NOÇÕES GERAIS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

NOÇÕES GERAIS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Princípio da autonomia patrimonial.

As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que, obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta. De igual modo, o patrimônio da pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.

Ex.1: se uma sociedade empresária possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria pessoa jurídica.

Ex.2: se uma sociedade empresária possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria sociedade, não podendo para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal dos sócios.

Vigora, portanto, o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

Desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico prevê algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada. Tais hipóteses são chamadas de “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade jurídica).

Quando se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

Por que foi idealizada essa teoria da desconsideração da personalidade jurídica?

A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas sempre foi um instrumento muito importante para o desenvolvimento da economia e da atividade empresarial. Isso porque serviu para estimular os indivíduos a praticarem atividades econômicas, uma vez que, constituindo pessoas jurídicas, as pessoas físicas sabiam que apenas o patrimônio da sociedade empresária responderia pelas dívidas em caso de insucesso. Com isso, as pessoas físicas ficavam mais seguras, já que, mesmo que o empreendimento não prosperasse, elas não perderiam também o seu patrimônio pessoal não investido na sociedade.

Ocorre que alguns indivíduos começaram a abusar da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, utilizando-a como um meio de praticar fraudes. A pessoa jurídica, após adquirir diversas dívidas, transferia todo lucro e patrimônio para o nome dos sócios e, com isso, não tinha como pagar os compromissos assumidos, não sobrando bens da sociedade que pudessem ser executados pelos credores. Percebendo esse abuso, a jurisprudência passou a permitir a desconsideração da personalidade jurídica nessas hipóteses. Posteriormente, foram editadas leis prevendo expressamente a possibilidade da desconsideração.

Histórico da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil

• CC-1916: não previa a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica.

• Na década de 60, Rubens Requião foi um dos primeiros doutrinadores brasileiros a defender a aplicação da teoria no Brasil, mesmo sem previsão legal.

• Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor): foi a primeira lei a prever a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no Brasil (art. 28).

• Lei nº 8.884/94 (antiga Lei Antitruste): também previu a desconsideração.

• Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais): também disciplinou a desconsideração.

• Código Civil de 2002: trouxe previsão expressa no art. 50.

• Lei nº 12.529/2011: desconsideração em caso de infrações da ordem econômica (art. 34).

• Lei nº 13.105/2015 (“novo” CPC): previu um procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica.

• Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), fruto da conversão da MP 881/2019: produziu profundas mudanças no regime da desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código Civil.

Penso relevante - uma vez mais - relembrar que a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional. Na verdade, sob pena de malferimento da lei que disciplina a matéria e manifesto desestímulo ao empreendedorismo, elemento fundamental ao progresso social e econômico, sua decretação, no caso concreto, depende do exame objetivo e do prudente escrutínio do magistrado.

A essência da criação das diversas teorias sobre a pessoa jurídica está na facilitação e, muitas vezes, até mesmo na viabilização de atividades produtivas que seriam impossíveis ao homem de maneira isolada.

Dessarte, cabe ressaltar que, consoante o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de sócios e administradores, só podendo ser afastada provisoriamente para um determinado caso concreto, para estender a responsabilidade negocial aos bens particulares daqueles. (SILVA, Regina Beatriz Tavarez da (Coord.). Código civil comentado. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 124).

No ponto, é conveniente sublinhar que desconsiderar a personalidade jurídica consiste em ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral, tornando-a ineficaz para determinados atos, sempre que utilizada para fins fraudulentos ou diferentes daqueles para os quais fora constituída, tendo em vista o caráter não absoluto da personalidade jurídica, sujeita sempre às teorias da fraude contra credores e do abuso do direito.

Nesse contexto, a desconsideração da personalidade jurídica mostra-se útil no momento em que aquela entidade se distancia de sua finalidade original, quando a pessoa jurídica assume funções que se chocam com os valores reitores da ordem jurídica e quando os fins para os quais é utilizada se mostram inescrupulosos.

