Comentários acerca da Lei 9.034, de 3 de maio de 1995 - Lei do Crime Organizado

Introdução

O presente trabalho tem por finalidade abordar os principais pontos da Lei 9.034 - Lei do Crime Organizado, tais como: alcance da Lei, definição do que seja quadrilha ou bando, a preservação das garantias constitucionais, delação premiada etc. Igualmente, objetiva chamar atenção para a influência funesta que essa forma de criminalidade exerce dentro e fora do sistema carcerário nacional.

Abrangência da Lei

Assim determina o artigo 1.º da Lei 9.034:

“Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações e associações criminosas de qualquer tipo”.

Como é notório, o alcance da Lei 9.034 não se restringe, somente, aos crimes praticados por quadrilha ou bando; a supracitada Lei abrange, também, os delitos cometidos por organizações criminosas e associações criminosas de qualquer tipo.

Desse modo, cabe-nos distinguir, nos tópicos seguintes, cada um dos grupos criminosos sobreditos.

Quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal)

“Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes: Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado”.

Previsto no artigo 288 do Código Penal, o crime de quadrilha ou bando, por ser um crime formal, consuma-se com a associação estável de pelo menos 04 (quatro) pessoas para o fim de cometer crimes, ainda que não os tenham efetivamente cometido.

Faz-se imperativo ressaltar, na redação do tipo penal, a exigência da vontade livre e consciente de cometer crimes. Assim sendo, brilhante é a explanação de Guilherme de Souza Nucci: “para se concretizar a estabilidade e a permanência, devem os integrantes do bando pretender realizar mais de um delito. Não fosse assim, tratar-se-ia de mero concurso de agentes”.

Por fim, vale destacar, consoante o art. 8.º, da Lei 8.072/1990, quando a quadrilha ou bando é formada com o intuito de cometer crimes hediondos ou equiparados, a pana aplicada será de 3 a 6 anos de reclusão.

Organização Criminosa

A tarefa de conceituar o que seja organização criminosa e, igualmente, de diferenciar esse tipo penal de organização criminosa de quadrilha ou bando ou das associações criminosas de qualquer tipo não é das mais fáceis; haja vista, o posicionamento divergente da doutrina brasileira. Assim sendo, identificamos o juízo de Ricardo Antonio Andreucci como o mais adequado ao assunto:

[...] diante da omissão conceitual da legislação, passaram os estudiosos a considerar que, ao invés de conceituar o crime organizado, suportando o risco de ver o conceito desatualizado com o passar dos anos e com o incremento da tecnologia criminosa, melhor seria identificar os elementos constitutivos básicos do crime organizado, de maneira a identificá-los e assim rotulá-los à vista da análise da situação concreta apresentada”. (ANDREUCCI, 2009, p. 57).

Associação criminosa de qualquer tipo

De acordo com Gulherme de Souza Nucci:

Não contente o legislador em ter inserido no contexto do crime organizado qualquer infração praticada por quadrilha ou bando (ex.: um grupo que se forma para o cometimento de meros furtos), que exige pelo menos a reunião de quatro pessoas, houve por bem generalizar, na parte final deste artigo, mencionando associação criminosa de qualquer tipo. Ora, um mero concurso de pessoas é uma associação criminosa, motivo pelo qual já seria suficiente, em tese, para a aplicação das normas rígidas previstas na Lei 9.034/1995”. (NUCCI, 2009, p. 280-281).

Terminologia capaz de gerar mais dúvidas do que a anterior (Organização criminosa), a “associação criminosa de qualquer tipo”, por ser extremamente ampla, engloba algumas situações, menos graves, que não deveriam ser abarcadas pela Lei 9.034/1995 - que destina tratamento mais severo àquelas condutas tipificadas em seu texto.

Ainda assim, cabe-nos destacar os pontos mais relevantes, ainda que falhos, da Lei do Crime Organizado.

Procedimentos para investigação (Art. 2.º)

Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

I - (Vetado).

II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais.

IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial;

V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.

Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

Ação Controlada (Art. 2.º, II)

Segundo Fernando Capez: “esse inciso conferiu ao agente policial discricionariedade para, presenciando a prática de uma infração penal, em vez de efetuar a prisão em flagrante, aguardar o momento mais propício”.

A ação controlada significa o adiamento da ação policial contra a organização criminosa, com o objetivo de aguardar um momento que produza melhor efeito e, consequentemente, alcance um maior número de criminosos, visando à desestruturação de toda a organização.

