CONSTITUICÃO, CIDADANIA E SEGURANÇA PÚBLICA.

Por Marcio Rabelo

1. INTRODUÇÃO

O desígnio de produção desse artigo surgiu a partir de duas provocações pertinentes ao debate da segurança pública. Primeiro com a campanha da fraternidade de 2009, realizada pela CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil), cujo tema foi “Fraternidade e Segurança Pública” e lema “A Paz é Fruto da Justiça” (Is. 32,17). Em segundo momento, devido à realização em 2009, da 1ª Conferencia Nacional de Segurança Pública, promovido pelo Ministério da Justiça. Incentivados por tais realizações, teremos por escopo buscar clarividências sobre algumas leituras da cidadania e sua relação com a segurança pública no estado democrático de direito.

2. A ORIGEM DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

O processo de redemocratização no Brasil nos anos 80 levou o país à busca de novos princípios, permitindo uma consolidação e renovação das instituições. Como dizia Herbert de Souza, o Betinho, “enquanto a oposição exercida pelas entidades de direitos humanos e pelo conjunto da sociedade era entre a ditadura e a democracia, entre opressão e liberdade, a luta era dura, mas tinha-se a certeza do rumo. Havia, na verdade uma só proposta: mudar o poder” (SOUZA, Apud, MOSER, 2003, p. 220).

No entendimento de (2003, p.541) Letícia Bicalho Canêde:

“À volta a democracia, culminada com a mobilização em favor das eleições diretas – a maior campanha popular da historia brasileira, considerando o número de pessoas mobilizadas nas ruas das capitais e das demais cidades importantes -, criou um ambiente de otimismo no conjunto do país, sustentado pela crença na força da instituição eleitoral como expressão do poder popular. O otimismo prosseguiu nas eleições de 1986, convocadas para formar a assembléia nacional constituinte, com o registro dos eleitores informatizado e unificado nacionalmente no TSE. Com o recadastramento, o número de eleitores no país chegou a 60,3 milhões”.

Nesse sentido, a elucidação da política democrática nasceu de diversas lutas e protestos, engendrou um novo Brasil através de um “parto cesariano” composto de princípios constitucionais democráticos que são solidificados, sobretudo na Constituição de 1988. Assim, aparece a cidadania como paradigma inaugurando uma nova face de descobertas dos direitos que antes pertenciam apenas a grupos isolados, aqueles chamados de “coronéis oligárquicos”.

Sabemos que o problema da segurança publica é politizada, na medida em que é dever do Estado manter a ordem e a “paz pública”. Historicamente, sabemos que desde a criação do “Leviatã” no século XVI, o cidadão ou sujeito como assim era chamado passou a delegar seu poder a outrem em troca de segurança e favores que o Estado lhe prometera.

É com esse mesmo espírito que o projeto constitucional, arquitetado na Carta de 1988, de modo específico, no campo da segurança publica, não passa de texto constitucional que exige executividade. Por isso foi legitimado um princípio traçado no artigo 144, in verbis: “[...] é dever do estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]”.

Sendo assim, o Estado se responsabiliza pelo segurança tanto individual quanto coletiva. Já para aplicabilidade dessa temática temos as legislações tanto penais como processuais penais, que orientam a performance funcional dos órgãos de segurança.

Além do mais, a segurança pública existe como sistema, que nas palavras de Braga (2008, p.03) “é um sistema composto de quatro subsistemas: o subsistema policial; o subsistema ministerial (Ministério Público); o subsistema judicial (Poder Judiciário) e o sistema penitenciário”. O sistema deve funcionar com todas suas atribuições para um único “telos”: o estado de segurança individual e o coletivo.

Lamentavelmente, o povo não tomou a devida consciência desta organicidade ou mesmo não lhe deram possibilidade para tal entendimento, pois ainda a segurança pública é entendida apenas como o aparelho de repressão do Estado, isto é, a polícia. Essa ideologia é mantida, devido sabemos que o surgimento da policia no Brasil foi inspirada para ter função de controle social dos excluídos e defender as oligarquias.

Nessa matriz de pensamento, a polícia, ainda hoje, é entendida como o único órgão responsável pela segurança. Todavia, a sua função é apenas mais árdua que todas as outras, pois tenta eximir a criminalidade, exigindo o cumprimento das leis e solução dos conflitos. Sendo assim, o monopólio do uso da força pelo Estado, por meio das policias, tem que estar pautado na legalidade, sob controle de fiscalização.

3. CIDADANIA E SEGURANÇA PÚBLICA

Em especial, a necessidade de releitura do conceito de cidadania (activae civitatis) torna-se importante na Carta Constitucional de 1988, em sentido do principio da cidadania ser um dos seus fundamentos democráticos. Infelizmente, devido o lento processo de educação, a sociedade brasileira não se deu conta da particularidade de ser cidadão, tal conceito não se esgota na compreensão de ser somente aquele que participa dos negócios da cidade - como o direito de sufrágio universal. Mas, o ser cidadão transcende tal perspectiva.

É sabido, desde a “Paidéia” grega, até chegar o “Iuris Civilis” dos romanos, onde era comum o discurso reducionista da cidadania. A abrangência desse discurso deu-se com o advento modernidade, de modo especial a Revolução Francesa e sua Constituição dos direitos do homem e do cidadão de 1789, onde houve um salto qualitativo ao discurso da cidadania. No contexto do Brasil, as maiorias das cartas constitucionais brasileiras deram ênfase à cidadania, ainda que a mesma fosse atrelada à nacionalidade. Pois, como afirma Andrade (1993, p.46) “as constituições de 1824 e 1891 aludem expressamente à cidadania. A constituição de 1934 se refere apenas a brasilidade. As constituições de 1937 e 1946 se referem à cidadania e a nacionalidade. A constituição de 1967 se refere apenas a nacionalidade”.

