Contrato de Compra e Venda de Veículo, Vício do Produto, Alienação Fiduciária em Garantia, Conexão entre os Contratos, Código de Defesa do Consumidor.

Os Bancos da Faculdade nos ensinam, em teoria, sobre o quão dinâmico é e deve ser o Direito, nos ensinam, ainda, ou deveriam... analisar, de forma crítica, a interação entre esta intrigante ciência, “arte do bom e do justo” (Celso), com as alterações sociais que nos cercam.

Temos visto, por razões diversas, que, a partir de situações empíricas, o Poder Judiciário acaba por nortear, com suas decisões, regramentos formais posteriores, sendo indigitado fenômeno natural e fruto de determinadas circunstâncias advindas de nosso Estado Democrático de Direito e da divisão dos Poderes, e, em outras, passível de criticas por suposta “usurpação” de competências entres os Poderes constituídos.

O Código de Defesa do Consumidor, desde seu advento, é não apenas exemplo de digesto digno dos maiores elogios, por seu um microssistema de leis, complexo e que abrange um sem número de situações e áreas do direito, como também do quanto nossa sociedade é dinâmica e obriga o legislador a repensar situações, soluções as quais inicialmente pareciam definitivas e suficientes.

O comércio eletrônico, com suas muitas nuances, resultou na necessidade de regramentos específicos, no intuito de abarcar situações inicialmente não previstas, de forma a suplementar o CDC. Não é o caso supracitado, entrementes, imperioso ressaltar que, infelizmente, nossa cultura jurídica e legislativa é extremamente subordinada ao formalismo e ao direito positivado, implicando na necessidade de haver, falando de forma bastante clara, o regramento do regramento, a regulamentação da regulamentação.

Dia destes tive conhecimento de Projeto de Lei que proibia os estacionamentos particulares de exporem aquelas famosas placas que, supostamente, os “desobrigam” de indenizar em determinadas hipóteses...certamente o próximo passo é Projeto de Lei que proíbe os estacionamento a não indenizarem...percebem?! O CDC já não regulamenta a responsabilidade dos produtores e fornecedores no mercado de consumo?!

Arrisco-me em área que pouco conheço, estando aberto inclusive a críticas dos especialistas, todavia, faço uso de “analogia” para dizer que a NORMA por trás do artigo que trata do homicídio no Código Penal é “NÃO MATAR”, entrementes, o artigo do Código Penal menciona, apenas, “Matar Alguém...”, “Pena”....

O digesto consumerista é todo baseado em princípios, possui principiologia e “mens legis” próprias, que se bem aplicadas, havendo interpretação sistemática com nossa Constituição Federal é capaz de solucionar a maior parte das questões atinentes à defesa do consumidor.

O introito acima se mostrou necessário para analisarmos de forma específica interessante movimento jurisprudencial que venho observando há algum tempo, o qual demonstra bem que o uso da interpretação sistemática de nosso ordenamento, juntamente com a análise do escopo da lei, muitas vezes são suficientes para dirimir a maioria das situações consumeristas.

Os incentivos governamentais dados ao setor automobilístico implicaram em recordes de vendas e de cessão de crédito para financiamento de veículos automotores; muitos veículos vendidos, muitos financiamentos, por consequência... muitas situações levadas ao judiciário.

Na hipótese de um consumidor adquirir um veículo, fazendo uso de empréstimo bancário, mediante contrato de alienação fiduciária em garantia, há relação entre estes dois contratos? Se houver vício no veículo, sem resolução, ensejando alguma das hipóteses do artigo 18 do CDC, há alguma relação com o contrato de empréstimo produzido, para compra do referido?

Ao analisar as jurisprudências relacionadas ao tema, possível observar que inicialmente a grande maioria de nossos tribunais trilhava caminho no sentido da não responsabilização do fornecedor do empréstimo, na hipótese de necessidade de desfazimento do contrato principal, ou seja, de compra e venda por vício do veículo adquirido.

