A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DA APLICAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS, HOJE!

“Ser brasileiro me deixa sempre um pouco subdesenvolvido” (Millor)[1].

“Forçar o povo a aceitar alguma coisa que se acredita boa e gloriosa, mas que ele não quer realmente (embora se possa esperar que gostará depois de conhecer os resultados), constitui o próprio sinal revelador de sua crença antidemocrática.” (Schumpeter)[2].

Por Rogério Wanderley Guasti

A Constituição federal de 1988 quando trata da competência para legislar, estipula que:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

[...]

XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;

Pois bem, no que tange a alçada da discussão em tela, sabe-se que o próprio texto constitucional logo no “catálogo” de direitos fundamentais, art. 5º, II, já exora o princípio da legalidade, no qual: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Assim, as Universidades públicas brasileiras regidas que são pelo direito público interno, estão sob a égide do ordenamento dos atos do regime administrativo público interno brasileiro e possuem autonomia reguladora de seus atos, conforme dispõe o art. 207 da Cf/88, vejamos:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Todavia, não se pode confundir tais autonomias, em especial a didático-científica que está relacionada com o programa de curso e matéria técnico-científica das faculdades ofertadas, com competência para legislar sobre matéria que é de competência privativa da União.

Tanto é, que a Lei nº: 9. 394/1996, conhecida como a Lei de Diretrizes Educacionais, estatui que:

Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:

I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;

II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;

III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão;

IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;

V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;

VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;

VII - firmar contratos, acordos e convênios;

VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;

IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;

X - receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.

Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:

I - criação, expansão, modificação e extinção de cursos;

II - ampliação e diminuição de vagas;

III - elaboração da programação dos cursos;

IV - programação das pesquisas e das atividades de extensão;

V - contratação e dispensa de professores;

VI - planos de carreira docente.

Texto legal este, que em nenhum momento se vê o objeto do debate em afirmação, como sendo “item” de autonomia decisória, porém sim, que as universidades federais, no inciso I do art. 53, da citada lei, devem obedecer às normas gerais da União.

E, em consonância a esta disposição legal, o Conselho Nacional de Educação em Parecer de nº: 600/97, já lavrou que:

A Lei atribui aos colegiados de ensino e pesquisa das universidades – sempre dentro dos recursos orçamentários disponíveis - a competência para deliberar a respeito de cada uma e do conjunto de matérias que são essenciais para a vida acadêmica da instituição. Tal competência, na letra do artigo, é limitada apenas pelos recursos orçamentários disponíveis; no seu espírito, pelos princípios da educação nacional, demais dispositivos legais pertinentes e os fins da instituição, conforme os respectivos estatutos. Os órgãos colegiados de ensino e pesquisa têm, portanto, plena autonomia para deliberar a respeito da matéria em epígrafe. Mais ainda, determina a Lei que esses órgãos colegiados com tal competência deliberativa são os instrumentos por excelência para garantir a autonomia didático-científica das universidades.

Assim, dispõe a LDB que uma universidade só pode ser entendida enquanto tal se sua autonomia estiver assegurada por colegiados de ensino e pesquisa que livremente deliberem a respeito das matérias referidas no parágrafo único do art. 53. Esses colegiados, certamente guiados por princípios acadêmicos e profissionais resultantes da adequada qualificação de seus integrantes, têm como únicas restrições à sua competência deliberativa quanto aquelas matérias as limitações orçamentárias da instituição, os princípios da educação nacional, os demais dispositivos legais pertinentes e os fins da universidade.

Neste diapasão, o objeto de portarias ou resoluções de quaisquer que sejam as autoridades universitárias, inclusive dos conselhos de ensino e pesquisa, que tratarem sobre a aplicação de sistema de cotas nas universidades públicas, sucumbirão no vício da inconstitucionalidade formal, por quê? Por que tal matéria trata-se de diretriz educacional, conforme prescreve a atual Carta Magna, in verbis:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

[...]

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

Assunto este que compete privativamente à União legislar. Portanto, tal competência legislativa, e que até hoje não foi exercitada pela União, não pode ser regulada ao bel prazer das universidades públicas, sob a rasa alegação de autonomia, visto que autonomia didático-científica não se confunde de modo algum com competência constitucional legislativa em razão da matéria, encalhando, pois, por inconstitucionalidade formal, toda norma regulamentar que for exarada por tais autoridades universitárias, que tratem sobre sistema de cotas.

