comunhão com a Natureza, através dos cultos xamânicos e/ou animistas...

II - A TRANSMISSÃO DAS fábulas, DA ÍNDIA À EUROPA

Há toda uma antiquíssima tradição de histórias fantásticas – umas mais, outras nem tanto – que vem da antiga Índia, berço das civilizações! São os contos sânscritos, transmitidos oralmente de geração em geração, e datam de tempos imemoriais. Foram reunidos no séc III aC, formando a colectânea que ficou conhecida sob o nome de “Panchatantra”.

Os breves contos que classificamos como “fábulas”, tradicionalmente atribuídos, na Europa, ao escravo grego Esopo, que terá vivido cerca do século VI aC., não são mais do que transposições, ou versões, desses antiquíssimos contos indianos! As “fábulas” têm uma particularidade notável:

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As “fábulas” são contos muito breves, e as suas personagens são animais que se comportam como se fossem seres humanos! Assim, nas “fábulas”, tanto os animais como os elementos da Natureza ganham “alma”, corporizam-se, assumem comportamentos humanos – daí que possamos falar de “animismo” pois uns e outros estão “personificados”, ou “animados”. Recordemos que a palavra “alma” vem da palavra latina “anima” (pronuncia-se ‘ánima’).

Mas porquê histórias com personagens de animais, e não de humanos?

Essas antiquíssimas “fábulas” forneciam temas para uma profunda análise psicológica e comportamental, com enredos que retratam comportamentos das pessoas nas mais variadas circunstâncias:

Comportamentos humanos – particularmente esses que em todas as épocas têm sido considerados como incorrectos ou errados – são expostos com objectividade através dos comportamentos de personagens-animais (animais falantes), para assim poderem ser “observados” e criticados! É que através desse recurso, essas personagens “maravilhosas” permitiam uma reflexão crítica sobre os comportamentos anti-sociais – sem que para o efeito se tivesse que nomear especificamente ninguém.

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Perguntaremos, então – Como foram ter à Grécia, os antiquíssimos contos tradicionais indianos?

As diferentes regiões do Mundo conhecido na Antiguidade não viviam isoladas! Tiveram grande peso na difusão de conceitos, os contactos naturais entre viajantes; contactos que tinham lugar nas paragens das caravanas – os “caravançarai”. Nesses locais de descanso e reabastecimento, surgiram cidades. Ao longo dos tempos, algumas delas não prosperaram, foram abandonadas e fundiram-se com as areias; mas muitas outras deram lugar ao surgimento de notáveis cidades que floresceram até aos dias actuais. Nas épocas longínquas das suas origens, essas cidades formaram uma rede de pontos de encontro de pessoas de diferentes origens, diferentes costumes, diferentes filosofias e diferenças crenças – cidades que se encontravam ao longo da denominada Rota da Seda.

Havia casamentos entre reis e princesas de diferentes regiões, com diferentes culturas... As noivas de países estranhos eram acompanhadas por um séquito de cortesãos... Esses casamentos seriam um foco de difusão de diferentes ideias e costumes...

Por outro lado, também algumas guerras e conquistas proporcionaram contactos que contribuíram para a difusão de ideias, como foi o caso da aventura guerreira de Alexandre Magno da Macedónia (séc. IV aC), e o seu esforço de interligar Oriente e Ocidente.

Posteriormente, Fedro – igualmente nascido na Macedónia, mas no século I dC –, escravo alforriado pelo imperador Augusto, transpôs para Latim as versões de Esopo.

Os contos do Panchatantra voltaram ao apreço da Europa quando, no século XIII, o príncipe cristão do antigo reino de Castela – que viria a ser mais tarde o sábio rei D. Afonso X – mandou traduzir esses antigos contos, que tiveram grande voga e ficaram conhecidos como “Khalila e Dimna”.

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Na Arábia do século VIII, o califa de Bagdad, Harum Al Rachid, soberano do Califado Abássida, e contemporâneo de Carlos Magno, Imperador do Ocidente europeu – os dois soberanos trocaram presentes e celebraram acordos – mandou coligir os contos populares em voga na sua região, na sua época. É essa recolha que está na base dos prestigiados contos organizados em volta da figura de Sheherazade, a personagem feminina que é o fio condutor de “As Mil e Uma Noites”.

