Direito como moral política e o STF
Resumo: O questionável protagonismo judicial no país e as decisões do STF construídas por imensuráveis princípios começa a propor questionamentos e diversas críticas. E, as teorias de Dworkin ganham relevo nos argumentos e fundamentações das atividades jurisdicionais. A relação entre Direito e a moral é antigo busilis e persistente na Teoria do Direito que questiona se a moral faz ou não parte do Direito. E, Dworkin passu a defender não simplesmente que a moral é parte do Direito, mas que o Direito é parte da moral. Mais tarde, em Justice in robes, Dworkin (2006) reformula sua tese, com a sugestão aparentemente extravagante de que não é que a moralidade componha uma parte do Direito ou com ele se relacione, mas que “o Direito é parte da moralidade”.
Palavras-chave: Moral. Direito. Teoria do Direito. Hermenêutica Jurídica. STF. Jurisprudência.
A obra intitulada "A Raposa e o Porco- Espinho"[1], Ronald Dworkin[2] (no original: Justice for Hedgehogs) trazendo a teoria integrada e unissistemática que situa o Direito dentro da moral política, e tenta romper com velho, mas resistente paradigma, o qual parte da falha premissa de que o Direito e a moral são sistemas normativos diferentes.
Essa nova concepção, que se reveste da característica da transdisciplinaridade, explicaria algumas decisões jurisdicionais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Foi no auge de sua maturidade que o renomado jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin propôs, em sua obra intitulada “A Raposa e Porco-Espinho: justiça e valor”, uma concepção integrada, unissistemática do direito e da moral.
Onde tratou o direito como subdivisão da moral política, a qual, por sua vez, deflui da moral pessoal, e esta, por fim, da ética. Negando, assim, a existência de conflito entre a justiça e o direito.
Porém, os filósofos da política insistem num outro conflito entre valores políticos: o conflito entre a justiça e o direito. Nada garante que nossas leis serão justas; se forem injustas, os representantes do Estado e os cidadãos poderão ter de comprometer as exigências da justiça para obedecer ao Estado de Direito.
Referiu-se a esse conflito, o doutrinador: “descrevo uma concepção de direito que não o entende como um sistema rival de regras que podem conflitar com a moral, mas sendo ele mesmo um ramo da moral” (Dworkin, 2014a, p. 9).
Sustentou haver falha na imagem do direito e da moral como sendo dois sistemas normativos divorciados, asseverando que não existe ponto de vista neutro, a partir do qual se pode avaliar essa relação. Portanto, ao examinar uma questão jurídica, ou mesmo uma questão moral geramos em todos os casos, argumentos circulares.
Ao perguntar qual a ligação entre o direito e a moral[3], cabe saber, por exemplo, o papel ou função que a segunda exerce na determinação do conteúdo do primeiro. Noutros termos, não podemos responder qual o vínculo existente entre direito e moral sem antes definirmos o que é o direito – se ele depende somente de questões factuais históricas, daquilo que a comunidade aceita como direito em matéria de costume e prática (positivismo) ou, contrariamente, se além das regras postas em vigor de acordo com tais práticas (regras com pedigree) ele também abrange seus princípios justificadores e outras regras deles decorrentes, embora não promulgadas (interpretativismo). Sendo a interpretação o elemento central da teoria de Dworkin, o interpretativismo pode ser descrito como a teoria da prática interpretativa como meio de descobrir quais fatos políticos são importantes para a definição do direito.
A indagação somente pode ser respondida quando a resposta é pressuposta desde o princípio, impondo uma dificuldade lógica.
A controvérsia também não pode ser resolvida como um problema conceitual, como proposto pela teoria analítica do direito. Defender que o direito e a moral são conceitos distintos ou, até inversamente, sustentar que a moral exerce papel no raciocínio jurídico, seria, em qualquer caso, partir dos pressupostos falaciosos da imagem dos dois sistemas, cujo problema da circularidade somente poderia ser solucionado caso o conceito de direito fosse criterial.
Porém, o desacordo entre juízes, advogados e demais membros das comunidades políticas sobre como determinar a veracidade das proposições de direito estampa que o conceito doutrinário de direito não é criterial, mas sim interpretativo[4].
Disso resulta que sua análise só pode se identificar com uma teoria controversa de moral política, mediante investigação das práticas políticas, comerciais e sociais em que o conceito figura. E, estas revelam, por sua vez, que entre vários outros direitos políticos, as pessoas possuem alguns dotados de característica especial: os direitos jurídicos que são aqueles que podem ser exigidos por seus titulares, sem nenhuma intervenção legislativa, em instituições judiciais que comandam o poder executivo de polícia.
Sintetizando em poucas palavras: o direito à uma decisão judicial. Para se construir uma concepção do direito é preciso, então, encontrar uma justificativa para essa prática dentro da rede integrada de valores políticos de maior peso tais como igualdade, liberdade e democracia.
Desta forma, a teoria do direito disciplina os direitos jurídicos, mas consiste em uma teoria política, porquanto visa a responder a uma questão de natureza moral política. Qual seja: sob quais condições as pessoas adquirem os direitos jurídicos?