Até mesmo careceria se a matéria em debate tratasse de competência comum, como está prevista no art. 23, V da CF/88, vejamos:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[...]

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

Uma vez que tanto art. 22, quanto o art. 23, ambos da Cf/88, prescrevem em seus parágrafos únicos, que somente através de lei complementar poderá haver outorga de competência legislativa acerca desta matéria.

Isto posto, como o art. 205 da Carta Constitucional de 1988 dispõe que:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.(grifos nossos)

As normas, hoje, então, produzidas pelas universidades públicas de sob todas as formas, exemplo: portaria da reitoria, resoluções do conselho de ensino e pesquisa, etc., padecem de do vício da incompetência constitucional legislativa, isto é, de inconstitucionalidade formal, e portanto são inválidas por nulidade absoluta do meio de produção normativa, ou seja, vício formal. Vejamos o exemplo da Resolução n°: 33/2007, do Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo:

“RESOLUÇÃO Nº. 33/2007

Estabelece sistema de inclusão social no Processo Seletivo da UFES para ingresso nos cursos de graduação.

O CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, no uso de suas atribuições legais e estatutárias,

CONSIDERANDO o que consta do Processo nº. 26.962/2007-94 – COMISSÃO ESPECIAL CRIADA POR MEIO DA RESOLUÇÃO Nº. 63/2006 - CEPE;

CONSIDERANDO o que dispõe o Artigo nº. 207 da Constituição Federal do Brasil;

CONSIDERANDO o disposto no Planejamento Estratégico desta Universidade;

CONSIDERANDO a proposta apresentada pela Comissão Especial criada por meio da Resolução nº. 63/2006 - CEPE;

CONSIDERANDO, ainda, a aprovação da Plenária, por maioria, na Sessão Extraordinária realizada no dia 09 de agosto de 2007,

R E S O L V E:

Art. 1º Estabelecer um sistema de inclusão social, por meio do Processo Seletivo para ingresso nos cursos de graduação desta Universidade (PS-UFES), contemplando, de modo simultâneo e articulado, as seguintes dimensões:

I. reserva de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas que possuam renda familiar de até 7 (sete) salários mínimos mensais;

II. criação de novas vagas;

III. Programa de Permanência, nos termos do Artigo 5º desta Resolução.

Art. 2º O sistema de inclusão social terá como meta atingir o percentual de reserva de 50% (cinqüenta por cento) das vagas em cada um de seus cursos de graduação, a serem preenchidas por candidatos aprovados oriundos de escolas públicas, de acordo com o seguinte plano:

I. haverá reserva de 40% (quarenta por cento) das vagas de cada curso no PS-UFES para ingresso nos cursos de graduação no ano letivo de 2008;

II. haverá reserva de 45% (quarenta e cinco por cento) das vagas de cada curso no PS-UFES para ingresso nos cursos de graduação no ano letivo de 2009 se, e somente se, ocorrer expansão de, no mínimo, 30% (trinta por cento) de novas vagas sobre o total das vagas atuais do respectivo curso;

III. haverá reserva de 50% (cinqüenta por cento) das vagas de cada curso no PS-UFES para ingresso nos cursos de graduação no ano letivo de 2010 se, e somente se, houver expansão de, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) de novas vagas sobre o total das vagas atuais do respectivo curso.

Parágrafo único. Caso não ocorra a expansão prevista nos Incisos II e III, permanecerá a reserva prevista no inciso I deste Artigo.

Art. 3º Poderão concorrer às vagas reservadas os candidatos que atenderem ao seguinte perfil, cumulativamente:

I.ter cursado, no mínimo, quatro séries do ensino fundamental e todo o ensino médio ou curso equivalente em escola pública; e

II.possuir renda familiar de até 07 (sete) salários mínimos mensais na data da inscrição no PS-UFES.

§ 1º Os estudantes provenientes de escolas públicas que concorrerem pela reserva de vagas, de acordo com o perfil estabelecido neste Artigo, deverão apresentar, no ato da inscrição no PS-UFES, documento oficial que comprove seu tempo de estudos na rede pública de ensino.