“As Mil e Uma Noites” só se difundiram na Europa, no século XVIII, depois da tradução fantástica, ou fantasista, completamente arbitrária, realizada em França de modo a satisfazer o gosto europeu da época, pois então não havia o conceito de rigor e fidelidade ao texto original conforme existe actualmente.

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Muitas narrativas que, aqui na Europa, consideramos como "Contos Tradicionais" não são mais do que o testemunho e a sobrevivência desse antigo “pensamento maravilhoso”, ou “pensamento mágico”... As narrativas transmitiam-se predominantemente por via oral, pois na Idade Média os livros eram inteiramente copiados à mão, o que os tornava raros e caros. Como passavam de uma geração à geração seguinte, ou eram trazidas de culturas estranhas pelos viajantes, essas narrativas foram sendo enriquecidas pelos inúmeros narradores que certamente não resistiam a acrescentar-lhes algum detalhe pertinente ou pitoresco!

No século XVII, no reinado do rei francês Luís XIV, as versões feitas por Charles Perrault, em prosa, e por La Fontaine em poesia, fizeram moda!

Narrativas que por serem tão fantasiosas, foram consideradas inferiores, e assim, destinadas ao público infantil. No entanto, foram mais fortes que todas as inferiorizações e conseguiram sobreviver.

Passemos ao século XVIII:

A tradição de contos populares foi muito acrescentada no séc XVIII, com a popularidade adquirida por muitas fábulas ou parábolas criadas por Israel ben Eliezer (1698 - 1760), conhecido como Baal Shem Tov, um Rabi da corrente do Judaísmo

denominada de “Hassidismo” – surgida na Europa de Língua germânica.

Resta acrescentar, no entanto, que tendo havido tão largo número de escravos africanos na Europa, nomeadamente em Portugal, não tenho conhecimento evidente de tradições orais africanas que se tivessem enraizado na Europa, nomeadamente entre nós... No entanto, vemos que no Brasil perduraram muitos elementos das culturas tradicionais de Africanos e Índios, embora contagiados pelo fenómeno denominado de “aculturação”.

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No século XX, o escritor alemão, prémio Nobel da Literatura em 1999, Gunther Grass (1927-2015), recuperou antigas fontes de inspiração. Gunther Grass é mais conhecido pela sua primeira obra – The Tin Drum (1959) – um texto chave para a recuperação de um Realismo Mágico europeu. Eu não conheço a obra, mas segundo procurei informar-me, a obra ainda se encontrava na linha da crítica à Segunda Guerra Mundial.

III - COMO COMPREENDER O realismo mágico

COMO CORRENTE LITERÁRIA DE MEADOS DO SÉCULO XX

Aquilo a que em Literatura se chama Realismo Mágico, foi uma recuperação, em termos “modernos”, de toda a antiquíssima tradição de fantasia, descrita nos capítulos anteriores!

No entanto, a corrente literária identificada, no século XX, como Realismo Mágico, surge com impacto na América Latina – no tempo das “ditaduras dos coronéis”, em meados do século XX. Um dos nomes dessa corrente literária, mais conhecidos e prestigiados, é o do escritor colombiano Gabriel García Márquez, que em 1967, publicava “Cem Anos de Solidão”.

O escritor Gabriel García Márquez recorre, nessa obra, a processos “fabulosos” para contar a história da América Latina, através da história da família dos avós que o tinham criado. Em “Cem Anos de Solidão”, García Márquez utiliza técnicas narrativas específicas, próprias das antigas histórias, como a abundância de elementos mágicos. Na sua narrativa, ele mistura passado, presente, e futuro, e a sua linguagem é trabalhada de forma subjectiva, com metáforas, de modo que a “crítica social” surge veladamente – sem que os agentes da “censura” se apercebessem do objectivo real do romance!

Muitos outros nomes de prestígio tinham começado a cultivar esta corrente, a partir dos anos ’40 – Jorge Luís Borges, Alejo Carpentier, Arturo Uslar Pietri. Seguiram-se outros autores, dentre os quais – Miguel Ángel Asturias, Carlos Fuentes.

Mais recentemente, temos também Isabel Allende, e Laura Esquível.

III - DO realismo mágico, A JOSÉ AFONSO

Estava a escrever os capítulos anteriores e recordei José Afonso. Nem podia deixar de ser.