O positivismo jurídico afirma que somente os fatos legislativos históricos e as convenções sociais determinam os direitos jurídicos; já o interpretacionismo, por sua vez, incluiria também os princípios da moral política.
A ética pública (também conhecida como moralidade política) é a prática de fazer julgamentos morais sobre a ação política e os agentes políticos. Abrange duas áreas. A primeira é a ética do processo (ou a ética do cargo), que trata dos funcionários públicos e dos métodos que eles usam.
Deste modo, os conceitos de ética e política foram analisados de acordo com as concepções filosóficas de Aristóteles e de Nicolau Maquiavel. A ética política pode ser definida como a parte da filosofia que aborda os fundamentos da moral; é o estudo dos valores que regem a conduta humana subjetiva e social.
Estamos diante de duas teorias políticas normativas rivais e, não com duas teses antagônicas sobre conceito (criterial) de direito. E, é exatamente essa nova visão, conforme Dworkin, que nos permitirá corrigir erro histórico da filosofia[5] e teoria do direito, que não é o vocabulário, a essência ou o conceito de direito que devem determinar essa complexa prática social.
Ao revés, é a discussão política[6] que nos conduz aos direitos e deveres das comunidades. E, in litteris, Dworkin informou: “Quando vemos essas duas posições como teorias políticas normativas rivais e não como teses rivais acerca do entendimento de conceitos criteriais, conseguimos corrigir um erro histórico”.
Com demasiada frequência, a jusfilosofia e a teoria do direito partem de alguma declaração acerca da essência ou do próprio conceito de direito e, chegam em teorias acerca dos direitos e deveres do povo e das autoridades. “Devemos caminhar na direção oposta: é o vocabulário que deve seguir a discussão política, e não o contrário (Dworkin, 2014a, p. 623)”.
A substância do antigo confronto entre o positivismo e o interpretacionismo continuaria existindo, mas assumiria […] uma forma política, não conceitual.
A veracidade de sua proposição, Dworkin argumentou, por exemplo, que um positivista deveria justificar, com razões políticas, por que a justiça nunca deve ser considerada na interpretação do direito constitucional ou substantivo de uma comunidade[7].
E, ainda ilustrou, também, como a teoria se aplicaria nos casos em que os juízes se deparam com leis más e injustas, possibilitando a análise e descrição mais adequadas e precisas sobre as diferentes espécies de dilemas que eles realmente enfrentam nessas situações.
E, mostrou ainda, como a teoria melhor explica o caos em que os tribunais deixam de impor determinados direitos declarados na Constituição, negando-lhes exigibilidade.
A imagem bissistemática por Dworkin atacada, que concebeu o direito e a moral como dois sistemas normativos distintos, é a premissa fundamental da clássica pergunta que tradicionalmente se colocam os filósofos do direito: como o direito e a moral se relacionam ou se interligam?
A questão, que nos remete à velha polêmica entre o jusnaturalismo e o positivismo, foi enfrentada pelo saudoso jurista argentino Carlos Santiago Nino (2010, p. 17), o qual advertiu que “a ideia de que há uma relação essencial entre o direito e a moral pode ter muitas variantes e nem todas elas são relevantes para a caracterização do conceito de direito”.
E, assim, a partir desse mesmo dogma, Dworkin iniciou sua obra “Conceito e Validade do Direito” já lançando as seguintes premissas categóricas, in verbis:
“Partindo do mesmo dogma, Robert Alexy inicia sua obra “Conceito e Validade do Direito”[8] já lançando as seguintes assertivas, categóricas: O principal problema na polêmica acerca do conceito de direito é a relação entre direito e moral. Apesar de uma discussão de mais de dois mil anos, duas posições fundamentais continuam se contrapondo: a positivista e a não positivista (2009, p. 3)”[9].
Noutro trecho do livro, ele resumiu tais conceitos, esclarecendo, in litteris: “A ética estuda como as pessoas devem administrar sua responsabilidade de viver bem, e a moral pessoal, o que cada qual, como indivíduo, deve aos outros indivíduos. A moral política, por sua vez, estuda o que todos nós, juntos, devemos uns aos outros enquanto indivíduos quando agimos em nome dessa pessoa coletiva artificial (2014a, p. 500)”.
Ainda diante da imagem unissistemática não negou a distinção entre o que o direito é, e o que ele deve ser, Dworkin, em outra passagem, reafirma o viés revolucionário dessa concepção, in verbis:
[…] A jusfilosofia e a teoria do direito se tornariam mais interessantes e mais importantes. Se a teoria do direito fosse tratada como um ramo da filosofia política, a ser desenvolvido não só nas faculdades de direito, mas também, nos departamentos de política e filosofia, ambas as disciplinas se aprofundariam (2014a, p. 626-627).
E, ainda ilustra, também, como a teoria se aplicaria nos casos em que os juízes se deparam com leis más, injustas, possibilitando a análise e descrição mais adequadas e precisas sobre as diferentes espécies de dilemas que eles realmente enfrentam nessas situações.
Finalmente, explicou como a teoria integrada, ao contrário da bissistemática, abarcando as discussões que alcançam não somente o conteúdo, a substância de direito, mas também, o processo, o procedimento de sua criação.[10]
Afinal, já nos livramos da antiga imagem que entende o direito e a moral como dois sistemas separados e busca então afirmar ou negar, em vão, possíveis interligações entre estes. Substituímo-la pela imagem de um sistema: doravante, tratamos o direito como parte da moral política.
