Alternativa legal

Em que pese a idéia preconcebida pela grande maioria de que as alternativas propostas pela lei representem o supra-sumo da vontade soberana do povo, cristalizado no entendimento e no discernimento de cada um, isso nem sempre corresponde à verdade. Tal fato foi comprovado pelos tantos dissabores sofridos por grandes parcelas da sociedade brasileira nas últimas eleições municipais, à luz dos conflitos eleitorais suscitados na aplicação da legislação estabelecida em nosso país pertinente a esta área. A solução da Justiça foi como uma azeitona com caroço empurrada goela abaixo pela boca do povo, que não conseguia degluti-la, diante da estupefação em que se encontrava. Naquela ocasião, vários prefeitos, eleitos por mais de cinqüenta por cento de suas populações, foram cassados pela Justiça Eleitoral em cumprimento de uma das alternativas oferecidas pela lei.

Hans Kelsen, um famoso jurista nascido em 1881 na cidade de Praga, atual capital da República Tcheca, quando esta então pertencia ao Império Austro-Húngaro é o principal responsável por essa linha de conduta de índole estritamente legalista. Em 1911 publicou uma teoria na qual defendia que “o direito devia ser validado e ordenado pela teoria do direito, entendida como pura por se sustentar logicamente e não depender de valores extralegais” (NOVA Enciclopédia Barsa. São Paulo: Barsa Consultorial Editorial, 2001. 8 v. p. 396). O Brasil é um dos muitos países que adotou esse sistema jurídico em que a supremacia da lei é “quase sempre” a última palavra. É o que acentua o professor e eminente jurista João Batista Herkenhoff, em sua obra Movimentos Sociais e Direito, ao registrar que em pesquisa por ele realizada, constatou que “apenas 7,8% dos juízes julgavam freqüentemente contra a jurisprudência dominante. A grande maioria (76,3%) declarava raramente julgar contra a jurisprudência dominante, enquanto 15,8% dos magistrados nunca julgavam contra a jurisprudência dominante” (HERKENHOFF, 2002. p. 29). Vemos que Kelsen continua sendo endeusado, apesar de que o legislador brasileiro tem deixado patente que a lei, embora seja uma das alternativas a serem observadas pelos magistrados, não deve ser aplicada ao pé da letra, mas sim à luz de seus fins sociais e de outros valores. É o que podemos depreender da interpretação do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, bem como do art. 3º da CF/88.

A finalidade da lei eleitoral, com certeza é garantir, pelo voto direto, secreto, universal e periódico, a alternância no poder de forma democrática, mansa e pacífica. Essa é sua finalidade maior. Diz o art. 1º do Código Eleitoral que suas normas são “destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos, precipuamente, os de votar e ser votado” (BRASIL. Lei 4.737, de 15 de julho de 1965). Apesar desse espírito da lei, da sua essência, do seu aspecto fundamental, o que se vê é uma aplicação prioritária dos seus aspectos secundários. Embora não negligenciemos a importância destes enquanto normas complementares ao texto legal e, portanto, merecedoras de atenção, entendemos que elas não devem ser utilizadas como o fiel da balança da vontade soberana do povo que, em primeira instância é o criador e legitimador do Estado, a qual, por isso mesmo, é maior do que ele. Podemos até entender que estamos diante de uma situação de legalidade, posto que a cassação dos registros das candidaturas dos prefeitos eleitos, pelos motivos alegados, encontra-se prevista na lei eleitoral. Todavia, é inegável que estamos convivendo com uma típica crise de legitimidade transitando em nossos tribunais. A vontade dos cidadãos dos municípios em questão, expressa nas urnas por uma maioria inquestionável não está sendo respeitada. A pena prevista na lei apresenta-se aos olhos respeitáveis dos intérpretes como algo maior do que a augusta e suprema soberania popular.

Não queremos entrar no mérito de cada uma das questões particulares que tiveram lugar em qualquer outra parte do país. Queremos, sim, contribuir de forma acadêmica com o debate ora em curso, como convém a um estudante do Direito que se preza. Data venia de todos os nossos mestres, doutores e demais operadores do direito, certamente com maior grau de autoridade, entendemos que a questão da soberania popular não foi sopesada em sua inteireza e os aspectos privilegiados nas decisões certamente afrontam os valores maiores que sustentam um Estado de direito como o nosso.

