STF define o regime aberto e substituição de pena para tráfico privilegiado
STF define o regime aberto e substituição de pena para tráfico privilegiado
O STF aprovou, dia 19 de outubro de 2023, uma súmula vinculante envolvendo aspectos da condenação do chamado tráfico privilegiado. A nova súmula vinculante aprovada pelo STF tem o seguinte teor: “É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c, e do art. 44, ambos do Código Penal”
A nova súmula vinculante determina que quando for reconhecido o tráfico privilegiado e não houver circunstâncias judiciais negativas, deve ser fixado o regime aberto de cumprimento da pena, desde que o réu não seja reincidente. Além disso, a súmula prevê também que a pena privativa de liberdade deve ser substituída por medidas restritivas de direitos, desde que o réu não seja reincidente específico.
Uma das razões para a aprovação da súmula diz respeito ao fato de que a gravidade em abstrato do crime não é justificativa legítima, especialmente diante de primariedade do paciente, reconhecida com a valoração positiva das circunstâncias judiciais”.
Para entender a questão, é importante fazer um breve histórico sobre a Lei n. 11.343/2006, a lei que trata do tráfico ilícito de entorpecentes. Essa lei trouxe um tratamento mais rígidos para esse delito, inclusive com vedação de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos: Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Além disso, por se tratar de delito equiparado a hediondo, houve previsão de maior rigidez para esse delito na Lei n. 8.072/1990, a Lei dos Crimes Hediondos. A previsão inicial, já alterada pela Lei n. 11.464/2007, era de regime integralmente fechado para os delitos hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, conforme previa o artigo 2º, § 1º: § 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.
Posteriormente, com a redação alterada pela Lei n. 11.464/2007, a lei deixou de prever o regime integralmente fechado, que não permitia, em tese, a progressão de regime. Passou a estipular, então, que o regime inicial seria necessariamente fechado, permitindo, entretanto, a progressão de regime: § 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.
Para compreender o questionamento que foi feito acerca desses dispositivos, é importante lembrar o conteúdo do princípio da individualização da pena, que traz importantes consequências para a interpretação do funcionamento do sistema criminal e de aplicação das normas penais.
O princípio da individualização da pena exige que se respeite a proporção entre a conduta praticada e a pessoa do autor, vedando, assim, a padronização de punições. Não pode haver uma pena padrão para todos aqueles que cometem homicídio, mas sim uma consideração das circunstâncias específicas de cada fato e a imposição de uma pena individualizada para cada agente.
A individualização da pena abrange a) a estipulação da pena mínima e da pena máxima, em abstrato, pelo legislador, fornecendo critérios e limites para a dosimetria da pena; b) a fixação da pena na sentença, a partir dos limites mínimo e máximo de pena, considerando a gravidade concreta do delito; c) o seu cumprimento, com análise do mérito para os benefícios cabíveis durante a execução das penas. O legislador não pode evitar que o juiz proceda à individualização da pena, tornando-a padronizada.
Esse princípio está previsto expressamente no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição, como direito fundamental: XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.
A partir desse princípio constitucional, o STF analisou os dispositivos acima mencionados, que fixaram o regime inicial fechado e a vedação de substituição da pena privativa de liberdade para o tráfico ilícito de entorpecentes.
Primeiro, o Supremo Tribunal considerou inconstitucional a vedação da Lei n. 11.343/2006, na parte final do artigo 44, de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. A Corte deixou claro, na ocasião, que o legislador não pode retirar o espaço do juiz na individualização da pena, sendo que o Judiciário deve definir as espécies de penas adequadas ao caso, inclusive sobre a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por pena de multa ou pena restritiva de direitos: (…) O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. (…) Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente. (STF, HC 97.256, Rel. Min. Ayres Brito, Pleno, DJ 16/12/2010)
Posteriormente, em outro julgamento emblemático, o STF decidiu que a imposição de regime inicial fechado também era inconstitucional, por retirar do juiz a sua atribuição de analisar a culpabilidade em concreto e decidir o regime inicial adequado: “Habeas corpus. Penal. Tráfico de entorpecentes. Crime praticado durante a vigência da Lei nº 11.464/07. Pena inferior a 8 anos de reclusão. Obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90. Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). (…) Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que “[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado.” (STF, HC 111.840, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, DJ 17/12/2013)
O que o STF entendeu em ambos os casos acima transcritos é que o legislador não pode impedir que o juiz proceda à individualização da pena no caso concreto, atendendo às particularidades de cada fato e de cada processo em julgamento. Também não se pode retirar do Judiciário a possibilidade de analisar o comportamento do executado durante o cumprimento da pena, tornando-a individualizada, com deferimento de benefícios conforme o mérito do condenado.