O STJ já exarou o seguinte entendimento acerca do tema, REsp 1014547

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. CONTRATO ACESSÓRIO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DEFEITO NO PRODUTO. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. 1. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras (Súmula n. 297), mas apenas em relação aos serviços atinentes à atividade bancária. Por certo que o banco não está obrigado a responder por defeito de produto que não forneceu tão-somente porque o consumidor adquiriu-o com valores obtidos por meio de financiamento bancário. Se o banco fornece dinheiro, o consumidor é livre para escolher o produto que lhe aprouver. No caso de o bem apresentar defeito, o comprador ainda continua devedor da instituição financeira. 2. Não há relação de acessoriedade entre o contrato de compra e venda de bem de consumo e o de financiamento que propicia numerário ao consumidor para aquisição de bem que, pelo registro do contrato de alienação fiduciária, tem sua propriedade transferida para o credor. 3. Recurso especial conhecido e provido

No mencionado julgado o Relator, Ministro Joao Otávio de Noronha, dentre outras considerações, ponderou que

“Se o banco não é fornecedor do produto automóvel e se, com relação aos serviços que prestou, não houve nenhuma reclamação por parte do consumidor, é impróprio que venha a sofrer as restrições previstas no artigo 18 do CDC tão somente porque ofertou financiamento à recorrente para aquisição do bem”.

No entendimento do Relator, o contrato de financiamento não é acessório do contrato de compra e venda, já que os contratos não se vinculam nem dependem um do outro.

Há outros entendimentos neste sentido, de Tribunais Estaduais,

APELAÇÃO CÍVEL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – AÇÃO REDIBITÓRIA – Ausência de responsabilidade do agente financiador pelo vício oculto encontrado no veículo objeto do financiamento. Responsabilidade do vendedor do bem. Precedentes. Apelo DESPROVIDO. (TJRS – AC 70040819674 – 14ª C.Cív. – Rel. Des. Roberto Sbravati – J. 11.08.2011)

APELAÇÃO CÍVEL – BUSCA E APREENSÃO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA FINANCEIRA PELA QUALIDADE DO VEÍCULO SUB JUDICE – REGULAR NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL – MORA CARACTERIZADA – INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 72, DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 396, DO CÓDIGO CIVIL, AO FEITO EM ANÁLISE – RELAÇÃO JURÍDICA DIVERSA DAQUELA RELATIVA À VENDA DO BEM – 1- "A instituição financeira que apenas concede crédito para a aquisição de veículos novos ou usados não é parte legítima para responder pelo vício do produto arrendado" (Apelação Cível nº 2010.069727-5, de Itajaí, rel. Des. Fernando Carioni, j. em 14.12.2010). 2- "A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente" (Súmula 72, do STJ). SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO. (TJSC – AC 2009.003419-4 – Rel. Des. Eduardo Mattos Gallo Júnior – DJe 13.04.2012)

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal também possui julgados que seguem o mesmo entendimento:

TJDF - APELAÇÃO CÍVEL : AC 20020710154849 DF - Órgão Julgador: 1ª Turma Cível

Ementa

PROCESSO CIVIL E CIVIL. AÇÃO DE CONHECIMENTO. VEÍCULO FINANCIADO. DEFEITO. BEM DURÁVEL. CADUCIDADE. CONTRATO. ANULAÇÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA FINANCEIRA PARA RESPONDER PELOS VÍCIOS DO AUTOMÓVEL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. INEXISTÊNCIA.

(...)

II - NÃO SE VISLUMBRAM PRESENTES OS APONTADOS VÍCIOS DE CONSENTIMENTO NOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DO VEÍCULO E DO RESPECTIVO FINANCIAMENTO, MOTIVO PELO QUAL IMPROCEDE O PEDIDO DE ANULAÇÃO DO CONTRATO.

III - CONFORME DISPOSTO EM CLÁUSULA CONTRATUAL ESPECÍFICA, A FINANCEIRA NÃO TEM RESPONSABILIDADE ALGUMA POR EVENTUAL DEFEITO NO VEÍCULO OBJETO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, RAZÃO PELA QUAL NÃO PODE RESPONDER POR ATO SUPOSTAMENTE ILÍCITO PRATICADO POR TERCEIRO, NA MEDIDA EM QUE A SOLIDARIEDADE NÃO SE PRESUME. TAL FENÔMENO DECORRE DA LEI OU DO CONTRATO.

Majoritários, no entanto, atualmente, entendimentos no sentido de haver conexão entre os contratos existentes nesta triangulação; referida vinculação resta ainda mais evidente, segundo os julgados, quando o contrato de financiamento é produzido dentro da própria fornecedora do veículo, restando claro que uma avença não se concretizaria sem a realização da outra.