§ 2º O rendimento familiar de que trata o Inciso II deste Artigo deverá ser comprovado, no ato da matrícula, mediante a apresentação, pelo candidato, da Declaração de Rendimentos apresentada à Receita Federal do Brasil, conforme o seguinte:

I. se menor de idade: apresentar Declaração de Rendimentos dos responsáveis;

II. se maior de idade, solteiro, com Declaração de Isento: apresentar Declaração de Rendimentos própria e dos responsáveis;

III. se maior de idade, solteiro, com rendimento próprio acima do limite de isenção do imposto de renda: apresentar Declaração de Rendimentos própria;

IV. se maior de idade, solteiro, com rendimento, declarado dependente: apresentar Declaração de Rendimentos dos responsáveis;

V. se casado(a) ou convivente: apresentar Declaração de Rendimentos própria e do cônjuge;

VI. se separado(a) judicialmente ou divorciado: apresentar Declaração de Rendimentos própria.

§ 3º Na habilitação para a Segunda Etapa de acordo com os critérios constantes da Resolução que rege o PS – UFES, se dentre os classificados não houver o número de candidatos com o perfil definido nos Incisos I e II do caput deste Artigo que contemple o quantitativo de reserva de vagas para o respectivo curso, deverão ser acrescidos candidatos até atingir o quantitativo mínimo.

Art. 4º Para o preenchimento do percentual de 60% (sessenta por cento) das vagas, primeiramente os candidatos aprovados serão classificados de acordo com a ordem decrescente de pontuação total obtida no PS-UFES, independentemente da opção assinalada quanto a reserva de vagas. A seguir, será preenchido o percentual previsto no inciso I do Artigo 2o desta Resolução com os candidatos que optaram pela reserva de vagas.

§ 1º Não havendo o preenchimento das vagas de acordo com os Incisos I e II do Artigo 3º desta Resolução, serão considerados os candidatos que tenham cursado, no mínimo, uma série no ensino fundamental e todo o ensino médio ou curso equivalente em escola pública e que possuam renda familiar de até 07 (sete) salários mínimos mensais.

§ 2º Havendo, ainda, sobra de vagas, após ser aplicado o disposto no § 1º deste Artigo, essas serão incorporadas ao quantitativo de concorrência universal.

§ 3º Para desempate, quando ocorrer, serão adotados os critérios constantes da Resolução que rege o PS – UFES.

§ 4º Nos cursos com duas entradas anuais, o quantitativo de classificados através do sistema de reserva de vagas e o quantitativo de classificados no sistema universal serão divididos ao meio, formando as duas turmas para ingresso nos dois semestres letivos.

Art. 5º O Programa de Permanência previsto no Inciso III do Artigo 1º desta Resolução contemplará as seguintes ações, a serem detalhadas pelo Conselho Universitário desta Universidade:

I. criação de um programa de assessoria especial, no âmbito da Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD), para acompanhamento e avaliação do desempenho dos discentes ingressantes por meio do sistema de reserva de vagas;

II. destinação de bolsas de estudo especiais para esse grupo;

III. assistência estudantil, entre outras.

Art. 6º O sistema de inclusão social estabelecido por esta Resolução deverá ser avaliado bianualmente por este Conselho, até o ano de 2014, ocasião em que será decidido por sua continuidade ou não.

Art. 7º O casos omissos serão resolvidos por este Conselho.

Sala das Sessões, 09 de agosto de 2007.

REINALDO CENTODUCATTE

NA PRESIDÊNCIA”.

Desta retirando o gerundismo contemplado no conteúdo motivador, apenado hoje pelo Governador do Distrito Federal, percebe-se que a matéria em muito transborda do disposto nos incisos do parágrafo único do art. 53 da LDB, antes citado, e pior fere a competência legislativa privativa da União em razão da matéria, como antes demonstrado.

Sobre este diapasão, em 21 de fevereiro de 2005, o Dr. Mauro Spalding, Juiz Federal Substituto da 7ª Vara Federal de Curitiba-PR, em decisão nos autos do processo de ação de mandado de segurança nº: 2005.70.00.003627-4[3], pronunciou que:

Inicialmente, vejo como relevante o fundamento de inconstitucionalidade formal da norma que instituiu o sistema de cotas. Isso porque tal limitação de direitos foi prevista em Regulamento, norma administrativa que não tem status de lei e, portanto, não pode restringir direitos dos brasileiros, sob pena de afronta ao princípio da legalidade previsto no art. 5º, inciso II da CF/88. Tal situação revela-me, ao menos em sede de cognição sumária, um vício formal de inconstitucionalidade intransponível.