José Afonso, o grande compositor português das “baladas” que em meados do século passado ficaram conhecidas como “Música Popular”, tornou-se conhecido com as suas “canções de protesto”, como se dizia na década de ‘60 do século XX.

Lá fora, grassava a Guerra do Vietnam, e muitos cantores e cantoras estadunidenses afrontavam o Poder americano compondo canções contra a guerra – Bob Dylan, Joan Baez, e muitos outros.

Em Portugal, era o tempo da Ditadura. Era também o tempo da Guerra Colonial. Todos recordamos a mão pesada sobre o Ensino, sobre a Cultura em geral, sobre a liberdade de expressão. Qualquer expressão de um pensamento crítico era considerada “traição à pátria” pela Ditadura de Salazar. Havia censura pesada sobre as publicações, quer em livro, quer em jornais ou revistas, quer noutras manifestações como o Teatro ou o Cinema que antes de serem apresentados ao público eram sujeitos a “censura prévia”.

José Afonso (1929-1987) começou por ser apreciado por cantar as conhecidas “baladas de Coimbra” com a sua belíssima voz, de timbres variados de largo espectro, que iam do “grave”, quente, e terno, ao “alto” e angélico! Mas começou a Guerra Colonial e José Afonso acrescentou novas canções ao seu repertório! Além do aspecto artístico e poético, ele começou a atrair a atenção do público pela sua presença simples, e pelos poemas das suas canções, que passaram a chamar a atenção para os bairros pobres e sem esperança – “Menino do Bairro Negro” – ou para as realidades sociais da época – “Os Vampiros”, ou para a recusa à Guerra Colonial – “Menina dos Olhos Tristes”.

Em breve começou a ser perseguido pela violenta Polícia Política (a chamada PIDE), e as suas canções, com poemas da sua autoria, foram proibidas. Várias vezes foi preso pela Polícia Política de então.

Eu não sei se José Afonso seguiu a mesma linha de pensamento dos escritores da América Latina. Mas assistimos a uma mudança de orientação na sua produção poética! Em face da perseguição “pidesca”, José Afonso começou a procurar inspiração nas canções da tradição popular portuguesa!

O público em geral compreendeu a opção! E as actuações de José Afonso tinham, da parte do público, a mesma adesão apaixonada quer ele cantasse as suas “canções de protesto”, quer ele cantasse as canções populares tradicionais que ia acrescentando ao seu repertório! Os seus concertos continuaram a ser vigiados pela Polícia Política, a sua actuação continuou a ser limitada... mas a repercussão da sua actividade continuou sempre a crescer. E como ele cantava “canções tradicionais”, a PIDE não lhe tocava...

Houve mais “cantores de protesto” na mesma época – mas nenhum com a mesma dimensão e repercussão. Atrevo-me a considerar que sem José Afonso, não teria havido 25 de Abril, a Revolução dos Cravos – uma revolução pacífica, porque seguiu a força da voz de um Poeta que era um homem bom! Uma revolução pacífica – como raramente acontece na História!

IV - CONCLUSÃO

Ao terminar, recordo um Realizador de cinema, chileno, refugiado em Portugal após o golpe que derrotou o Presidente Salvador Allende. Já não sei o seu nome. Ele foi convidado pelo departamento de Educação de Adultos, do Ministério da Educação, a dirigir uma sessão, num curso de reciclagem que frequentei.

Dizia ele:

“Quando os Artistas se encontram em fase de crise de inspiração, viram-se para a cultura popular! A Cultura Popular fornece sempre novas fontes de inspiração. É preciso saber captá-las, saber reconhecê-las!”

O que é saber História? É saber enquadrar as correntes artísticas e filosóficas nas suas épocas, saber ler os símbolos, saber ler as entrelinhas da nossa vida colectiva que a História e a Literatura, as Artes e a Filosofia, nos ensinam em cada época, e daí retirar as lições que elas contêm!

====== NOTA:

Quem foi José Afonso

José Afonso (1929-1987) foi um cantor e compositor português, também conhecido pelo diminutivo de Zeca Afonso, ou simplesmente, Zeca.

Zeca Afonso desenvolveu uma forte ligação ao continente africano, pois aos 3 anos de idade, foi viver em Angola, onde seu pai, juíz, tinha sido colocado. Seguidamente, a família foi para Lourenço Marques - actual Maputo - Moçambique.

