USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS E CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE

A possibilidade de usucapião de imóvel registrado com cláusula de inalienabilidade gerou dúvidas na doutrina e na jurisprudência na vigência do Código Civil de 1916, que assim dispunha em seu art. 1.676:

"Art. 1.676. A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade."

Dessa forma, havia o entendimento de que apenas a expropriação, nas hipóteses mencionadas, poderia prevalecer sobre a cláusula de inalienabilidade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº 97.707, assim ementado:

"1.Embargos Declaratórios. Prazo para interposição de Recurso Extraordinário. Na contagem do prazo, que sobejar, não se computa o dia da publicação do acórdão proferido nos Embargos de Declaração. 2.Civil. Imóvel gravado com a cláusula de inalienabilidade, de que cogita o art. 1.676 do código civil. A proibição abrange os atos voluntários. O proprietário só perde o bem inalienável por desapropriação ou execução fiscal. Não o perde, porém, por usucapião. 3.Recurso Extraordinário não conhecido." (STF, 1ª Turma, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ 08-04-1983).

Na doutrina, essa posição era sustentada por WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, que considerava nulo qualquer ato que resultasse na alienação do imóvel, ainda que sem a concorrência da manifestação de vontade do proprietário, exceto nas hipóteses relacionadas no art. 1.676 aduzido. Considerava-se, assim, a usucapião como espécie de ato voluntário, consubstanciado na omissão daquele que permite que outrem adquira o imóvel após certo lapso temporal.

Todavia, a maior parte da doutrina considera, hoje, o usucapião como modo de aquisição originária da propriedade imóvel, o que faz com que tal aquisição se dê escoimada de qualquer vício, cláusula ou condição. Não se trata, portanto, de um negócio jurídico envolvendo o bem, mas de uma mudança na titularidade decorrente do cumprimento de requisitos estabelecidos em lei.

Nesse sentido, MARIA HELENA DINIZ (in Curso de Direito Civil Brasileiro, v.4, 19. ed., p.155) afirma que “a usucapião é um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto da usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara a aquisição por usucapião.”

SÍLVIO DE SALVO VENOSA (in Direito Civil, v. 5, 6.ed., p.195) também frisa que “o usucapião deve ser considerado modalidade originária de aquisição, porque o usucapiente constitui direito à parte, independentemente de qualquer relação jurídica com anterior proprietário.”

Como a aquisição por usucapião não depende de um ato negocial, mas do lapso temporal, a cláusula de inalienabilidade estabelecida pela doação não impede que a propriedade seja adquirida por outrem, como assenta MARIA HELENA DINIZ (ob. cit., p. 160), citando SERPA LOPES:

"Se, contudo, a inalienabilidade de um bem proceder de um ato negocial ou de outro ato jurídico qualquer, sob a cobertura do direito privado, como na hipótese do pacto antenupcial, dote, doação, legado, cláusulas testamentárias, o usucapiente é res inter alios acta, porque sua aquisição é de caráter originário e nenhum empecilho pode encontrar nessa incomercialidade, porquanto entre o usucapiente e o proprietário contra quem ele adquire não há a menor relação de sucessoriedade."

A jurisprudência também evoluiu em sentido distinto, e o Superior Tribunal de Justiça, hoje competente para apreciar a matéria, tem decidido em sentido diverso do anteriormente julgado pelo STF, consoante se vê dos Acórdãos a seguir ementados:

"USUCAPIÃO. Bem com cláusula de inalienabilidade. Testamento. Art. 1676 do CCivil. O bem objeto de legado com cláusula de inalienabilidade pode ser usucapido. Peculiaridade do caso. Recurso não conhecido." (REsp 418945 / SP, STJ, 4ª Turma, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ 30.09.2002)

"Ação reivindicatória. Alegação, em defesa, de usucapião extraordinário. Imóvel em fideicomisso, com cláusula de inalienabilidade. A aquisição por usucapião é aquisição originária. Com relação ao usucapiente, importa a posse pelo prazo de vinte anos, pacífica e ininterrupta, com ânimo de dono. Nenhuma relação ou sucessão existe entre o perdente do direito de propriedade, e o que a adquire pelo usucapião. Com o usucapião, simplesmente extingue-se o domínio do anterior proprietário, bem como os direitos reais que tiver ele constituído, e sem embargo de quaisquer limitações a seu dispor. Prazo de vinte anos consumado no interregno entre a data em que o fiduciário mais jovem completou os dezesseis anos, e a data da propositura da ação reivindicatória. Recurso especial conhecido pela alínea c, mas não provido." (REsp 13663 / SP, STJ, 4ª Turma, Rel. Min. ATHOS CARNEIRO, DJ 26.10.1992)

A redação do Código Civil de 2002 não deixa dúvidas acerca da possibilidade de se usucapir imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade, pois assim menciona:

"Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.

Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros."

Como se vê, o Direito evoluiu, a ponto de admitir que, por meio de negócio jurídico de alienação (portanto, com o concurso da vontade do proprietário), somado à autorização judicial, a ser concedida quando da ocorrência das hipóteses previstas na lei, seja afastada a cláusula de inalienabilidade, permitindo-se a venda do imóvel e a incidência da cláusula sobre os novos bens adquiridos.

Se é admitida a alienação do imóvel clausulado, com autorização judicial, muito mais o será o usucapião, que independe da vontade do proprietário, ocorrendo uma modificação do direito de propriedade em decorrência do lapso temporal previsto em lei.

Portanto, entendemos que a cláusula de inalienabilidade não impede o registrador imobiliário de efetuar o registro da sentença que reconheceu o usucapião, em face da admissibilidade da aplicação do referido instituto jurídico aos imóveis clausulados.

Obras do Autor:

- A responsabilidade civil dos registradores de imóveis e o Código de Defesa do Consumidor, editada pelo ClubedeAutores.com.br

- A promessa de compra e venda no Código Civil de 2002, editada pelo ClubedeAutores.com.br

- REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS - Questões de concurso comentadas, editada pelo ClubedeAutores.com.br