A autonomia administrativa das universidades (art. 207, CF/88) não lhes dá plenos poderes para normatizar situações restritivas de direitos de forma genérica como aquelas discutidas nesta demanda (se por um lado amplia o direito de algumas minorias, restringe o direito de outros brasileiros em todo o território nacional) . Com efeito, o Edital nº 01/2004-NC e a Resolução nº 37/04-COUN, responsáveis pela criação do sistema de cotas, mostram-se formalmente inconstitucionais. Em outras palavras, a UFPR extrapolou seu poder normativo administrativo ao editar as sobreditas normas jurídicas, já que só por lei, material e formalmente constitucional, é que se poderia validamente restringir direitos, nos termos do art. 5º, inciso II da CF/88. Aguardemos, assim, a tão esperada "Reforma Universitária", atualmente em trâmite no Congresso Nacional, e esperamos que nela se incluam regras materialmente constitucionais.

Ademais, as vagas não são do Conselho Universitário que editou a sobredita Resolução: são públicas e pertencentes à sociedade. Outrossim, o Conselho Universitário não tem representatividade e, portanto, não é dotado de qualquer legitimidade para editar as regras destinando suas vagas conforme critérios que bem entender, diversos daqueles previstos na Constituição. Da mesma forma que a UFPR, por meio de uma Comissão de Professores e dirigentes não pode destinar uma vaga para determinado candidato específico, não pode criar critérios de afetação dessas vagas em afronta ao princípio da legalidade. (grifos nossos).

Deste modo, a inconstitucionalidade formal presente na aplicabilidade do sistema de cotas pelas universidades públicas, hoje, é assente, visto que não há lei federal que exponha do assunto, e sabendo que a Reforma Universitária anda engavetada, não podem as autoridades universitárias, sobrepondo-se nos papéis dos palermentares federais criarem ações afirmativas diante da ausência dos que a quem realmente cabe este ofício.

E, como a Constituição federal de 1988 inaugurou um novo conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentre os quais se incluem a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação, conforme preceituado já no preâmbulo da Lei Maior: "nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...". E que prevê como fundamento do Estado Democrático de Direito atual, in verbis:

Art. 3º. "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". (grifos nossos)

Tal discussão polêmica por envolver uma dialética principiológica, desperta a razão para afirmar que só lei federal não é competente constitucionalmente para resolver o que se propõe, mas somente Emenda Constitucional, apesar de se chamar a atenção de que o art. 60, §4°, da Constituição Federal, veda o poder constituinte derivado que tratar de matéria tendente a abolir direito ou garantias individuais (inciso IV).

Neste ínterim, o advogado Dr. Roberto de Oliveira Aranha já publicou peça de mandado de segurança contra ato normativo de universidade pública que prescreveu sistema de cotas, observemos:

A norma restritiva do direito do Impetrante – mera diretriz inter corporis não respaldada por nenhuma lei em sentido estrito - contém a marca de evidente inconstitucionalidade. Basta observar que em prevendo o Art. 5º da Lex Legum que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", a desobediência a esta norma que contém o sinete de cláusula pétrea implica em ominosa inconstitucionalidade, somente sendo possível através de uma Emenda Constitucional, jamais mediante norma de menor estatura. Sob outro aspecto, pelo fato de impor distinção de tratamento com base em critério étnico, incorre em verdadeiro crime de racismo, o qual é igualmente vedado pela Constituição da República. Por fim, implica em violação de outra norma constitucional, desta feita relativa ao acesso à educação, cujo teor alude à diretriz no sentido de que – "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família (...)" (arts. 205 e 227) – e significa que, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206), em segundo, que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito, o que, por certo não é reduzindo o nível do ensino e, em terceiro lugar, que todas as normas da Constituição sobre educação e ensino, hão que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização. Nesta ordem de idéias, se a denegação do acesso do Impetrante à vaga na Universidade pública - a qual, em sendo custeada pelos impostos de todos os brasileiros - não importa a cor de sua pele - não pode ser objeto de ‘loteamentos’, ‘reservas’ ou sectarismos de nenhum matiz – não decorre de Emenda Constitucional, nem de Lei em sentido estrito a denegação do Impetrante é ilegítima.

