União Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo e suas Consequências Jurídicas

As relações homossexuais, que merecem ser chamadas de uniões homoafetivas, termo criado pela Desemb. Maria Berenice Dias, sempre foram relegadas à marginalidade, pois constituem tema cercado de preconceitos e tabus, sendo alvo de omissão legal, impedindo muitas vezes que lhes seja concedida tutela jurídica, gerando profundas injustiças para tantas pessoas que, estando inseridas no contexto social, têm direito à felicidade.

A garantia da justiça é o dever maior do Estado, que tem o compromisso de assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, dogma que se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade.

Ninguém pode ser discriminado em razão de sua identidade sexual, que se insere entre os direitos humanos fundamentais, fazendo jus à proteção jurídica do estado, sob pena de ser ferida a própria constituição, que consagra como princípios maiores a igualdade, a liberdade e o respeito à dignidade humana.

A lei não consegue, porém, acompanhar o desenvolvimento social cada vez mais acentuado, sendo as relações afetivas as mais sensíveis à evolução dos valores e conceitos. Dada a aceleração com que se transforma a sociedade, eles escapam ao direito positivado, não tendo o legislador condições de prever tudo o que é digno de regramento.

Indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade sexual, albergando a liberdade da livre orientação sexual.

Ao serem visualizados os direitos de forma desdobrada em gerações, é de se reconhecer que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade, pois compreende o direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural, que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.

Também não se pode deixar de considerar a livre orientação sexual como um direito de segunda geração, por dar origem a uma categoria social que deve ser protegida, sendo considerada hipossuficiente. A hipossuficiência não deve ser identificada somente sob o viés econômico, é pressuposto e causa de um especial tratamento dispensado pelo direito. Assim sendo, a hipossuficiência é social, e, por reflexo, é jurídica. Trata-se de deficiência de normação jurídica, deixando à margem ou à mingua do direito uma certa categoria social, tão somente por algum preconceito ou discriminação, cujo critério nem sempre é econômico.

Não se pode, portanto, deixar de incluir como hipossuficientes os homossexuais, pois, mesmo quando fruam de uma condição econômica suficiente, são socialmente, e por reflexo preconceituoso, juridicamente hipossuficientes.

Igualmente, o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira geração, esta compreende os direitos decorrentes da natureza humana, mas não tomados individualmente, porém genericamente, solidariamente, a fim de realizar toda a humanidade, integralmente, abrangendo todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana. Entre eles não se pode deixar de incluir e enxergar a presença do direito de todo ser humano exigir o respeito ao livre exercício da sexualidade. É um direito de todos e de cada um, que deve ser garantido a cada indivíduo por todos os indivíduos, solidariamente. É um direito de solidariedade, sem cuja implementação a condição humana não se realiza, não se integraliza.

A sexualidade é, assim, um elemento integrante da própria natureza humana, genérica ou individualmente considerada. Sem liberdade sexual, sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o individuo humano e o próprio gênero humano, não se realiza, do mesmo modo quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.

Por isso, é totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, isto é, pré-conceitos, ou seja, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e engessados para o presente e o futuro. As relações sociais são dinâmicas. Não compactuam com preconceitos que ainda se encontram encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela historia da sociedade humana. Necessário é pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura de nosso tempo. Para isso, é imprescindível pensar novos conceitos.

Daí o papel fundamental da doutrina e da jurisprudência. Ambas necessitam desempenhar sua função de agente transformador dos estagnados conceitos de sociedade. Veja-se o que ocorreu com o concubinato, antigo e discriminado modo de viver substituído pelo conceito moderno de união estável. A alteração do conceito das chamadas relações concubinárias foi provocada pelos operadores do direito. Estes, ao extraírem conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fizeram com que eles chegassem à sede constitucional, ao texto da própria Constituição, sendo reconhecidos como entidade familiar pelo artigo 226, §3º da CF.

Não há dúvida de que da mesma responsabilidade não pode agora abrir mão a justiça com referência às uniões homossexuais. Tal qual as relações heterossexuais, as homossexuais são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento mútuo, devendo-se reconhecer a união estável como um gênero que comporta mais de uma espécie: a união estável heterossexual e a união estável homossexual. Ambas fazem jus à mesma proteção, e, enquanto não surgir legislação que trate especificamente da união estável homossexual, é de aplicar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares e, sobretudo, à união estável heterossexual, que por analogia é perfeitamente aplicável às uniões homossexuais.

Forçoso salientar que o fato de não haver previsão legal para específica situação não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito merecedor de tutela jurídica. O silêncio do legislador deve ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta em julgamento. Clara a determinação do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que diz que na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais do direito.

Nesse sentido, é mister que se ressalve o enorme significado da recente positivação de tais direitos que ocorreu na esfera administrativa. Em face da decisão do Supremo Tribunal Federal determinando que se estendessem os benefícios previdenciários aos pares do mesmo sexo, vem o INSS a normatizar a concessão de benefícios aos parceiros homossexuais. Esse, com certeza, é o primeiro passo para enlaçar tais relacionamentos na esfera da juridicidade, e, especialmente, do direito positivo.

Indispensável reconhecer que os vínculos homoafetivos são muito mais do que meras relações homossexuais. Em verdade, configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito, mas deve ser cuidada pelos conceitos científicos do direito, sob pena de o direito falhar como ciência, e o que é pior, como justiça.

A identificação da presença de um vínculo amoroso, cujo entrelaçamento de sentimentos leva ao entrelaçamento das vidas, é o que basta para que se reconheça a existência de uma família. Como já afirmava Saint Exupéry: você é responsável pelas coisas que cativa. Esse comprometimento é o objeto do direito de família. Leva à imposição de encargos e obrigações, que dão base à concessão e prerrogativas a quem passa a comungar com outrem a sua vida.

Se basta o afeto para se ver uma família, nenhum limite há para o seu reconhecimento. A presença de qualquer outro requisito ou pressuposto é desnecessária para sua identificação.

Que entre o preconceito e a justiça, fique o Estado com a justiça e, para tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando velhos preconceitos. Esses novos conceitos a doutrina já os está elaborando, como o conceito de união estável homoafetiva como uma outra espécie de união estável, ao lado da união estável heterossexual.

Está na hora de o Estado – que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana – deixar de sonegar o timbre jurídico – a juridicidade – a tantos cidadãos que têm direito individual à liberdade, direito social a uma proteção positiva do Estado, e, sobretudo, direito humano à felicidade.

(Apresentação da monografia com mesmo título – Escola da Magistratura do Paraná – 2003)

Caroline Schneider
Enviado por Caroline Schneider em 16/03/2006
Código do texto: T124168