ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, DECRETO 911/69 E AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 10.931/2004 SOB A ÓTICA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

"TEU DEVER é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça." (Eduardo Couture)

Aos tribunais do Rio Grande do Sul, já há algum tempo, é creditada a fama de vanguardistas, contudo, quando o tema é Alienação Fiduciária e as alterações trazidas pela Lei 10.931/2004 ao famigerado Decreto-Lei 911 de 1º outubro de 1969, o Tribunal de Justiça paulista vem demonstrando que nada deve aos colegas magistrados gaúchos. De se ressaltar que a Lei 10.931/2004, que alterou, dentre outros, o Decreto-Lei 911/69 não é nova, fato demonstrado pelo próprio ano em que a lei passou a viger. Entrementes, há se considerar que o procedimento previsto no Decreto-Lei 911/69 na maioria dos casos enseja a concessão de liminar de busca e apreensão e conseqüente, e comum, interposição Agravo de Instrumento, foi a partir do fim do ano de 2005 que passamos a vislumbrar alguma consolidação, ou tendência, da jurisprudência paulista sobre o tema, com o julgamento em definitivo dos Agravos de Instrumentos interpostos pelas partes.

As alterações mais drásticas trazidas pela Lei 10.931/2004 foram em relação ao artigo 3º do indigitado decreto, pois dentre outros, foi retirado do devedor fiduciante a possibilidade de purgar a mora. Com efeito, segundo as normas contidas no Decreto-Lei 911/69 o devedor fiduciante possuía a faculdade de “após despachada a Inicial e executada a liminar, ser citado para em, em três dias, apresentar contestação ou, se já tivesse pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação da mora”. A lei 10.931/2004 alterou o artigo 3º do decreto, passando a determinar que o réu, no prazo de cinco dias após a execução da liminar de busca e apreensão, “poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.”

Das muitas, e normais se tratando de alteração em legislação tão antiga, dúvidas que surgiram no meio jurídico no que tange à intenção do legislador ao alterar o artigo 3º do Decreto 911/69, inequívoco que o termo “integralidade da dívida pendente segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial” foi a que mereceu atenção detida de nossos juristas.

Interpretação literal da Lei 10.931/2004 não nos deixa dúvida de que, a partir das alterações havidas, a única possibilidade do devedor fiduciante reaver o bem objeto do contrato de alienação fiduciária seria efetuar o pagamento não apenas da parcela em atraso, mas também da parcelas vincendas, acrescidas, logicamente, dos já conhecidos juros e encargos bancários. A lei claramente obstou a figura da purgação da mora.

Não são poucos os problemas práticos advindos da alteração do texto legal; caso um devedor tenha pagado 28 parcelas de um financiamento de 36 meses, tendo, por lapso, olvidado de uma parcela no início do contrato, poderá o credor obter liminar para retomar o bem, restando àquele a única alternativa de pagar, em 5 dias após a execução da liminar de busca e apreensão do bem, a parcela atrasada com juros e encargos, acrescida das parcelas vencidas e vincendas.

Injusto? Ao que parece sim, todavia o termo “integralidade da dívida pendente segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial”, não nos dá, aparentemente, margem para ilações.

De se ressaltar que mesmo antes do advento da Lei 10.931/2004 que “às escâncaras privilegia o crédito fiduciário” (TJSP - HC 869474005 - 2ª C. - Rel. Des. Felipe Ferreira - J. 31.01.2005) (grifei), a jurisprudência já vinha aceitando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor na discussão dos contratos de Alienação Fiduciária, possibilitando ao devedor, nos termos do artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal e artigo 83, do CDC a discussão do contrato na própria Ação de Busca e Apreensão.

Quando se vislumbrava o pior dos quadros ao devedor fiduciante, face ao, claro e impiedoso, texto da Lei 10.931/2004, o Tribunal de Justiça Paulista, demonstrando total sensibilidade e acuidade e, por meio de aplicação sistêmica e teleológica do Direito, vem julgando os casos referentes às Ações de Busca e Apreensão em Alienação Fiduciária de forma que, no meu entender, mais se aproxima ao verdadeiro escopo do Direito, que é trazer Justiça ao caso concreto.

Ao julgar os Agravos de Instrumentos interpostos pelos devedores fiduciantes nos casos em que há a concessão de liminar nas Ações de Busca e Apreensão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, vem aplicando o artigo 54 e seus parágrafos do Código de Defesa do Consumidor, externando entendimento no sentido de que “a purgação da mora não foi vedada pela Lei n° 10931/2004, uma vez que se aplicam à matéria as normas sobre contatos de adesão nas relações de consumo contidas no Código de Defesa do Consumidor.” (TJSP - AI 883007009 - 3ª C. - Rel. Des. Jesus Lofrano - J. 15.03.2005) (grifei).

Merece destaque, dentre os já exarados sobre o tema, acórdão da lavra do muito estimado, para nós jundiaienses, Desembargador Cláudio Antonio Soares Levada que coloca verdadeira pá de cal sobre o tema ao aduzir que, “A expressão "dívida pendente", constante do artigo 56, § 2°, da lei 10931/04, dando nova redação ao artigo 3° do Decreto-lei 911/69, refere-se à dívida vencida, e não vincenda, ou seria inviabilizada a faculdade à purgação do mora. Não fosse assim e estaria o devedor fiduciante, ao pagar a integralidade de toda a dívida - vencida e vincenda -, não purgando a mora e sim adquirindo o bem objeto do contrato a vista, o que desnaturaria a própria natureza do contrato de financiamento garantido por alienação fiduciária.” (TJSP - AI 882652000 - 10ª C. - Rel. Des. Soares Levada - J. 16.02.2005)

Imperioso ressaltar que há sim decisões favoráveis ao credor fiduciário, contudo são minoritárias, não havendo, data máxima vênia, grandes comentários a serem feitos, considerando que tais decisões, além de, em minha opinião, desrespeitarem o digesto consumerista, se contentam em apenas aplicar de forma literal o texto da Lei 10.931/2004. Como exemplo, “Não há se falar em purgação da mora nos contratos de alienação fiduciária em garantia, ante as modificações trazidas pela Lei nº 10.931/04.” (TJSP - AI 873712006 - 8ª C. - Rel. Juiz Orlando Pistoresi - J. 02.12.2005)

Não bastasse serem aplicáveis as normas contidas no artigo 54 do CDC e seus parágrafos, não se deve esquecer que a Portaria nº 04, de 13 de março de 1998, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, editada com o escopo de complementar o elenco do artigo 51 do CDC, e do artigo 22 do Decreto nº 2181/97, estipula ser nula de pleno direito as cláusulas contratuais que: Não restabeleçam integralmente os direitos do consumidor a partir da purgação da mora.”

O Código de Defesa do Consumidor é lei de ordem pública e interesse social sendo sua aplicação, nos casos definidos pelo Código, de caráter cogente. De se concluir, portanto, que as decisões favoráveis ao devedor fiduciante, não apenas, ao que me parece, trazem Justiça ao caso concreto, como também se mostram em consonância com o ordenamento jurídico pátrio como um todo, inclusive com a Constituição Federal, que situou em seu artigo 5º, a “defesa do consumidor como dever do Estado”, estabelecendo, ainda, em seu artigo 170, como pilar da ordem econômica “a defesa do consumidor”.

Por certo, muitas outras questões poderiam ser levantadas e desenvolvidas, o tema é efetivamente palpitante; seguramente a jurisprudência caminhará e trará novos conceitos e pensamentos atinentes ao tema.

Paulo Ricardo Chenquer

Advogado

Pós Graduado em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP

richenquer@terra.com.br