A questão, que nos remete à velha polêmica entre o jusnaturalismo e o positivismo, é enfrentada pelo saudoso jurista argentino Carlos Santiago Nino (2010, p. 17), o qual advertiu que “a ideia de que há uma relação essencial entre o direito e a moral pode ter muitas variantes e nem todas elas são relevantes para a caracterização do conceito de direito”
De outra face, agora se opondo a essa visão clássica, Dworkin (2014a, p. 620) sustentou que “o direito é um ramo, uma subdivisão, da moral política”, afirmando que “a moral pessoal deflui da ética e a moral política, da moral pessoal”.
Nesse cenário é que emerge o escopo de revelar em caráter didático, como a teoria integrada e unissistemática do direito de Ronald Dworkin explicaria algumas decisões jurisdicionais proferidas pelo STF brasileiro.
Precisamos despontar de um referencial teórico transdisciplinar erguido sobre os campos de conhecimento tradicionalmente entendidos como autônomos: o direito, moral e a política.
Trata-se de postura que antagoniza com a concepção metodológica, em sede de teoria do Direito, na obra “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, cujo objetivo visava garantir um conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto.
Ou seja, libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe sejam estranhos, delimitando o conhecimento do Direito em face de disciplinas como a Psicologia, a Sociologia, a Ética e a Teoria Política.
Cabe especial deferência a John Rawls, em face de sua obra Uma Teoria da Justiça, quando Dworkin chegou a exteriorizar uma ousada afirmação, in litteris: “Na verdade, a maior parte das obras mais importantes de teoria jurídica é hoje produzida não por juristas, mas por filósofos e economistas políticos que atuam tanto nas faculdades de direito quanto em seus próprios departamentos acadêmicos”.
Modernamente, nenhum teórico deu maior contribuição à filosofia do direito do que o filósofo político John Rawls” (2010a, p. 50). Gustine e Dias nos forneceram preciosas lições ao reconhecer que até muito recentemente, isto é, meados do século XX, predominaram a unidisciplinaridade e a metodologia monográfica, que não pretendiam uma visão de totalidade. No pós-guerra, ocorre uma mudança de rumos.
Contemporaneamente, cogita-se que o direito enquanto ciência é composto moral e, enquanto moral é política.
A realidade, cada vez mais complexa, é problematizada e experimenta-se a institucionalização da pesquisa. O enfoque metodológico deixa de ser monológico e, no primeiro momento, assume uma vertente da multidisciplinaridade, ou seja, de cooperação teórica entre campos do conhecimento, antes distanciados. Passa-se, daí, não mais, somente, para a cooperação, mas para a coordenação de disciplinas conexas ou para a interdisciplinaridade.
Atualmente, a transdisciplinaridade ou a produção de uma teoria única a partir de campos de conhecimento antes compreendidos como autônomos é a tendência metodológica que emerge com maior força (Gustin; Dias, 2010, p. 8).
Enfatizando a veracidade de tais lições, veio Varla Faralli (2006) ao tratar dos temas e desafios da filosofia contemporânea do direito, dedicar um capítulo de seu livro para assinalar a abertura da filosofia do direito aos valores ético-políticos.
E, Michel Troper, por sua vez, cuidou do estado de disciplina anotando que os doutrinadores tentam ultrapassar a mera oposição jusnaturalismo[11] e positivismo jurídico. (2008).
É conveniente para a evolução dos estudos e da prática jurídica procurar enxergar de qual maneira a teoria que se anuncia revolucionária, elaborada no contexto da cultura jurídica anglo-saxônica, mas de pretensões nitidamente universais, pode ser manejada e interpretada concretamente,
Ronald Dworkin, Robert Alexy e outros doutrinadores estrangeiros sobre a experiência jurídica nacional não passou despercebido, nem mesmo sob os aspectos negativos, muitos dos quais derivados de uma transposição inadequada, para o Brasil, de pensamentos alienígenas incompatíveis com nossa realidade. Pretendendo oferecer um modelo alternativo,
E, Marcelo Neves se propôs a uma desmistificação “[...] da teoria, da dogmática e da prática jurídicas e constitucionais que, sob a rubrica do princípio, da ponderação, da otimização e de rótulos afins, passou a ser não apenas dominante, mas também sufocante no Brasil da última década” (2014, p. X).
No entanto, quase tudo do que já se debateu no País sob a rubrica do “Pós-positivismo”[12] o que remete-nos a ideias sustentadas por Dworkin ainda em etapas liminares ou intermediárias de sua longa carreira acadêmica.
Naturalmente, resta muito para se discutir sobre seu pensamento final, que passou a conceber o direito como um ramo da moral.
Afirmou o próprio doutrinador, em certa passagem de Justice for Hedgehogs: “[...] foi só muito tempo depois, quando comecei a pensar nas grandes questões deste livro, que vim a compreender plenamente a natureza desse quadro e o quanto ele é diferente do modelo ortodoxo” (Dworkin, 2014a, p. 616).