Em um caso particular, por exemplo, discute-se e penaliza um candidato alegando que ele abusou do poder econômico por divulgar um panfleto com a intenção de relembrar ao povo como ele aplicou os recursos públicos enquanto prefeito do Município. Isso foi abuso do poder econômico conforme a lei e deve ser punido regiamente para que os demais não incorram no mesmo erro. Seria louvável uma tal decisão contra “a interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto”, se de fato esse peso e essa medida fossem aplicados de forma universal e imparcial. Todavia, o que se viu, com todo o respeito que a autoridade merece pela sua decisão, foi a punição de um “furto de abóboras”, em detrimento da punição merecida e necessária daqueles que realmente desequilibram o processo ao investir milhares de reais em suas campanhas, contra aqueles que não dispõem de meios para obter tais benesses. Se as campanhas do milhão contra o tostão não são consideradas como abuso do poder econômico, como se pode dizer que um candidato cometeu um crime apenas por divulgar as obras que realmente fez enquanto prefeito de seu município e que todos sabem que ele realmente fez?

Onde está o equilíbrio tão propalado e defendido, quando se vê candidatos a pé, de casa em casa, humildemente pedindo um voto à sua candidatura, enquanto que outros tripudiam de nossa calma e paciência, transmitindo seus pedidos de votos centenas de vezes, por meio de potentes carros de som que invadem o mais íntimo dos recônditos de nossos lares? Isso é abuso de fato, porque incomoda e perturba a nossa racionalidade e inteligência. No entanto, não somente o povo, mas também os promotores, os juízes e advogados são também atormentados por essa escandalosa manifestação de abuso do poder econômico e que é tolerada sem nenhuma preocupação quanto à manutenção da “liberdade do voto” prevista na lei.

Em outra frente debatia-se a questão da participação na inauguração de obra pública do candidato a prefeito, mas na mesma decisão se enfatizava que não haveria nenhum problema se fosse o vereador que participasse. Com a devida vênia, isso é um absurdo. Onde está o princípio constitucional da igualdade formal de todos diante da lei? Um pode participar e outro não pode. A inauguração beneficia um, mas não beneficia o outro? É evidente a tendenciosidade dessa lei. Tal dispositivo não poderia prevalecer, porquanto fere a moralidade pública, ao tratar dois candidatos em situações idênticas, de formas distintas. É claro que a decisão está de acordo com a lei, mas essa norma contraria os pilares do ordenamento jurídico nacional e requer a ousadia e a coragem de nossos operadores do direito para afrontá-la em prol de sua expurgação do cenário. Guardemos dele apenas a vergonhosa e triste memória pelos danos materiais que pretendeu produzir contra a democracia, a moralidade e a soberania popular, dentre outros princípios axiomáticos que fundamentam o nosso direito brasileiro.

Ao concluir queremos dizer que encontramos muita tristeza e decepção ao andarmos pelas ruas e conversarmos com o povo naqueles dias. A nossa gente estava se sentindo traída. Mas o que é pior é que ela não se sentia traída pelos candidatos cassados, mas pela nossa justiça, nossa sublime justiça. E isso estava instaurando um clima de intranqüilidade e de revolta popular. Ainda me recordo das cenas que vi nos documentários brasileiros da nossa história, registrados pela videoteca e cinemateca nacional, quando as pessoas eram agredidas, presas, feridas e mortas nos confrontos com o poder estabelecido. A maioria popular tem a força e sua vontade deve ser a lei em um estado de direito. Enquanto for respeitada ela é um leão adormecido. Ao revés, é uma fúria em ação incontrolável e a catástrofe é inevitável, pois enquanto massa e não tendo cérebro, não pensa, apenas amassa. Que Kelsen seja destronado com sua alternativa unicamente legal e que se inicie de vez o mandato constitucional do povo com sua vontade sendo a soberana. Viva a democracia!

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Izaias Resplandes de Sousa é licenciado em Matemática e Pedagogia pela UFMT, especialista em Estatística pela UFLA/MG e Gerência de Cidades pela FAAP/SP e bacharelando em Direito pela UNICEN de Primavera do Leste, MT.