Faz-se imperativo ressaltar, que em algumas situações o supramencionado instituto não poderá ser aplicado ao caso concreto; por esse motivo, a obrigatoriedade de observância aos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade na aplicação da ação controlada. Nesse sentido, preciso é o exemplo articulado por Guilherme de Souza Nucci:

Imagine-se que uma organização criminosa resolva exterminar testemunhas. Não poderá o agente policial, que se aproxime da referida organização, protelar a prisão em flagrante, permitindo que várias mortes ocorram, a pretexto de colher mais provas para capturar o maior número possível de envolvidos. Não é razoável, nem proporcional à finalidade da lei. (NUCCI, 2009, p.283).

Acesso a dados, documentos e informações (Art. 2.º, III)

Antes de iniciarmos os comentários acerca desse tema, imprescindível o destaque do art. 5.º, XII da Constituição Federal, que determina que:

Art. 5.º, XII (Constituição 1988) - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

O acesso a dados do investigado, indiciado ou réu abrange informações de natureza fiscal, bancária, financeira e eleitoral e, conforme observado acima, está garantido pela Constituição Federal de 1988.

OBS: Preservação do sigilo constitucional (Art. 3.º)

“Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça”.

Como visto no tópico anterior, a lei autoriza o acesso a dados, documentos e informações; todavia, ela determina que “ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz” - como forma de preservar o sigilo que é garantido pela Constituição.

De acordo com a maior parte da doutrina, não cabe ao juiz participar tão ativamente dos atos instrutórios, isso porque, tal postura poderia causar prejuízos à imparcialidade - condição que é indispensável à adequada prestação jurisdicional.

Captação e interceptação ambiental (Art. 2.º, IV)

A captação ocorre quando um dos interlocutores colhe dados e informações da conversação. Essa colheita poderá ser realizada por quaisquer meios (gravação, filmagem, imagem etc); e, em respeito ao art. 93, IX, da Constituição de 1988, depende de autorização judicial.

Infiltração por agentes de polícia ou de inteligência (Art. 2.º V)

Trata-se da circunstância na qual o agente de polícia ou de inteligência age como membro da organização criminosa, infiltrando-se, com o objetivo de coletar provas a fim de combater o crime organizado.

Identificação criminal

O artigo 5.º da lei em epígrafe estabelece que “A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil”.

Já a Constituição de 1988 determina, em seu artigo 5.º, LVII que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.

Portanto, não há inconstitucionalidade do art. 5.º da Lei do Crime Organizado, uma vez que existe prerrogativa da Constituição Federal.

Delação premiada

“Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.

Previsto no artigo 6.º da Lei 9.034/1995, o benefício prisional da delação premiada concede diminuição da pena de um a dois terços para o agente que, de forma espontânea, colabore com a autoridade policial na elucidação do crime, bem como na identificação dos demais membros da organização criminosa.

Sobre sistema carcerário nacional

Sem adentrar muito ao mérito da questão - que se mostra por demais extensa, polêmica e repleta de imperfeições; todavia, por entender que, na atual conjuntura, o assunto é de extrema relevância e de indiscutível correlação com o incremento do crime organizado, é que se faz necessário, ainda que sucintamente, análise do quadro atual do sistema carcerário brasileiro.

Como é sabido, o nosso sistema carcerário apresenta uma série de dificuldades que contribuem para que a penalidade aplicada ao indivíduo não alcance seu principal objetivo - a ressocialização do apenado. A superpopulação, as condições subumanas em que vivem os detentos, a falta de higiene e de condições mínimas de habitabilidade etc. Isso sem falar na tensão e no medo vividos diariamente pelos presos; torturas, repressão e violência - um cenário confrontante com a atual legislação nacional e internacional, e de agressão, inclusive, aos direitos humanos.

Em São Paulo, o Centro de Detenção Provisória I, de Pinheiros, tinha 1.026 homens onde caberiam 504; em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, 1.500 estavam em espaço onde só deveriam estar 500. A Colônia Agrícola de Mato Grosso do Sul, projetada para acomodar 80 presos já no regime semi-aberto, possuía 680, muitos morando debaixo de barracas e na pocilga. A cadeia pública de Contagem, em Minas Gerais, em uma de suas celas tinha 70 presos amontoados em um espaço suficiente para 12 presos. (CPI do Sistema Carcerário Nacional, 2009, p. 244).

Tudo isso comprova a total negligência do Estado e faz de nossos presídios o habitat ideal para o perfeito desenvolvimento do crime organizado. Nesse sentido, engana-se, por completo, quem imagina que as organizações criminosas somente atuam fora do ambiente prisional. As facções criminosas dominam grande parte do sistema penitenciário brasileiro, controlando e manipulando - de dentro das prisões - uma imensa rede de subordinados e aliados para a realização dos mais variados delitos.