Afinal, ao defender o caráter universal da teoria do direito, Joseph Raz[13] se contrapôs a Dworkin, atribuindo-lhe a equivocada postura de admitir o localismo, concebendo uma teoria do direito restrita aos Estados Unidos e ao Reino Unido (Raz, 2013, p. 85) esse ponto também notado por Gianluigi Palombella (2005, p. 326).
Independentemente do mérito da questão, o certo é que tal objeção não tem pertinência aqui, pois ela nos remete a outra época, anterior ao marco teórico ora adotado, o qual ostenta ambição de alcance incontestavelmente global.
Enfim, a aplicação à experiência jurídica brasileira de uma teoria do direito desse quilate, a despeito de sua origem estrangeira, afigurasse-nos cabível e oportuna para contribuir com a evolução do pensamento jusfilosófico no país.
Doravante, a conjugar a teoria integrada e unissistemática do direito com precedentes jurisprudenciais da corte pátria suprema (originalmente fundamentados a partir da imagem ortodoxa dos dois sistemas – direito e moral), balizando-nos nas hipóteses elencadas por Dworkin nos subtítulos “Leis más”, “Imposição parcial” e “A moral do procedimento”, todos sob o título “Que diferença faz”, do capítulo dezenove do livro Justice for Hedgehogs.
O novo modelo proposto por Dworkin que trata o direito como ramo da moral, promove mudanças na teoria substantiva do direito, exigindo a distinção entre direitos jurídicos (direito a uma decisão judicial em determinado sentido e direitos políticos em sentido amplo.
O doutrinador enfrenta, então o chamado "enigma das leis más", dando como exemplo a antiga lei norte-americana que previa que os escravos que fugissem para Estados não escravocratas continuariam escravos e deveriam ser devolvidos aos seus donos.
Deparando-se com tais casos, os juízes enfrentavam um dilema moral, pois acreditavam que, embora má, a lei era válida, de modo que ou deveriam aplicar a lei injusta ou mentir sobre sua interpretação acerca da lei.
Essa maneira de enxergar o problema parece pressupor a teoria dos dois sistemas normativos diferentes: de um lado, o direito (o que a lei diz) e, de outro, a moral (se os juízes devem ou não aplicar a lei, reputada injusta).
Contudo, segundo Dworkin, a teoria unissistemática, que exige distinção entre direitos políticos e direitos jurídicos, explica – e melhor – tal fenômeno. Diria que os senhores tinham em princípio o direito político de exigir a devolução de seus escravos, mas uma emergência moral atuaria como trunfo contra tal direito (em outras palavras: a lei era válida, mas injusta demais para ser imposta).
Isto porque os princípios[14] estruturadores de justiça, que fazem do direito uma parte bem definida da moral política (como o da autoridade política, do precedente e da confiabilidade) e que davam força moral maior às pretensões dos donos de escravos do que elas normalmente teriam, sucumbiriam, no caso concreto, diante dos direitos humanos.
A teoria integrada, assim, evidencia o que a bissistemática obscurece: estampa que se depara, na espécie, com um autêntico caso de dilema moral – e não meramente de prudência (direito).
De fato, camuflando tal essência o tradicional pensamento, sem muita coerência, honestidade ou nitidez em sua argumentação, simplesmente negaria que os senhores de escravos tinham, mesmo em princípio, o direito ao que demandavam (alguns, de vertente de viés jusnaturalista), diriam que lei era injusta demais para ser realmente considerada válida.
Analisando, por sua vez, os decretos nazistas cuja imposição violava os próprios princípios estruturantes de justiça, não podiam, exatamente, por tal razão, ser considerado parte do direito.
A teoria integrada e unissistemática, portanto, teria a vantagem, de acordo com Dworkin, de colocar em destaque esse aspecto, nublado pelo pensamento ortodoxo: que os dilemas enfrentados pelos julgadores alemães, ao contrário do que se viu em relação ao caso da Lei dos Escravos Fugitivos[15], eram estritamente jurídicos, de prudência, e não morais.
Anotou o doutrinador e autor:
“A teoria integrada do direito nos permite fazer essa discriminação. A estéril imagem de dois sistemas, não. […] Seria enganoso, a meu ver, declarar simplesmente que a Lei dos Escravos Fugitivos não era válida ou que os decretos nazistas eram leis válidas. Seria enganoso em ambos os casos, pois essas descrições nublam os aspectos moralmente importantes de cada caso e as diferenças entre eles (Dworkin, 2014a, p. 630)”.
Esse raciocínio para aplicação no exame crítico da jurisprudência nacional, parece exsurgir profunda similaridade entre o pensamento tradicional dos dois sistemas criticado por Dworkin e a fundamentação adotada, por exemplo, na decisão monocrática proferida pelo eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello em liminar no Habeas Corpus n. 102.094.
No decisum, o magistrado se contrapôs à quantidade de pena abstratamente cominada pela lei ordinária ao crime de receptação qualificada, tipificado no art. 180, § 1º, do Código Penal, reputando-a inconstitucional por afronta aos princípios da proporcionalidade e da individualização in abstracto da pena, como resume sua ementa, abaixo transcrita:
RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL). COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO, PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO “IN ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE COMO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW” EM SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV). DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS (APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO. INTERPRETAÇÃO AB-ROGANTE. EXCEPCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER JUDICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO DA LEI. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.” (HC n. 102.094 MC/SC, rel. Min. Celso de Mello, j. em 1º.7.2010).