Mas, o “ponto axial” está na Constituição de 1988 que não apenas solidificou a questão da cidadania e nacionalidade, como resgatou o verdadeiro sentido do discurso da cidadania. Assim sendo, a cidadania passou a ser um dos fundamentos do estado democrático de direito, alcançando um patamar não visto antes pela historia, que na expressão de Bauman, a linguagem da carta de 1988 torna o discurso da cidadania mais “liquido”, no sentido de haver crescimento das discussões envolvendo esse assunto.

Para enfatizar essa temática. Andrade (1993, p.28) afirma que “o discurso da cidadania apresenta-se, assim, como uma construção exclusivamente normativa, sem nenhum apelo a outros âmbitos de significação, onde a mesma aparece como construção do Direito, como status legal, cujo enunciado privilegiado é o Estado”.

Nessa perspectiva, vemos que é essencial a cidadania para a democracia, pois não há cidadão sem democracia ou democracia sem cidadão. Em vista disso Baracho (1995, p.03) expressa que: “a participação do cidadão no poder, como característica da democracia, configura-se pela tomada de posição concreta na gestão dos negócios da cidade, isto é, no poder. Essa participação é consagrada através de modalidades, procedimentos e técnicas diferentes”.

Dessa feita, os tempos hodiernos pedem uma cidadania que exija uma verdadeira participação nos assuntos estatais, na qual o mesmo possa contribuir para uma sociedade justa e fraterna – aparece nessa perspectiva o esforço para atribuição de uma segurança cidadã. Sendo assim, a cidadania enquanto fenômeno jurídico revela o status do indivíduo no estado em que vive.

Dando continuidade, é de esmero de todos que passamos por uma crise civilizacional. Assim, desde 1992 o pensador Pierre Bourdieu identificava a crise pela qual passava o processo de democratização e então relatava que “é urgente criarmos as condições de um trabalho coletivo de reconstrução de um universo de idéias realistas, capazes de mobilizar as vontades sem mistificar as consciências”. (2008, p.04).

Além disso, a democracia no final do século XX em nenhum momento da história alcançou um patamar que garantiu tanto os direitos do cidadão, exigindo a aplicabilidade dos direitos humanos. Nesse sentido, a democracia buscou transferir o poder para o povo, pois, ao contrário, muitas vezes a democracia serviu apenas para limitar o acesso da maioria ao poder.

Ademais, esse regime político como instrumento de governabilidade, não passou de uma forma de assegurar a legitimação de governos voltados à manutenção dos status quo.

Na expressão de Andrade (1993, p.38): “a cultura jurídica dominante – reproduzida nas escolas de direito – atua como fator legitimador da atual dominação social e política, mantendo um compromisso nítido com a ideologia hegemônica da sociedade e conseqüentemente com a vigência e reprodução do status quo”.

Eis o motivo de a segurança pública ficar omissa diante de seu papel enquanto tal, pois por trás dessa inteligibilidade existe um descaso que amplia as desigualdades sociais, provocando um empobrecimento na maioria da população. Isso lembra a forte premissa de Gandhi que “a pobreza é a maior forma de violência”.

Ademais, a República Federativa do Brasil no ano de 2008 gastou 27 bilhões de Reais na educação enquanto que na segurança gastou cerca de 92 bilhões de Reais. Com todo esse gasto ainda inexiste eficiência, pois crescem os setores de segurança privada, que segundo a Folha de São Paulo, a segurança privada hoje envolve oficialmente cerca 1.700 mil vigilantes particulares, além de 800 mil clandestinos, superando a marca de 602 mil policiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vista dos fatos mencionados, percebemos a existência da forte despolitização em relação ao dever do Estado brasileiro, como também grande alienação por partes de sujeitos que não se identificam como cidadãos. É necessário revitalizar a educação, visando incutir e dialogar com todas as esferas da sociedade, buscando soluções para a situação caótica em que nos encontramos neste início de milênio. Essa realidade é chamada por alguns pensadores contemporâneas de condição pós-moderna, na qual há grande ausência de ética devido o triunfo do niilismo, como também forte repúdio aos direitos humanos, ignorados em sua práxis. Assim sendo, queremos aguçar a sensibilidade de todos aqueles que se angustiam e se responsabilizam em mudar a referida situação.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: do Direito aos Direitos Humanos. Ed. Acadêmica. São Paulo, 1993.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: a Plenitude da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais. Ed. Saraiva. São Paulo, 1995.

BARREIRA, César. Em Nome da Lei e da Ordem: a propósito da política de segurança pública. São Paulo em Perspectiva, 18 (1), p. 77-86, 2004.

BAVA, Silvio Caccia. A Construção Democrática e o Futuro. Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 2, n.7, p.4, fev. 2008.

BICUDO, Helio Pereira. Direitos Humanos e sua Proteção. FTD. São Paulo. 1997.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2008.

CANÊDO, Letícia Bicalho. Democracia: Aprendendo a votar. In: História da Cidadania. CONTEXTO. 2 ed. São Paulo. 2003. cap. 4. p. 516 a 543.

Marcio dos Santos Rabelo
Enviado por Marcio dos Santos Rabelo em 29/07/2010
Código do texto: T2407258
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