Da harmonia

Até mais ou menos o último quartel do século 19, a tendência na pintura européia – e em todos os países que estavam sob a influência cultural da Europa – era um classicismo mórbido e apático, cujo representante mais célebre foi Cabanel. Nos salões da época, entravam poucas pinturas que não fossem a representação de uma cena histórica, ou de uma divindade grega, abundantes em detalhes e carentes de cor e estilo. Embora artistas como Delacroix, Daumier e Corot representassem uma significativa reação a essa pintura deprimente que dominava os salões, só se pode falar numa reação ampla a partir da vitória do Impressionismo, nos últimos anos desse século.

Antes disso, o que podia agradar o público num quadro era a riqueza de detalhes; a escolha do tema, o viço do traço e a harmonia das cores eram aspectos da obra que pouco interessavam ao público: o que realmente interessava era o virtuosismo, a capacidade que o pintor tivesse de desenhar todos os detalhes de uma orelha, de uma árvore, ou de qualquer outra coisa. As pessoas aproximavam-se das telas para estudar os detalhes da imagem, como peritos judiciais, e verificavam se o artista não havia se esquecido de nenhuma veia ou fio de cabelo: se o artista não tivesse se esquecido de nada, poderia esperar a aclamação do público, não importando se, a três metros de distância, sua tela mostrasse uma imagem grotesca.

Os impressionistas fizeram o contrário: com pinceladas mais longas, raramente se debruçando em miudezas, eles criavam combinações inusitadas e elegantes de cores e formas. Se alguém se aproximasse demais da tela, veria ali somente manchas jogadas ao acaso – mas a um passo de distância, veria uma imagem harmônica. Com esse estilo, os impressionistas pintaram a chuva, o vento, a luz, pois as combinações permitiam a representação até de sinais atmosféricos, o que o pincel enferrujado dos acadêmicos jamais permitiria.

Foi uma questão de tempo para o público perceber como era harmônico um quadro impressionista, apesar de algumas pinceladas tortas.

É interessante observar como a oposição entre a neurose detalhista e a imperfeição harmônica que existe na pintura se repete nas outras artes, e até mesmo nas ciências.

Na ciência do direito, uma ciência social, ainda existem – pois nessa área poucas coisas têm mais influência em longo prazo do que as tradições vazias – algumas cabeças que insistem em passar anos estudando artigos de lei, do mesmo modo como os pintores acadêmicos passavam dias pintando pormenores de orelhas e árvores. O resultado disso é uma concepção miserável do direito como um amontoado de regras de conduta, freqüentemente de entendimento difícil, cujos fins velados são distrair algumas dúzias de eruditos e causar sofrimento aos que dependem deles.

O jurista deve ser como o pintor impressionista, e esquecer esse detalhismo senil; os discursos legalistas, as frases ocas, as demonstrações meladas de erudição; e o virtuosismo como um fim em si. Em vez de ler sem maiores reflexões os artigos de alguma das milhares de leis de um sistema jurídico positivista, começar deitando a luz dos princípios mais gerais da ciência e da técnica sobre o seu objeto de estudo, e a partir daí construir um pensamento jurídico harmônico e próprio.

No direito, assim como na pintura e no resto das coisas, a capacidade de ver em panorama e de identificar onde está a harmonia é o que leva o homem a realizar as maiores obras.