Com efeito, a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, de caráter residual, empregada para o fim de corrigir subversões detectadas com base na autonomia da personalidade da pessoa jurídica. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2006, p. 77).

O instituto da desconsideração, antes teoria, construção doutrinária e jurisprudencial, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, art. 28, no ano de 1990, incorporou-se de vez ao nosso direito positivo. De igual modo, a previsão se encontra, hoje, encartada também no art. 50 do Código Civil de 2002, assim como em outros tantos diplomas, tais como, na Lei n. 12.529⁄2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, art. 34; na Lei n. 9.695⁄1998, Lei de Crimes Ambientais; e, mais recentemente, nos artigos 133 a 137 do NCPC, com o denominado incidente de desconsideração da personalidade jurídica, inclusive para a chamada “desconsideração inversa”. De toda maneira, há necessidade de preenchimento de certos requisitos objetivos e subjetivos para sua verificação.

Em termos processuais, a desconsideração da pessoa jurídica é ato privativo do juiz, que também não age de ofício, dependendo da iniciativa da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo. A decisão fixará quais relações ou obrigações serão estendidas aos sócios ou administradores, de modo que a pessoa jurídica não se extingue, pois é apenas afastado o véu protetor para que os bens particulares daqueles respondam pelos atos abusivos ou fraudulentos. (DUARTE, Nestor. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Lei n. 10.406, de 10.01.2012. Cezar Peluzo (Coord.). 7.ed. rev e atual. Barueri: Manole, 2013).

Com efeito, propugna a doutrina que só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido (Enunciado n. 7 da I Jornada de Direito Civil do CJF).

O art. 50 do Código Civil estabelece: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Como fica nítido na leitura do dispositivo legal, a desconsideração só é possível em casos restritos, em que fique caracterizado o abuso da personalidade jurídica, pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica, à luz da teoria maior acolhida em nosso ordenamento jurídico e encartada no art. 50 do Código Civil de 2002, reclama a ocorrência de abuso da personificação jurídica em virtude de excesso de mandato, a demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas). (AgRg no AREsp 159.889⁄SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15⁄10⁄2013, DJe 18⁄10⁄2013)

Por um lado, o Enunciado n. 146 da III Jornada de Direito Civil do CJF manifesta que nas relações civis interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 do CC (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial). Ademais, o Enunciado n. 9 da I Jornada de Direito Comercial do CJF defende que quando aplicado às relações jurídicas empresariais, o art. 50 do Código Civil não pode ser interpretado analogamente ao art. 28 do CDC ou ao art. 2º da CLT. Por outro lado, o Enunciado n. 282 da IV Jornada de Direito Civil do CJF propugna que o encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso de personalidade jurídica.

TEORIAS MAIOR E MENOR

Art. 50 do CC

A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada no art. 50 do CC. Podemos dizer que esse art. 50 traz a regra geral sobre a desconsideração jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, havendo algumas previsões específicas em diplomas próprios (como é o caso do CDC).

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (redação dada pela Lei nº 13.874/2019)

Espécies de abuso da personalidade jurídica

Somente poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas regidas pelo Código Civil se ficar caracterizado que houve abuso da personalidade jurídica.

O abuso da personalidade jurídica pode ocorrer em duas situações:

1) Desvio de finalidade; 2) Confusão patrimonial.

Além disso, para que se atinja o patrimônio do administrador ou do sócio deve ser provado que essa pessoa foi beneficiada com o abuso da personalidade jurídica.

Teorias maior e menor da desconsideração

Como vimos acima, a desconsideração da personalidade jurídica não é prevista apenas no Código Civil. Existem outros importantes diplomas que tratam sobre o tema, como é o caso do CDC e da Lei Ambiental. Ocorre que nem todas as leis trazem os mesmos requisitos para a desconsideração. A partir daí surgiram dois grupos de legislações separadas a partir dos requisitos impostos para a desconsideração. Confira:

Teoria MAIOR e Teoria MENOR

O Direito Civil brasileiro adotou, como regra geral, a chamada teoria maior da desconsideração. Isso porque o art. 50 exige que se prove o desvio de finalidade (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva).

No Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, adotou-se a teoria menor da desconsideração. Isso porque, para que haja a desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas envolvendo consumo ou responsabilidade civil ambiental não se exige desvio de finalidade nem confusão patrimonial.

Deve-se provar: 1) Abuso da personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial); 2) Que os administradores ou sócios da pessoa jurídica foram beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso (novo requisito trazido pela Lei nº 13.874/2019).

De acordo com a Teoria Menor, a incidência da desconsideração se justifica: a) pela comprovação da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, somada à má administração da empresa (art. 28, caput, do CDC); ou b) pelo mero fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, nos termos do § 5º do art. 28 do CDC. STJ. 3ª Turma. REsp 1735004/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/06/2018.

Prevê a possibilidade de se estender as obrigações da empresa a sócios e administradores (mesmo que não sejam sócios).

Somente prevê a possibilidade de se estender obrigações da empresa a sócios (não fala em “administradores”).

Adotada pelo art. 50 do CC.

Prevista no art. 4º da Lei nº 9.605/98 (Lei Ambiental) e no art. 28, § 5º do CDC.

Dica para você não confundir: teoria maior porque exige um maior número de requisitos.

Em termos:

“Como observado pelo eminente relator, consoante se extrai da fundamentação do acórdão recorrido, não há apuração, nem mesmo alegação, acerca de ato de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Dessarte, o entendimento perfilhado pela Corte local, acerca do fato de o ordenamento jurídico brasileiro garantir ao credor a tomada de providências na expectativa de receber seu crédito, data maxima venia, ignora a realidade das coisas, pois propugna que "[...] o sócio que não cuida de manter patrimônio da empresa em montante suficiente para a garantia das obrigações assumidas pratica abuso de direito em prejuízo de terceiros, seus credores, desviando a finalidade da empresa que é atuar no mercado e manter patrimônio suficiente para garantir o cumprimento das suas obrigações".

Como é cediço, por vezes, até mesmo por causas contingenciais, como, v.g., crise setorial (vide a ora verificada a envolver o setor sucroalcooleiro), projeções que não se confirmam, caso fortuito, força maior, estratégia de gestão legítima que se mostra equivocada, ingresso de novo concorrente no mercado, fato do príncipe, inadimplemento em relação negocial relevante, entre outras, o fato é que, muitas vezes, as sociedades empresárias veem-se em situação de crise econômico-financeira.

Outrossim, a prevalecer o entendimento perfilhado pelas instâncias ordinárias, a par de negar a teoria da personificação jurídica e a autonomia do patrimônio em relação aos de seus componentes, a toda evidência, ficaria, em caso de crise econômico-financeira de sociedades empresárias, deveras dificultado - justamente em momento crítico, crucial ao soerguimento da empresa - o recrutamento de talentos para sua gestão, ou mesmo a alienação das quotas sociais a pessoas naturais ou jurídicas solventes que desejam legitimamente investir no negócio, mas sem implicar risco a seus próprios bens particulares. Enfim, o entendimento adotado na origem, que não tem supedâneo legal, afastaria⁄desestimularia as legítimas tentativas de superação da situação de crise econômico-financeira, para a preservação e o soerguimento da empresa e, por conseguinte, a produção, o emprego dos trabalhadores e os interesses dos credores.Destarte, conforme precedente da Terceira Turma, a "existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à ausência de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica." (REsp 1419256⁄RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02⁄12⁄2014, DJe 19⁄2⁄2015)

Com efeito, não houve apuração de dolo na gestão para lesar os credores, e a simples situação de inadimplência da pessoa jurídica ou a solvência financeira de sócio, por si só, não enseja a desconsideração da personalidade jurídica, que só deve ser deferida em casos restritos e pontuais, em que, como dispõe o art. 50 do CC, devam os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações ser estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

