Os planos de saúde são obrigados a fornecer tratamento para combate ao câncer. (2º texto)
Os planos de saúde são obrigados a fornecer tratamento para combate ao câncer. (2º texto)
!ª situação posta em lide: A autora propôs a ação para obter através da justiça autorização e custeio integral do medicamento Ribociclibe 200mg para tratamento de câncer metastático, negado pelo plano de saúde sob fundamento de ausência de previsão no Rol da ANS, que, de pronto foi deferida liminar determinando o fornecimento do medicamento. Considerando que cada caixa do medicamento custa em torno de R$ 20.000,00 reais, a paciente inúmeras vezes procurou o plano de saúde que é conveniada há muitos anos, sem, contudo, obter o tratamento necessário. Em análise, a Justiça reconheceu a abusividade da negativa expedida pelo Plano de Saúde e determinei o fornecimento do medicamento Ribociclibe 200mg à paciente no prazo máximo de 24hs, sob pena de multa diária de 5.000,00.
2ª situação posta em julgamento: Regina foi diagnosticada com câncer na região peritoneal, uma doença rara e agressiva. A paciente realizou cirurgia e quimioterapia, mas as lesões continuaram, de modo que o médico que a acompanhava indicou um tratamento de imunoterapia, com a prescrição de três sessões do uso do medicamento Yervoy, que tem como objetivo potencializar o sistema imunológico para combate ao câncer. Regina é usuária de um plano de saúde que, no entanto, recusou-se a custear o tratamento sob a alegação de que ele não é coberto pelo rol de procedimentos da ANVISA. Diante desse cenário, Regina ajuizou ação de obrigação de fazer contra o plano de saúde. O pedido foi julgado procedente, decisão mantida pelo Tribunal de Justiça. Inconformado, o plano de saúde interpôs recurso especial alegando que o rol de procedimentos da ANS é taxativo e que esse tratamento requerido não se encontra ali previsto.
O STJ não deu provimento aos recursos dos planos de saúde.
Mas vejamos de forma esmiuçada as questões postas pelos planos de saúde.
O que é esse rol da ANS?
ANS é a sigla para Agência Nacional de Saúde Suplementar, autarquia sob regime especial, responsável pela regulação dos planos de saúde. Uma das atribuições da ANS é a de elaborar uma lista de procedimentos que deverão ser obrigatoriamente custeados pelas operadoras de planos de saúde. Essa competência está prevista no art. 4º, III, da Lei nº 9.961/2000: Art. 4º Compete à ANS: (...) III - elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades. Assim, a ANS prepara uma lista (um rol) de tratamentos que deverão ser obrigatoriamente fornecidos pelos planos de saúde.
Esse rol de procedimentos e eventos da ANS é explicativo ou exaustivo?
Em junho de 2022, o STJ decidiu que o rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo (STJ. 2ª Seção EREsp 1886929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 08/06/2022). Ocorre que, depois de uma grande mobilização popular, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que buscou superar o entendimento firmado pelo STJ. A Lei nº 14.454/2022 alterou o art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98), incluindo o § 12, que prevê o caráter exemplificativo do rol da ANS: Art. 10 (...) § 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
Vale ressaltar, contudo, que, para o plano de saúde ser compelido a custear, é necessário que esteja comprovada a eficácia do tratamento ou procedimento, nos termos do § 13, também inserido: § 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais. Ainda não se sabe o que o STJ irá decidir depois dessa alteração legislativa.
Voltando aos casos concretos: por que o STJ negou provimento ao recurso do plano de saúde?
O plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado na busca da cura. Além disso, a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) é desimportante à análise do dever de cobertura de exames e medicamentos para o tratamento de câncer, em relação aos quais há apenas uma diretriz na resolução normativa.
A propósito, no mesmo sentido “é possível que o plano de saúde estabeleça as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado, sendo abusiva a negativa de cobertura do procedimento, tratamento, medicamento ou material considerado essencial para sua realização de acordo com o proposto pelo médico. No caso, trata-se de fornecimento de medicamento para tratamento de câncer, hipótese em que a jurisprudência é assente no sentido de que o fornecimento é obrigatório.” (STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.941.905/DF, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 22/11/2021).
Em suma: A natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS é desimportante à análise do dever de cobertura de medicamentos para o tratamento de câncer, em relação aos quais há apenas uma diretriz na resolução normativa. STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 2.057.814-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 29/5/2023 (Info 12 – Edição Extraordinária).
A judicialização de questões médicas não é novidade nos fóruns do país, isso porque de um lado os planos de saúde negam o tratamento requerido pelo beneficiário sob o argumento de que o medicamento prescrito não consta do rol da ANS, diante desta negativa e devidamente amparado por um relatório médico especificando a necessidade de tratamento com aquele medicamento específico o beneficiário ingressa com a ação judicial e obtém o amparo necessário para o tratamento designado.