[...]

Como se fosse possível ao Reitor dispor das vagas como se tratasse de algo que lhe pertencesse, a metade das vagas reservada aos estudantes oriundos de escolas públicas e integrantes de etnias descendentes de negros e índios foi excluída da regra geral de acesso ao ensino universitário, ou seja, essa facção das vagas não foi disponibilizada para todos os candidatos, mas apenas para os beneficiários eleitos pelo Impetrado através de singela Resolução, sem respaldo de Lei ou de Emenda Constitucional que excepcione os claros termos da Constituição da República para estabelecer a absoluta igualdade de direitos entre os brasileiros e a vedação de distinções.

[...]

Com fulcro nessa autorização constitucional, a União legislou sobre diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei n° 9.394/96, que fixou as regras gerais que deverão ser observadas na educação nacional. E nela não quis o legislador federal criar sistema algum de acesso às universidades mediante "cotas" ou "reserva de vagas". Recentemente, no entanto, o legislador federal, sempre invocando sua competência para regular as diretrizes e bases da educação nacional, editou a Lei n° 10.558, de 13.11.02. Essa lei tratou justamente do "acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes e dos indígenas brasileiros" (art. 1° da Lei). Não foi porém instituído nenhum "sistema de cotas", o que serve de ilustração para a constatação de que essa odiosa discriminação não consta de nenhuma lei escrita, embora, se o quisesse o legislador, já o teria feito. Se não ousou a tanto é porque reconhece que somente uma Emenda Constitucional pode excepcionar a Constituição. Desse modo, fica bem claro que o tema "acesso às universidades de grupos socialmente desfavorecidos" inclui-se na expressão "diretrizes e bases de educação nacional", razão pela qual o Impetrado nele não poderia adentrar, sob pena de usurpar — como de fato aconteceu — competência legislativa privativa da União.[4]

Portanto, sabendo da clara inconstitucionalidade formal do método de produção legislativo para a aplicação do sistema de cotas, hoje, pelas universidades públicas, e não querendo desmerecer a “causa revolucionária”, a única solução constitucionalmente possível, neste Estado de Direito, para se alcançar a plena reintegração social e racial no país seria a adoção de ações afirmativas consoantes com o princípio da isonomia o que, no campo educacional, pressupõe o ataque do problema em sua raiz, ou seja, traçando políticas públicas eficientes que impliquem melhora no ensino fundamental e médio ofertados pelo Estado, conseguir-se-ia, assim, almejar a verdadeira justiça social, e não esta genérica que hodiernamente querem por em voga, com formas paliativas, preconceituosas e primitivas, já esquecidas pela civilização moderna, posto que isto remontaria o processo de seleção do soldado espartano. Basta de flebotomia interpretativa do texto constitucional, este já está cansado de feridas hermenêuticas com aplicações neológicas insubsistentes, pois a apofântica de seu sistema já não comporta mais curativos, isto é, emendas.

Assim, não se pode forçar o povo a aceitar algo, por se acreditar ser bom para ele, já que sendo este detentor da soberania, este tem que decidir a matéria. Desta forma o assunto em debate por envolver violação direta de cláusula pétrea, dever-se-ia ouvir o povo, para se aferir se este está interessado em mudar o Estado Democrático de Direito atual com o poder constituinte originário, criando-se uma nona assembléia para à redação de uma novel constituição, pois caso contrário, não se pode impor uma crença antidemocrática.

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[1] MILLÔR, “20 (vinte) refleqções auto-referentes”, In: Veja, 03 out. 2007, p. 27.

[2] SCHUMPETER, E. Capitalismo, socialismo e democracia. trad. bras., Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 289.

[3] Disponível em: <http://www.leonardi.adv.br/jur21022005.html>. “Justiça Federal do Paraná rejeita o sistema de quotas na UFPR”. Acesso em: 20 set. 2007.

[4] Mandado de segurança contra cotas no vestibular . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 667, maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=618>. Acesso em: 04 out. 2007.