4. Cumpre observar que esse entendimento acerca de que, para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, se exige o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros, está pacificado no âmbito do STJ, em vista do julgamento, pela Segunda Seção, dos EREsp 1.306.553⁄SC, relatora Ministra Maria Isabell Gallotti, assim ementado:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ARTIGO 50, DO CC. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES OU DISSOLUÇÃO IRREGULARES DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. DOLO. NECESSIDADE. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ACOLHIMENTO.

1. A criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.

2. O encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do Código Civil.

3. Embargos de divergência acolhidos.

(EREsp 1306553⁄SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10⁄12⁄2014, DJe 12⁄12⁄2014)

Nesse mencionado precedente, Sua Excelência dispôs:

Registrou o acórdão paradigma que "a decisão confirmada pela Corte Estadual igualmente não avançou no exame dos requisitos necessários à desconsideração da personalidade jurídica da devedora, apenas consignando que houve" dissolução irregular da executada. "A Quarta Turma conheceu, então, do recurso especial 1.098.712⁄RS e deu-lhe "provimento para afastar a desconsideração da personalidade jurídica de Knorr Construções LTDA."

Inquestionável, portanto, a divergência de entendimentos quanto à cessação irregular das atividades empresariais como causa suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica.

[...]

Assim, é certo que em"razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela ilicitude da conduta da sociedade empresária."(COELHO. Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Vol. 2. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 55).

[...]

O instituto da desconsideração, todavia, vem previsto em outros textos legislativos, tais como o Código de Defesa do Consumidor (artigo 28), a Lei e 12.529⁄2011 (artigo 34) e Lei 9.605⁄1998 (artigo 4º), além do que o próprio Código Tributário Nacional prevê situação em que responsabilidade pela obrigação tributária recaia, em tese, sobre os sócios (artigo 134, VII), nos termos do enunciado n. 435, da Súmula, e dos precedentes que lhe deram causa.

Cada um dos mencionados textos legislativos traz requisitos específicos para a persecução do crédito do qual é devedora a sociedade no patrimônio particular dos sócios, de modo que, independentemente dos rótulos de"teoria maior"ou"teoria menor", há diferenças quanto à extensão dos pressupostos necessários à sua aplicação, atendendo-se ao microssistema jurídico-legislativo concernente à hipótese. Nesse sentido, o enunciado n. 51, da I Jornada de Direito Civil, promovida o âmbito do Conselho da Justiça Federal, verbis :

[...]

Adotadas, portanto, tais premissas, esta Corte Superior já teve a oportunidade, mais de uma vez, de apreciar a questão, apontando a teoria maior como sendo aquela adotada pelo Código Civil, de modo que se exige a configuração do abuso de direito mediante o desvio de finalidade social ou confusão patrimonial entre sócios e sociedade. Veja-se:

[...]

Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo Código Civil, a aplicação do instituto em comento.

[...]

Assim, a ausência de intuito fraudulento ou confusão patrimonial afasta o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, ao menos quando se tem o Código Civil como o microssistema legislativo norteador do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como causa bastante para a aplicação do disregard doctrine.

[...]

Em síntese, a criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para lesar credores. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido mero instrumento para fins fraudulentos por aqueles que a idealizaram, valendo-se dela para encobrir os ilícitos que propugnaram seus sócios ou administradores. Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da atividade econômica.

No mesmo diapasão, entre tantos outros, mencionam-se os seguintes precedentes recentes:

CIVIL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE. ART. ANALISADO: 50, CC⁄02.

[...]

5. A dissolução irregular da sociedade não pode ser fundamento isolado para o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, mas, aliada a fatos concretos que permitam deduzir ter sido o esvaziamento do patrimônio societário ardilosamente provocado de modo a impedir a satisfação dos credores em benefício de terceiros, é circunstância que autoriza induzir existente o abuso de direito, consubstanciado, a depender da situação fática delineada, no desvio de finalidade e⁄ou na confusão patrimonial.