Eis que a invocação do princípio da proporcionalidade ou due process of law na dimensão substantiva (artigo 5, LIV, da CF/1988) para conter os excessos do Poder Público, e justificar excepcional interpretação ab-rogante, corretiva, ainda que desta resulte pequena modificação no texto da lei, impõe-nos fundadas razões para mergulho na profunda reflexão sobre a essência desse postulado e o que esse discurso de aparente roupagem supostamente apenas jurídica, naquela acepção tradicional do modelo bissistemático, combatido por Dworkin.
Sobre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na interpretação constitucional, cabe trazer à baila a contribuição valorosa de José Adércio Leite Sampaio: “Embora já estivesse presente na clássica ideia de justiça como proporção ou equilíbrio e, recentemente, com a adequação justa das penas aos ilícitos e, ainda mais diretamente, como pauta de legitimidade do direito administrativo sancionador alemão, a proporcionalidade hoje apresenta um conceito muito mais complexo e que serve para aferir se uma dada intervenção no âmbito dos direitos fundamentais é legítima ou indevida.
Em geral, diz-se proporcional a intervenção que não é excessiva tampouco insuficiente. Excessiva para restringir um direito; insuficiente para realizá-lo. […] Razoabilidade é a racionalidade possível do direito, dizia Siches. […] A razoabilidade é, em geral, identificada com a proporcionalidade ou com algumas de suas máximas, especialmente a adequação e a proporcionalidade estrita (2013, p. 450 e 456)”.
Explicaria a teoria unissistemática que os princípios estruturadores da justiça (da autoridade política, do precedente, da confiabilidade e, etc.) os quais os quais definem o direito dentro da moral política e que no caso concreto elevavam a força moral da pretensão do Estado-Acusação em condenar o réu às penas cominadas no art. 180, § 1º, do Código Penal, sucumbiram face a um trunfo moral.
No caso, os valores da liberdade e igualdade despontariam como fundamento para a clemência ao indivíduo, haja vista a iniquidade extrema da quantidade da reprimenda prevista na lei.
Haveria, pois, apenas um direito político – mas não direito jurídico – do Estado ou da vítima do delito em ver o agente punido nos limites estabelecidos naquele dispositivo legal (três a oito anos de reclusão e multa).
Ainda com as lentes da teoria integrada, poderíamos afirmar que esse mesmo dilema moral – e não exatamente jurídico –, quando enfrentado pelos pares do relator, resolveu-se em sentido oposto: os demais ministros formaram jurisprudência que optou por conferir primazia aos princípios da autoridade política e da confiabilidade, impondo a aplicação do preceito secundário do art. 180, § 1º, do Código Penal.
Já o Ministro Luís Roberto Barroso explicita que o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade tem seu fundamento na ideia de devido processo legal substantivo e na justiça (2009, p.375).
A aclamada aplicação do princípio da proporcionalidade (devido processo legal sob o aspecto material) não estaria de algum modo a camuflar o fato de que naquele caso concreto e decano do STF teria se deparado, a rigor, com um autêntico dilema moral, e não com uma questão meramente de prudência (jurídica), como coloca em evidência a visão integrada de Dworkin.
Nessa hipótese, diríamos que, mesmo compreendendo que a norma proibitiva veiculada no art. 180, § 1º, do Código Penal atendia a todos os critérios definidores do que é o direito válido (no caso, trata-se de lei ordinária regularmente editada pela autoridade competente, que tipifica condutas efetivamente lesivas a bem jurídico relevante para a sociedade e comina modalidades de sanções penais admitidas pela Constituição da República e em quantidades a princípio ordinárias – arts. 5º, XLVI e XLVII, 22, I, 59 e 61 da CF/1988), o juiz, reputando em seu íntimo que a lei era extremamente iníqua, socorreu-se, de modo velado e não confessado, de uma emergência moral externa ao direito para declará-la não imponível ao réu, paciente no habeas corpus.
Assim, o magistrado optou por lançar mão do conhecido expediente hermenêutico de socorro ao princípio coringa da razoabilidade, para dizer que a lei era inválida (inconstitucional) e assim confortar a consciência com o discurso de que a solução da questão não teria provindo diretamente da moral, mas sim que esteve circunscrita exclusivamente à esfera jurídica.
Constou da decisão de mérito no writ, a Corte já havia pronunciado, em caso semelhante, a [...] Inocorrência de violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena. Cuida-se de opção político-legislativa na apenação com maior severidade aos sujeitos ativos das condutas elencadas na norma penal incriminadora e, consequentemente, falece competência ao Poder Judiciário interferir nas escolhas feitas pelo Poder Legislativo na edição da referida norma. (RE n. 443.388/SP, rel. Min. Ellen Gracie, citado no HC n. 102.094 /SC, rel. min. Celso de Mello, j. em 20.3.2014, grifos nossos).
Um outro exemplo de dilema moral por iniquidade de coerção penal, agora ainda mais emblemático, provém do Superior Tribunal de Justiça. Cuida-se da arguição de inconstitucionalidade no Habeas Corpus n. 239.363, alusiva às penas cominadas no art. 273, § 1º-B, do Código Penal.
