DISCRIMINAÇÃO DE TERRAS MUNICIPAIS

Historicamente, o registro imobiliário brasileiro formou-se a partir dos registros de atos relativos a imóveis pertencentes a particulares, em face da necessidade de dar publicidade a tais atos, permitindo a eficácia dos mesmos perante terceiros. Nesse sentido, os imóveis públicos não foram objeto de registro em um primeiro momento, já que os mesmos não eram objeto de transações comerciais, a exemplo das propriedades particulares, embora, na origem, todos os imóveis fossem públicos e paulatinamente transferidos à propriedade privada.

Essa visão sofreu modificações na atualidade, na medida em que o registro imobiliário passa a dar publicidade a tudo o que é importante em relação a um imóvel. Dessa forma, passa a ser relevante ao poder público manter registrados os imóveis a ele pertencentes, o que não ocorria na visão anterior. Tal entendimento confirmou-se com as leis que disciplinaram o processo discriminatório de terras públicas, em especial as Leis nºs 3.081/56 e 6.383/76, as quais concluem com o registro das terras discriminadas no álbum imobiliário.

Com relação aos imóveis municipais e seu registro na serventia imobiliária, cumpre verificar os títulos aquisitivos dos mesmos, uma vez que estes são aptos a ingressar no álbum imobiliário. Exemplo de títulos registráveis são os decretos de desapropriação e contratos de compra ou de doação, os quais, mediante requerimento do Prefeito, podem ser dirigidos ao registrador.

Identicamente, no que tange aos imóveis adquiridos por força do registro de loteamentos urbanos (ruas, praças), não há necessidade de título translativo, decorrendo a transmissão da propriedade diretamente à municipalidade em razão do registro do loteamento, podendo as matrículas dos imóveis públicos serem abertas por meio de requerimento do Prefeito dirigido ao registrador, demonstrando o ato que criou o loteamento (certidão do próprio registro do loteamento).

Situação distinta ocorrerá quando a administração municipal não dispuser de título aquisitivo. Em relação aos bens de uso comum do povo e aos bens de uso especial, cumpre demonstrar a sua afetação, o que pode ser feito inclusive por meio de processo administrativo, em que se verificará, inicialmente, a ausência de registro do imóvel em nome de particular. A seguir, promove-se, mediante edital, a convocação de todos os interessados, para que apresentem o que entenderem relevante. Caso não haja contestação ou reclamação de natureza administrativa ou judicial sobre o imóvel, elabora-se decreto municipal discriminando o imóvel, o qual será submetido ao registro imobiliário.

Trata-se, portanto, de um procedimento discriminatório administrativo, cuja competência para legislar é do próprio Município, por se tratar de matéria atinente à administração de seus próprios bens. Cabe ressaltar que semelhante procedimento é trazido pela Lei nº 5.972/73, que regula o procedimento para o registro da propriedade de bens imóveis discriminados administrativamente ou possuídos pela União.

Todavia, se houver qualquer contestação acerca da propriedade do bem, cumprirá à municipalidade comprovar que o imóvel a ser registrado lhe pertence, mediante ação judicial.

No que tange a tal ação judicial, porém, é discutível o cabimento da ação discriminatória ajuizada por Municípios, em face da omissão da Lei nº 6.383/76, a qual disciplina o processo discriminatório de terras devolutas pertencentes à União e determina a aplicação do mesmo aos Estados, mas não se refere aos imóveis municipais, omitindo-se a respeito.

Tal omissão harmoniza-se, todavia, com as disposições relativas às terras devolutas tanto da Constituição atual quanto da anterior, uma vez que aludidas terras são atribuídas apenas à União (art. 20, II, da Constituição de 1988) e aos Estados (art. 26, IV, da Constituição), não sendo atribuídas aos municípios. Dessa forma, a rigor, a ação discriminatória destina-se, no atual ordenamento, a separar as terras devolutas das propriedades particulares, e não é aplicável, a priori, indistintamente, a imóveis públicos, os quais são o gênero dos quais as terras devolutas são a espécie.

A jurisprudência é divergente quanto à possibilidade de um Município ajuizar ação discriminatória de terras públicas, como se vê dos Acórdãos a seguir ementados:

"DISCRIMINATÓRIA - Terras Devolutas – Município – Parte legítima para demandar – Omissão irrelevante da Lei nº 6.383, de 1976 – Recurso provido para esse fim (Apelação Cível n.º 287.101. RJTJESP 63/81 – Rel. Des. Gomes Corrêa)."

"MUNICÍPIO – Terras Devolutas – Ação Discriminatória – Legitimidade para propô-la – Terras devolutas concedidas aos Municípios paulistas pelo Estado – Irrelevância da omissão da Lei nº 6.383, de 1976, não dispondo sobre a aplicação do processo discriminatório às terras devolutas municipais – Recurso provido para esse fim (Apelação Cível n.º 287.923 – RJTJESP 67/128 – Rel. Des. Valentim Silva)."

"AÇÃO DISCRIMINATÓRIA - Legitimidade ativa ad causam - Terras devolutas - Ação interposta por Município - Admissibilidade - Terras que pertencem a qualquer das entidades estatais - Inteligência da Lei 6.383/76 (1.º TACivSP) - RT 834/258."

"AÇÃO DISCRIMINATÓRIA - Terras devolutas - Propositura por Prefeitura Municipal - Indeferimento da inicial ex vi do disposto no art. 295, I, e parágrafo único, III, do CPC - Decisão mantida por maioria de votos - Inteligência do art. 27 da Lei 4.504/64 (1º TACivSP) RT 578/118."

Em que pese a divergência doutrinária e jurisprudencial apontada, entendemos, com base no princípio constitucional de que a todo direito subjetivo corresponde uma ação que o tutele quando da sua violação, que é possível ao Município buscar em juízo o reconhecimento do direito de registrar os imóveis que lhe pertencem. Tal direito subjetivo da municipalidade é consentâneo com o dispositivo constitucional que veda a usucapião de bens públicos (art. 183, § 3º, e art. 191, parágrafo único, da Carta Magna).

Caso contrário, não se admitindo ação para tal fim, acarretar-se-ia a perda do imóvel pelo Município, em claro prejuízo a toda a coletividade.

Todavia, tal afirmação não implicará, necessariamente, na aplicação do rito específico das ações discriminatórias estabelecido na Lei nº 6.383/76, que dirige-se à União e aos Estados. O reconhecimento da impossibilidade de aplicação do rito especial regrado pelo referido diploma legal fará com que à ação interposta por Município visando discriminar seus bens imóveis seja aplicado o rito ordinário, disciplinado pelo Código de Processo Civil.

Nesse sentido, poderá a Prefeitura promover a ação visando identificar os imóveis que lhe pertencem, ainda que pelo rito ordinário, citando todos os interessados, já que esse rito é cabível para todos os processos que não dispuserem de rito especial. Pleiteará a municipalidade emissão de sentença, a qual servirá de título apto a ingressar no registro imobiliário.