6. No particular, tendo a instância ordinária concluído pela inexistência de indícios do abuso da personalidade jurídica pelos sócios, incabível a adoção da medida extrema prevista no art. 50 do CC⁄02.

7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.

(REsp 1395288⁄SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11⁄02⁄2014, DJe 02⁄06⁄2014)

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PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. JUROS MORATÓRIOS. CABIMENTO DA EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DE EXECUÇÃO DE VERBA HONORÁRIA DE SUCUMBÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS EM EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. NÃO OCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CITAÇÃO.

[...]

9. Nos termos do art. 50 do CC, o decreto de desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade somente pode atingir o patrimônio dos sócios e administradores que dela se utilizaram indevidamente, por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

10. É de curial importância reiterar que, principalmente nas sociedades anônimas, impera a regra de que apenas os administradores da companhia e seu acionista controlador podem ser responsabilizados pelos atos de gestão e pela utilização abusiva do poder; sendo certo, ainda, que a responsabilização deste último exige prova robusta de que esse acionista use efetivamente o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar os órgãos da companhia.

[...]

12. Outrossim, verifica-se que não foi nem mesmo demonstrada a prática de atos fraudulentos por parte do recorrente, haja vista não ter o Tribunal a quo especificado quais as provas que embasaram a sua convicção nesse sentido, limitando-se a crer, de forma subjetiva, que o ex-sócio controlava a referida sociedade de forma indireta.

13. Recurso especial de Solano Lima Pinheiro e outro não provido.

Recurso especial de Naji Robert Nahas provido.

(REsp 1412997⁄SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08⁄09⁄2015, DJe 26⁄10⁄2015)

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RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC⁄2002. ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. REQUISITOS. INDÍCIOS DE ENCERRAMENTO IRREGULAR DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA.

1. O recurso especial tem origem em agravo de instrumento que manteve decisão que deferiu pedido de desconsideração de personalidade jurídica com base no artigo 50 do Código Civil.

2. Cinge-se a controvérsia a definir se estão presentes os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica no caso dos autos.

3 . A desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional e está subordinada à comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

4. A existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à ausência de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes.

5. Recurso especial provido.

(REsp 1419256⁄RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02⁄12⁄2014, DJe 19⁄02⁄2015)

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AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ENCERRAMENTO DE ATIVIDADES SEM BAIXA NA JUNTA COMERCIAL. REQUISITOS. AUSÊNCIA. VALORAÇÃO DA PROVA. EQUÍVOCO. NÃO OCORRÊNCIA. NÃO PROVIMENTO.1. A mera circunstância de a empresa devedora ter encerrado suas atividades sem baixa na Junta Comercial, se não evidenciado dano decorrente de violação ao contrato social da empresa, fraude, ilegalidade, confusão patrimonial ou desvio de finalidade da sociedade empresarial, não autoriza a desconsideração de sua personalidade para atingir bens pessoais de herdeiro de sócio falecido. Inaplicabilidade da Súmula 435⁄STJ, que trata de redirecionamento de execução fiscal ao sócio-gerente de empresa irregularmente dissolvida, à luz de preceitos do Código Tributário Nacional.

2. A errônea valoração da prova configura-se nos casos de violação a princípio ou lei federal no campo probatório, não se aplicando ao caso presente em que a alteração da conclusão no acórdão recorrido demandaria reexame do conjunto fático-probatório dos autos, procedimento vedado pela Súmula 7⁄STJ.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.5. É claro que não se descarta a possibilidade de vir a ser, efetivamente, demonstrado abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou confusão patrimonial, a ensejar a medida de caráter excepcional, todavia - repise-se - a decisão tomada pelas instâncias ordinárias adota fundamento temerário, que não tem embasamento legal, perfilhando o entendimento de que o fato de a empresa não ter patrimônio suficiente à garantia das obrigações, por si só, é suficiente para ensejar a medida. Vale dizer, poderá o juízo a quo, à vista de novos elementos, apreciar a matéria novamente, e, se for o caso, decidir sobre a desconsideração, baseado na jurisprudência e nos precedentes desta Corte Superior.