Mais uma vez, a válvula de escape dos magistrados foi o postulado constitucional da razoabilidade. A decisão foi assim ementada:
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273, § 1º-B, V, DO CP. CRIME DE TER EM DEPÓSITO, PARA VENDA, PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS DE PROCEDÊNCIA IGNORADA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
1. A intervenção estatal por meio do Direito Penal deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, incumbindo também ao legislador o dever de observar esse princípio como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.
2. É viável a fiscalização judicial da constitucionalidade dessa atividade legislativa, examinando, como diz o Ministro Gilmar Mendes, se o legislador considerou suficientemente os fatos e prognoses e se utilizou de sua margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais.
3. Em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos (CF, art. 5º, LIV), é imprescindível a atuação do Judiciário para corrigir o exagero e ajustar a pena cominada à conduta inscrita no art. 273, § 1º-B, do Código Penal.
4. O crime de ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada é de perigo abstrato e independe da prova da ocorrência de efetivo risco para quem quer que seja.
E a indispensabilidade do dano concreto à saúde do pretenso usuário do produto evidencia ainda mais a falta de harmonia entre o delito e a pena abstratamente cominada (de dez a quinze anos de reclusão) se comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas – notoriamente mais grave e cujo bem jurídico também é a saúde pública.
5. A ausência de relevância penal da conduta, a desproporção da pena em ponderação com o dano ou perigo de danos à saúde pública decorrente da ação e a inexistência de consequência calamitosa do agir convergem para que se conclua pela falta de razoabilidade da pena prevista na lei.
A restrição da liberdade individual não pode ser excessiva, mas compatível e proporcional à ofensa causada pelo comportamento humano criminoso.
6. Arguição acolhida para declarar inconstitucional o preceito secundário da norma. (AI no HC n. 239.363 - PR (2012/0076490-1), rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. em 26.2.2015, DJe de 10 abr. 2015).
Quanto à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, certo é que a Egrégia Corte se tem socorrido com bastante frequência dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade (albergados pelo postulado do devido processo legal substantivo) para afastar a eficácia de normas criminais em determinados casos concretos e às vezes até mesmo para rechaçar sua própria validade in abstracto, como ilustram os trechos de arestos abaixo reproduzidos:
HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL. TIPICIDADE PENAL. JUSTIÇA MATERIAL. JUÍZO DE ADEQUAÇÃO DE CONDUTAS FORMALMENTE CRIMINOSAS, PORÉM MATERIALMENTE INSIGNIFICANTES. SIGNIFICÂNCIA PENAL. CONCEITO CONSTITUCIONAL. DIRETRIZES DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. ORDEM DENEGADA.
1. […] A norma legal que descreve o delito e comina a respectiva pena atua por modo necessariamente binário, no sentido de que, se, por um lado, consubstancia o poder estatal de interferência na liberdade individual, também se traduz na garantia de que os eventuais arroubos legislativos de irrazoabilidade e desproporcionalidade se expõem a controle jurisdicional. Donde a política criminal-legislativa do Estado sempre comportar mediação judicial, inclusive quanto ao chamado “crime de bagatela” ou “postulado da insignificância penal”[16] da conduta desse ou daquele agente.
Com o que o tema da significância penal confirma que o “devido processo legal” a que se reporta a Constituição Federal no inciso LIII do art. 5º é de ser interpretado como um devido processo legal substantivo ou material. Não meramente formal. 3. […]. Ordem denegada. (HC n. 111.017/RS, 2ª T., rel. min. Ayres Britto, j. em 7.2.2012).
HABEAS CORPUS – CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES (LEI Nº 11.343/2006, ART. 33, § 4º) […] – CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM SANÇÕES RESTRITIVAS DE DIREITOS NOS CRIMES TIPIFICADOS NO ART. 33, “CAPUT” E § 1º, E NOS ARTS. 34 A 37, TODOS DA LEI DE DROGAS – RECONHECIMENTO DA INCONTITUCIONALIDADE DA REGRA LEGAL QUE VEDA, “IN ABSTRACTO” (ART. 33, § 4º, E ART. 44), ESSA CONVERSÃO (HC 97.256/RS) – JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONSOLIDADA QUANTO À MATÉRIA – POSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE, NOS CASOS DE TRÁFICO PRIVILEGIADO DE ENTORPECENTES, EM REGIME INICIAL MENOS GRAVOSO QUE O REGIME FECHADO (HC 111.840/ES) – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE HIPÓTESE DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO – PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. –
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 97.256/RS, Rel. Min. AYRES BRITTO, reconheceu a inconstitucionalidade de normas constantes da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), no ponto em que tais preceitos legais vedavam a conversão, pelo magistrado sentenciante, da pena privativa de liberdade em sanções restritivas de direitos.
O Poder Público, especialmente em sede penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.
Atendidos os requisitos de índole subjetiva e os de caráter objetivo previstos no art. 44 do Código Penal, torna-se viável a substituição, por pena restritiva de direitos, da pena privativa de liberdade imposta aos condenados pela prática dos delitos previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37, todos da Lei nº 11.343/2006.