Em 1937, regressou a Portugal, tendo ido viver em casa de um tio. Aí, viveu num ambiente favorável ao regime político então vigente (a Ditadura), pois seu tio era "presidente da câmara", em Belmonte, uma vila no interior norte de Portugal.

Durante o período que medeia entre 1939 e 1945, o menino não tem notícias dos pais, então em Timor, onde estiveram cativos das forças japonesas durante a II Guerra mundial.

José Afonso fez os seus estudos universitários na Universidade de Coimbra. Aí, integrou o 'Orfeão Académico de Coimbra' e a 'Tuna Académica da Universidade de Coimbra'.

Entretanto, tinha casado - em segredo - com uma jovem, costureira, furtando-se assim à oposição da família, que não a considerava do mesmo nível social.

Em 1953 nasce o seu primeiro filho. Tem dificuldades económicas. Para ajudar ao orçamento familiar, dá explicações, e faz revisão de textos num jornal de Coimbra.

Data desta época, o seu primeiro disco, intitulado FADOS DE COIMBRA.

Entre 1953 e 1955, cumpre o "serviço militar obrigatório". Etapa da sua vida que estava em oposição total com as suas convicções. Segundo contaria mais tarde, quando tinha que desmontar a arma para a limpar, nunca acertava na remontagem! Para que os superiores o dessem como inapto, fazia-se passar por parvo, pateta, e de tal modo representava que acabou por se sentir algo afectado...

Antes de terminar o curso, obteve permissão para leccionar no "ensino secundário" - não nos Liceus, mas no Ensino Técnico. Foi nesta fase da sua vida que fui sua aluna, na escola então denominada como Escola Industrial e Comercial de Faro (Faro, a cidade capital da província do Algarve) - eu era então uma menina de uns 14 anos...

Recordo como ele era "lindo"!

Recordo como estávamos todas apaixonadas por ele!

Foi uma sensação na cidade, quando ele fez uma primeira aparição na Rádio Televisão Portuguesa, em 1958.

Em 1963, terminou o curso, defendendo uma tese sobre o filósofo que marcou a década de '60, Jean-Paul Sartre.

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Entre 1962 e 1968, José Afonso cria as suas primeiras músicas de intervenção. Os poemas das suas canções , de que é também o autor das músicas, chamam a atenção da Censura, como explico no texto acima.

Faz digressões pela Europa.

Em 1964, com a sua segunda esposa, estabelece-se em Moçambique, tendo sido professor em Lourenço Marques (actualmente, Maputo), e também na cidade da Beira.

As suas canções continuam a ser críticas, pois ele contesta a Ditadura vigente, contesta a Guerra Colonial, continuando assim a chamar a atenção da Censura...

Essa sua permanência em Moçambique, futuramente, viria a ter forte influência na sua música.

Quando regressa a Portugal, é expulso do Ensino oficial. Sobrevive dando explicações.

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A partir de 1967, ele já é um símbolo da Resistência à Ditadura, e à Guerra Colonial.

As prisões e a tortura afectaram-no muito. Nos seus últimos tempos, era o seu amigo, o cantor António Correia de Oliveira que lhe ia segredando os poemas das canções, durante as suas actuações...

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É a sua canção - "Grândola, Vila Morena", que é escolhida como senha para a saída dos militares dos quartéis, na manhã do dia "25 de Abril" de 1974 - a manhã da Revolução dos Cravos:

A canção foi difundida de manhã cedo pela importante estação de rádio - Rádio Clube Português .

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Apesar do seu posicionamento de contestação à Ditadura e à Guerra Colonial, José Afonso nunca se vinculou a nenhum partido político.

José Afonso faleceu a 23 de Fevereiro de 1987, vítima de esclerose lateral amiotrófica.

O seu funeral foi comovente; foi acompanhado por cerca de 20.000 pessoas.

José Afonso marcou toda uma geração. Foi um símbolo.

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As suas canções encontram-se no You Tube.

Basta procurar por José Afonso, ou por Zeca Afonso.

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Leituras complementares:

Tudo quanta fica dito acima, se encontra na Internet, nomeadamente na Wikipedia.

Myriam

25 de Junho de 2023

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 24/06/2023
Reeditado em 18/08/2023
Código do texto: T7821317
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