6. Diante do exposto, com o acréscimo destes fundamentos, em especial a ressalva do item 5, adiro ao bem lançado voto do em. Relator, para negar provimento ao agravo in

AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PESSOAL DO SÓCIO NÃO GESTOR E NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO CULPOSA

Imagine a seguinte situação hipotética:

Sabrina, consumidora, ingressou com execução contra a empresa Alfa Empreendimentos Imobiliários. A empresa executada era composta por três sócios: Pedro, Tiago e Francisco. Vale ressaltar que Francisco possuía uma única quota social, de 1% do capital social. O restante pertencia aos outros dois sócios. Importante também registrar que Francisco não exercia poderes de gerência. Durante a execução, não se conseguiu localizar bens penhoráveis em nome da empresa. Em razão disso, o juiz autorizou a desconsideração da personalidade jurídica para buscar bens dos sócios. O valor foi penhorado nas contas de Francisco que recorreu contra a decisão alegando que nunca foi gestor da empresa e que, portanto, não deveria ser pessoalmente responsabilizado. O Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo sob o argumento de que a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC) permitiria a responsabilização pessoal de Francisco, mesmo ele não sendo administrador da empresa. Inconformado, Francisco interpôs recurso especial insistindo que não poderia ser pessoalmente responsável. O STJ deu provimento ao recurso de Francisco? SIM.

Para fins de aplicação da denominada Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, não se exige prova da fraude ou do abuso de direito, tampouco é necessária a prova de confusão patrimonial, bastando que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados.

Considerando que o § 5º do art. 28 do CDC admite, a princípio, a responsabilização pessoal do sócio pelo mero inadimplemento e ausência de bens suficientes à quitação do débito, é indispensável que se analise a atuação do sócio na condução dos negócios da empresa.

Se formos levar em consideração as origens históricas da disregard doctrine, rigorosamente, não se poderia afirmar que a hipótese contemplada no § 5º do art. 28 do CDC seria, de fato, desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque esse instituto está necessariamente associado à fraude e ao abuso de direito, com desvirtuamento da função social da pessoa jurídica, criada com personalidade distinta da de seus sócios. O que se observa no § 5º do art. 28 do CDC é que houve, por mera opção legislativa, a atribuição da responsabilidade aos sócios pelas dívidas da sociedade.

O § 5º do art. 28 do CDC representa uma hipótese autônoma e independente de desconsideração, que não precisa cumprir os requisitos do caput do mesmo art. 28. Trata-se assim de uma hipótese que tem o objetivo de garantir uma ampla proteção aos consumidores já que basta que a personalidade jurídica esteja servindo como um “obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

A despeito disso, mesmo em tal hipótese, a desconsideração somente pode atingir pessoas incumbidas da gestão da empresa.

Assim, a despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor, tampouco de confusão patrimonial, o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem jamais atuou como gestor da empresa.

Vale lembrar que a desconsideração, mesmo sob a vertente da denominada Teoria Menor, é uma exceção à regra da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, “instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos” (art. 49-A do Código Civil, incluído pela Lei nº 13.874/2019), a justificar, por isso, a interpretação mais restritiva do art. 28, § 5º, do CDC.

Em suma: A despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude para aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, não é possível a responsabilização pessoal de sócio que não desempenhe atos de gestão, ressalvada a prova de que contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de administração. STJ. 3ª Turma. REsp 1.900.843-DF, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 23/5/2023 (Info 777).

Guaxupé, 14/08/23.

Milton Biagioni Furquim

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 14/08/2023
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