Possibilidade de o condenado pelo crime de tráfico privilegiado de entorpecentes (Lei nº 11.343/2006, art. 33, § 4º) iniciar o cumprimento da pena em regime menos gravoso que o regime fechado. Precedente do Plenário (HC n. 111.840/ES, rel. Min. Dias Toffoli, “Informativo/STF n. 672”; HC n. 105.904/ES, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. em 22.5.2012).
Argumentariam alguns que todos os exemplos acima selecionados, por concernirem ao Direito Penal, não seriam os mais adequados, afinal, a doutrina hodierna tem rejeitado intensamente a concepção tradicional que atribui ao jus puniendi a natureza de direito subjetivo.
Nessa linha, Zaffaroni afirma que admitir a existência de um direito subjetivo do Estado a incriminar ou penalizar seria pressupor que todos os delitos estariam a lesar um único bem jurídico (direito estatal), colocando inadvertidamente em segundo plano, em contrariedade à Constituição, os direitos das próprias pessoas humanas (Zaffaroni; Pierangeli, 2011, p. 86).
Aliás, o próprio Dworkin chegara a advertir, há meio século, em um de seus escritos componentes da clássica coletânea levando os direitos a sério, que sua então tese dos direitos era válida apenas nos casos civis, pois “em um processo criminal, o acusado tem direito a uma decisão em seu favor, caso for inocente, mas o Estado não tem nenhum direito paralelo de condená-lo se ele for culpado.” (2010b, p. 157).
A alegação é superada quando constatamos que também a jurisprudência cível do Supremo Tribunal Federal revela exemplos de apelo aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade para “inibir e […] neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas” (ADI n. 2.667 MC/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. em 19.6.2002).
Com efeito, ao deferir o pedido de liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.158, ao final julgada procedente, o plenário do STF, por maioria de votos, assentou que a norma estadual questionada – que havia concedido adicional de férias a servidores públicos inativos – ofendera o critério da razoabilidade (projeção concretizadora da cláusula do substantive due process of law), aduzindo que o legislador, no caso, incidira em “desvio ético-jurídico”:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE CONCEDE GRATIFICAÇÃO DE FÉRIAS (1/3 DA REMUNERAÇÃO) A SERVIDORES INATIVOS - VANTAGEM PECUNIÁRIA IRRAZOAVEL E DESTITUÍDA DE CAUSA - LIMINAR DEFERIDA.
A norma legal, que concede a servidor inativo gratificação de férias correspondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o critério da razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da cláusula do “substantive due process of law”, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado. Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa (ADI n. 1158 MC/AM, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso Mello, j. em 19.12.1994).
Extrai-se dos votos vencedores a literal invocação do “princípio moral” (Ministro Maurício Corrêa) e dos princípios da moralidade, igualdade e razoabilidade (Ministro Sepúlveda Pertence) para suspender a vigência da lei, a qual, a priori compatível com a norma constitucional originária (art. 40, § 4º), foi considerada pelo próprio relator, Ministro Celso de Mello, como “destituída do necessário coeficiente de razoabilidade”.
Nessa situação, a teoria integrada lançaria luzes sobre o fato de que a lei estadual impugnada – e em última instância o próprio dispositivo positivado no art. 40, § 4º, da Constituição da República – geraria aos servidores públicos inativos o direito (tão somente) político – mas não jurídico – ao acréscimo pecuniário de um terço de férias
Segundo essa nova visão, uma emergência moral externa ao direito é que teria determinado a solução para a causa: os princípios delineadores do direito (autoridade política, precedente, confiabilidade etc.), que davam força moral maior às pretensões dos servidores aposentados do que elas normalmente teriam, curvaram-se, no caso concreto, diante de outro valor moral político (igualdade – questão de justiça distributiva), afastando a juridicidade da regra examinada (que estaria a veicular, portanto, um direito político, mas não propriamente jurídico, uma vez que inexigível por meio judicial).
A força do paradigma ortodoxo bissistemático no órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional também pode ser testemunhada, agora em toda sua intensidade e de maneira emblemática, no Recurso Extraordinário n. 405.386, cuja decisão foi assim ementada: CONSTITUCIONAL. PENSÃO ESPECIAL A VIÚVA DE PREFEITO. LEI MUNICIPAL DE EFEITOS CONCRETOS. VALIDADE. ISONOMIA E PRINCÍPIO DA MORALIDADE (CF, ART. 37). IMUNIDADE MATERIAL DE VEREADORES (CF, ART. 29, VIII). EXTENSÃO QUANTO À RESPONSABILIDADE CIVIL.
1. Não há empecilho constitucional à edição de leis sem caráter geral e abstrato, providas apenas de efeitos concretos e individualizados. Há matérias a cujo respeito a disciplina não pode ser conferida por ato administrativo, demandando a edição de lei, ainda que em sentido meramente formal. É o caso da concessão de pensões especiais.
2. O tratamento privilegiado a certas pessoas somente pode ser considerado ofensivo ao princípio da igualdade ou da moralidade quando não decorrer de uma causa razoavelmente justificada.