Tamanha é força e o poder desses grupos que, em 2006, chegaram a parar a cidade de São Paulo.

As organizações possuem rígida hierarquia e, como em uma empresa, no topo vem a chefia, abaixo os sub-chefes e na base os chamados de “soldados”[...] São os soldados que saem às ruas para executar os crimes, como aconteceu em São Paulo, em maio de 2006, quando por ordem do PCC – Primeiro Comando da Capital – centenas de homens saíram às ruas promovendo ataques e mortes. Ônibus e agências bancárias foram incendiados, delegacias, viaturas e fóruns foram crivados a balas de pistolas e metralhadoras. Bombas foram atiradas contra prédios públicos. Agentes penitenciários, policiais civis e militares foram assassinados nas ruas, em restaurantes, saindo de suas casas, em paradas de ônibus ou no trabalho. Durante três dias a facção levou horror e medo aos habitantes, parando a maior cidade do País. (CPI do Sistema Carcerário Nacional, 2009, p.55-56).

Com base na leitura desse tópico e considerando tudo o que nele fora abordado, surge o seguinte questionamento: como pode o Estado, por um lado, instituir leis mais severas (como a Lei 9.034, por exemplo) - objetivando combater o crime organizado e, por outro, manter seres humanos esquecidos, em um ambiente inóspito, inseguro, incapaz de recuperar quem quer que seja e tão propício à delinquência, como os nossos presídios?

Em suma, é função do Estado estruturar o sistema carcerário nacional, para que ele possa auxiliar a função ressocializadora da pena e, por conseguinte, evitar a proliferação do crime organizado.

[...] um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, senão contradiz sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinquentes. (Ferrajoli)

Aspectos processuais da Lei 9.034

Liberdade provisória

Assim determina o artigo 7º da Lei 9.034: “Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa”.

O legislador, ao exigir a “intensa e efetiva participação na organização criminosa”, demonstra mais um caso de imprecisão, o que dificulta, por demais, o entendimento da referida norma. Qual terá sido a sua intenção o exigir do agente a intensa participação no crime organizado? Caberá, portanto, ao intérprete, diante do caso concreto, aplicar a melhor interpretação possível ao supramencionado artigo.

Encerramento da instrução criminal

O legislador, no artigo 8.º da lei 9.034, estabelece prazos para o encerramento da instrução criminal, quais sejam:

• 81 dias, se o réu estiver preso;

• 120 dias, se o réu estiver solto.

Desse modo, configura-se o excesso da prisão cautelar caso o referido tempo seja ultrapassado sem a devida conclusão da instrução criminal, devendo o acusado ser imediatamente liberado; comprovando, portanto, que a liberdade é a regra, e a prisão deverá ser a ultima ratio; devendo, somente, ser utilizada em casos de extrema necessidade.

Sobre o recurso em liberdade

O artigo 9.º determina que “O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei”.

Como é notório, o sobredito artigo padroniza a situação de diversas pessoas, que deveriam ter de forma individualizada o seu caso analisado pelo juiz de Direito. Nesse sentido, brilhante é a lição de Guilherme de Souza Nucci: “uma regra padronizada, o que não nos afigura razoável [...]. Deve o magistrado aquilatar o grau de periculosidade da referida quadrilha e a gravidade do delito cometido”.

Essa constatação, todavia, não significa que o réu não possa esperar o julgamento de seu recurso preso. A prisão do condenado, enquanto aguarda julgamento do recurso, deverá ser fundamentada nos requisitos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal - CPP, sob pena de violação ao estado constitucional de inocência.

Sobre o regime inicial de cumprimento de pena

Os condenados por crimes praticados por organização criminosa deverão iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado, não lhes sendo vedado, todavia, a progressão de regime.

Conclusão

Com base na leitura proposta e considerando tudo o que nela fora abordado, percebe-se, nitidamente, como o legislador deve ser mais objetivo e conciso na elaboração da norma; evitando, desse modo, obscuridades e imprecisões no texto legal. Essa atitude, sem dúvida alguma, facilitaria, por demais, a função do intérprete e contribuiria para uma melhor aplicabilidade da justiça aos casos concretos. Igualmente, esse trabalho chama a atenção para a atual situação do sistema carcerário nacional - que além de não recuperar os detentos - ainda contribui para a proliferação do crime organizado.

Referências

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 23 abr. 2010.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - Legislação penal especial. Saraiva, 2010.

DEPUTADOS, Biblioteca Digital da Câmara. CPI do Sistema Carcerário Nacional. Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca. http: bd.camara.gov.br. Acesso em: 15 de outubro de 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. RT, 2009.