Inúmeras são as ações movidas nesse mesmo sentido. O Superior Tribunal de Justiça ao autorizar o tratamento e obrigar o custeio pelo convênio do tratamento previsto para câncer, assim se manifestou no julgamento do Agravo interno no agravo em recurso especial nº. 1584526 SP 2019/0276255-7: “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. NEGATIVA DE COBERTURA SOB ALEGAÇÃO DE SE TRATAR DE MEDICAMENTO EXPERIMENTAL (OFF-LABEL). MEDICAMENTO REGISTRADO NA ANVISA (CAPECITABINA) E INDICADO PARA TRATAMENTO, DENTRE OUTRAS MOLÉSTIAS, DE CÂNCER DE RETO (DOENÇA QUE ACOMETE O PACIENTE). USO OFF-LABEL OU EXPERIMENTAL NÃO VERIFICADO NA ESPÉCIE. ABUSIVA A RECUSA DE CUSTEIO DE MEDICAMENTO REGISTRADO NA ANVISA E PRESCRITO PELO MÉDICO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. O Colegiado estadual julgou a lide de acordo com a convicção formada pelos elementos fáticos existentes nos autos, concluindo pela injusta negativa de cobertura ao procedimento médico solicitado. Portanto, qualquer alteração nesse quadro demandaria o reexame de todo o conjunto probatório, o que é vedado a esta Corte ante o óbice da Súmula n. 7 do STJ. 2. Ademais, nos termos da jurisprudência desta Corte, "o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado na busca da cura e que é abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento, ou procedimento imprescindível, prescrito para garantir a saúde ou a vida do beneficiário". (AgRg no REsp 1547168/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 26/4/2016, DJe de 3/5/2016) 3. Na espécie, em que pese a alegação da recorrente no sentido de que não está obrigada a custear tratamento experimental, sob o argumento de que o medicamento Xeloda® (Capecitabina) não é recomendado para tratamento da patologia que acomete o paciente, ora recorrido, é incontroverso que tal fármaco é indicado para tratamento de câncer de reto, não se tratando, pois, de uso off-label ou experimental. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no AREsp: 1584526 SP 2019/0276255-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 10/03/2020, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/03/2020) (consulte aqui o inteiro teor do acórdão)”
Observa-se que o julgador lida com dois princípios diametralmente opostos: a economia e a vida, e não resta dúvida que o bem maior a ser protegido é a vida e a saúde daquele que busca o Judiciário em ações que versam sobre cobertura de plano de saúde.
O convênio não pode e não deve, sob pena de ser reconhecida como abusiva, limitar através de cláusulas contratuais o tipo de tratamento a ser despendido ao beneficiário de forma a colocar em risco a vida do beneficiário. O voto do Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do recurso acima citado, assim destacou: “A indicação médica do tratamento (necessidade) e a cobertura contratual para a doença são incontroversos. Veja-se que os relatórios e pedidos médicos de fls. 22⁄26 demonstram claramente que houve expressa indicação médica para uso do medicamento diante do diagnóstico de diversos tipos de cânceres no autor. E a própria requerida reconhece nas razões de seu recurso a existência da prescrição médica, bem como a cobertura para a doença, esclarecendo que apenas o medicamento foi negado pois se trata de droga de uso experimental ("off- label"), com cláusula de exclusão no contrato.
Pois bem.
Antes de mais nada, vale observar que a recusa de fornecimento da droga afeta diretamente a recuperação do paciente e implica em descumprimento do próprio contrato firmado entre as partes, cujo objetivo primordial é voltado à preservação da saúde.
Importante destacar que a ANS a cada dois anos atualiza o rol dos procedimentos, exames e tratamentos que obrigatoriamente devem ser cobertos pelos planos de saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, e nesta lista foram incluídos os remédios para o tratamento de câncer mais comum entre a população: estômago, fígado, intestino, rim, testículo, mama, útero e ovário.
A Lei 12.880/2013 inclui entre as coberturas obrigatórias dos planos de assistência médica os tratamentos que tem por objetivo evitar ou inibir o crescimento e a disseminação de tumores por meio de medicamentos de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento.
É importante ter em mãos a receita médica com o determinado medicamento como o único viável para o tratamento da doença para a instrução da ação de obrigação de fazer, que terá por objeto o pedido de custeio de tratamento; a depender da análise do contexto em que se deu a negativa ainda é possível incluir pedido de indenização por danos morais.
Guaxupé, 26/10/2023.
Milton Biagioni Furquim
Juiz de Direito