Apesar disso, vários recursos sobem diuturnamente aos Tribunais Superiores em razão de fixação de regime fechado e não substituição de pena ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Dentre esses recursos, chamou a atenção do STF a situação do chamado tráfico privilegiado, que é a modalidade de tráfico ilícito de entorpecentes com incidência da causa de diminuição de pena do artigo 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006. Tecnicamente, não se trata de privilégio, mas sim de um tráfico minorado, ou seja, com incidência de uma causa de diminuição na terceira fase da dosimetria.
Vale mencionar que essa modalidade de tráfico nem sequer é considerada equiparada a hediondo, como já decidiu o Pleno do Supremo Tribunal Federal: “1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos.” (HC 118533, Rel. Min. Carmen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016)
O STF, então, aprovou a súmula vinculante para determinar que, em caso de condenação por tráfico privilegiado e presentes os demais requisitos, deve ser a pena privativa de liberdade substituída e o regime inicial deve ser o aberto.
O Supremo Tribunal Federal publicou, então, a Súmula Vinculante 59, que torna impositiva a fixação do regime aberto quando aplicado o tráfico privilegiado e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria. Em outros termos, juízes e tribunais deverão, obrigatoriamente, fixar o regime aberto quando o réu fizer jus ao redutor previsto no artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas e a pena-base for fixada no mínimo legal. Além disso, a súmula também torna impositiva a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nesses casos.
A súmula vinculante é instrumento jurídico instituído pela Reforma do Judiciário (EC 45/2004) para conferir segurança jurídica e uniformização de decisões judiciais. Somente o STF edita súmula vinculante, cujo entendimento deve ser adotado pelos demais órgãos do Poder Judiciário e pela administração pública.
Vale lembrar quais são os demais requisitos. Para substituição da pena privativa de liberdade, o artigo 44 do CP exige, para o crime doloso, como o tráfico de drogas: Tenha sido aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa; o réu não for reincidente em crime doloso ou, se for reincidente, que não seja pelo mesmo delito e que a medida seja socialmente recomendável; a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Por outro lado, para a fixação do regime inicial de pena, o Código Penal traz parâmetros baseados no quantum de pena fixada, conforme artigo 33, § 2º, além de determinar que se considerem as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, como determina o artigo 33, § 3º, e o próprio artigo 59, em seu inciso III.
Deste modo, em sendo o réu primário e tendo sido aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 anos, o juiz deve substituir a pena imposta em decorrência da condenação por tráfico privilegiado se as circunstâncias forem favoráveis. Se o réu não for primário, é necessário, ainda, que não seja reincidente pela prática do mesmo delito e que a medida seja socialmente recomendável. Presentes esses requisitos, é impositiva a substituição da pena privativa de liberdade para o tráfico privilegiado.
Por fim, para fixação do regime aberto para início de cumprimento da pena é necessário que, em se tratando de réu primário, a pena estipulada seja igual ou inferior a 4 anos, bem como que as circunstâncias judiciais sejam favoráveis. Se estiverem presentes estes requisitos, é impositiva a fixação do regime inicial aberto para o cumprimento da pena do tráfico privilegiado.
Se não observada a súmula vinculante, cabe reclamação ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 7º da Lei n. 11.417/2006.
O Supremo Tribunal Federal publicou no Diário Oficial da União desta sexta-feira (27) uma súmula vinculante que unifica o entendimento jurídico para adoção do regime aberto e substituição da prisão por penas alternativas, como padrão para julgamentos de tráfico privilegiado.
A súmula vinculante é uma ferramenta criada por emenda constitucional, na reforma do Poder Judiciário, em 2004, e possibilita uniformização das decisões em todos os órgãos do Judiciário.
Com a publicação, juízes são obrigados a adotar esse procedimento no julgamento de tráfico de entorpecentes privilegiado para réus primários, sem envolvimento com organização criminosa e em que não haja circunstâncias agravantes, ou seja, situações que implicam no aumento da sanção.
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