“Não se desconhece que, em princípio, os pactos de compra e venda e de financiamento bancário são distintos, sendo diversa também a sua natureza e finalidade. Contudo, o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos, segundo o qual o vínculo só produz efeitos entre as partes, não atingindo terceiros, merece ser abrandado, visto que as avenças dos autos encontram-se interligadas, já que têm um fim comum, que é a aquisição do automóvel.” VOTO N 5.500, Apelação com Revisão nQ 990.10.505406-4 – TJ-SP.

As decisões que dão respaldo ao apelo do consumidor na hipótese de haver vício insanável do veículo, ou não solucionado no prazo concedido pelo artigo 18 do CDC, se pautam na interligação dos contratos, fundamento que o contrato principal, compra e venda, não se perfaz, sem o conexo, financiamento.

RECURSO INOMINADO – VEÍCULO NOVO – VÍCIO DO PRODUTO – AQUISIÇÃO ATRAVÉS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – RESCISÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA – RESTITUIÇÃO DO VALOR EFETIVAMENTE PAGO PELA CONSUMIDORA, ACRESCIDO DE PERDAS E DANOS, MEDIANTE DEVOLUÇÃO DO VEÍCULO – INTELIGÊNCIA DO ART. 18, § 1º, II, DO CDC – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS FORNECEDORES – PERDA DA GARANTIA FIDUCIÁRIA (ART. 66 DA LEI Nº 4.728/95) – A rescisão da compra e venda e devolução do bem ao fabricante somente será possível mediante RETORNO das relações jurídicas AO seu "STATUS QUO ANTE", COM A QUITAÇÃO DO CONTRATO DE financiamento e DESALIENAÇÃO DO VEÍCULO. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DO BANCO FINANCIADOR NA LIDE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJBA – RIn 0000026-63.2010.805.0250-1 – 4ª T. – Relª Juíza Eloisa Matta da Silveira Lopes – DJe 04.10.2011 – p. 654

"Ação de rescisão de contrato de compra e venda e financiamento - Defeito do produto - (...) Contratos conexos - Negócios jurídicos funcionalmente interligados – Legitimidade passiva do financiador reconhecida. O contrato de financiamento e o contrato de compra e venda, embora estruturalmente independentes entre si, encontram-se funcionalmente interligados, têm um fim unitário comum, sendo ambos, em essência, partes integrantes de uma mesma operação econômica global, de tal arte que cada qual é a causa do outro, um não seria realizado isoladamente, sem o outro. Sendo conexos os contratos, possível ao consumidor promover também a rescisão do mútuo financeiro em caso de inadimplemento do vendedor. Agravo parcialmente provido" (AI 1.166.046-0/0 - Rei. Des. Andrade Neto - 30i Câmara deDireito. Privado).

Em situações como a em estudo o consumidor, muitas vezes, fica em situação extremamente delicada, pois, não há resolução do vício encontrado no veículo que o torna imprestável para uso, havendo, no entanto, obrigatoriedade contratual do adimplemento das parcelas do financiamento, sob pena de busca e apreensão do veículo, restrição de crédito junto aos órgãos competentes e demais complicadores.

Respeitáveis, por óbvio, ambos os entendimentos, entrementes, me filio àquele que protege o consumidor nestes casos, não apenas pelos argumentos jurídicos citados, mas também pelos princípios que norteiam o CDC, expostos nos artigos 4º e 6º, além do que estipula o §1º, do artigo 51, do digesto consumerista.

O Código de Defesa do Consumidor é lei de ordem pública e interesse social sendo sua aplicação, nos casos definidos pelo Código, de caráter cogente. De se concluir, portanto, que as decisões favoráveis ao devedor fiduciante, não apenas, ao que me parece, trazem Justiça ao caso concreto, como também se mostram em consonância com o ordenamento jurídico pátrio como um todo, inclusive com a Constituição Federal, que situou em seu artigo 5º, a “defesa do consumidor como dever do Estado”, estabelecendo, ainda, em seu artigo 170, como pilar da ordem econômica “a defesa do consumidor”.

Paulo Ricardo Chenquer

Advogado

Especialista em Direito das Relações de Consumo

Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da 33ª OAB-SP

richenquer@terra.com.br