3. A moralidade, como princípio da Administração Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5.º, LXXIII), tem a sua fonte por excelência no sistema de direito, sobretudo no ordenamento jurídico-constitucional, sendo certo que os valores humanos que inspiram e subjazem a esse ordenamento constituem, em muitos casos, a concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade.
A quebra da moralidade administrativa se caracteriza pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do ato e a sua expressão real (=a sua substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação administrativa.
4. No caso, tanto a petição inicial, quanto os atos decisórios das instâncias ordinárias, se limitaram a considerar “imoral” a lei que concedeu pensão especial a viúva de prefeito falecido no exercício do cargo por ter ela conferido tratamento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não, em face das circunstâncias de fato e de direito, da concessão do privilégio.
5. [...]. (RE n. 405.386/RJ, 2ª T., rel. min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão min. Teori Zavascki, j. em 26.2.2013).
No referido processo acima citado tratou-se de pretensa nulidade de uma lei municipal concessória de pensão vitalícia a viúva de prefeito falecido no curso do mandato, os integrantes do STF, por maioria, concluíram pela validade do ato normativo, censurando a postura das instâncias judiciais ordinárias, que [...] se limitaram a considerar “imoral” a lei que concedeu pensão especial a viúva de prefeito falecido no exercício do cargo por ter ela conferido tratamento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não, em face das circunstâncias de fato e de direito, da concessão do privilégio.
Ao pedir vista dos autos após voto proferido pela relatora (que ao final restou isoladamente vencida), o Ministro Eros Grau justificou-se afirmando: “o aspecto da moralidade me preocupa muito. Temo um dia rompermos a garantia da certeza e segurança jurídica e substituirmos o direito pela moral”.
Mais de três anos depois, em 2009, ao enfim ofertar seu voto em sentido contrário, o magistrado pronunciou-se sobre o princípio da moralidade administrativa, consignando que [...] o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio direito, até porque a sua contemplação não pode conduzir à substituição da ética da legalidade por qualquer outra.
Vale dizer, não significa uma abertura do sistema jurídico para a introdução, nele, de preceitos morais. O que importa assinalar, ao considerarmos a função do direito positivo, o direito posto pelo Estado, é que este o põe de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, conferindo concomitantemente a ela a forma que a constitui.
Nessa medida, o sistema jurídico tem de recusar a invasão de si próprio por regras estranhas a sua eticidade própria, advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil, ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas. Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade.
E não pode ser outra, senão esta, de modo que a afirmação, pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do princípio da moralidade o situa, necessariamente, no âmbito desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassado, sob pena de dissolução do próprio sistema. Isto posto, compreenderemos facilmente esteja confinado, o questionamento da moralidade da Administração, nos lindes do desvio de poder ou de finalidade.
Outros três anos se passaram após novo pedido de vista, dessa feita do Ministro Cezar Peluso, até que em 2013 seu sucessor, Teori Zavascki, trouxe seu voto, realçando com ainda mais vigor a tese dos dois ordenamentos – direito e moral –, embora reconhecendo a decisiva influência da segunda na formação e interpretação do primeiro: […] a moralidade, tal como erigida na Constituição – como princípio da Administração Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5º, LXXIII) –, não é, simplesmente, um puro produto do jusnaturalismo, ou da ética, ou da moral, ou da religião.
É o sistema de direito, o ordenamento jurídico e, sobretudo, o ordenamento jurídico-constitucional a sua fonte por excelência, e é nela que se devem buscar a substância e o significado do referido princípio. É certo que os valores humanos, que inspiram o ordenamento jurídico e a ele subjazem, constituem, em muitos casos, inegavelmente, a concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade.
Sob esse aspecto, há, sem dúvida, vasos comunicantes entre o mundo da normatividade jurídica e o mundo normativo não jurídico (natural, ético, moral), razão pela qual esse último, tendo servido como fonte primária do surgimento daquele, constitui também um importante instrumento para a sua compreensão e interpretação.
É por isso mesmo que o enunciado do princípio da moralidade administrativa – que, repita-se, tem natureza essencialmente jurídica – está associado a gama de virtudes e valores de natureza moral e ética: honestidade, lealdade, boa-fé, bons costumes, equidade, justiça.
São valores e virtudes que dizem respeito à pessoa do agente administrativo, a evidenciar que os vícios do ato administrativo por ofensa à moralidade são derivados de causas subjetivas, relacionadas com a intimidade de quem os edita: as suas intenções, os seus interesses, a sua vontade.
Ato administrativo moralmente viciado é, portanto, um ato contaminado por uma forma especial de ilegalidade: a ilegalidade qualificada por elemento subjetivo da conduta do agente que o pratica.
[…] é por isso que o desvio de finalidade e o abuso de poder (vícios originados da estrutura subjetiva do agente) são considerados defeitos tipicamente relacionados com a violação à moralidade. Pode-se afirmar, em suma, que a lesão ao princípio da moralidade administrativa é, rigorosamente, uma lesão a valores e princípios incorporados ao ordenamento jurídico, constituindo, portanto, uma injuridicidade, uma ilegalidade lata sensu. Todavia, é uma ilegalidade qualificada pela gravidade do vício que contamina a causa e a finalidade do ato, derivado da ilícita conduta subjetiva do agente.
No entanto, independentemente do mérito da causa, o que impende aqui ressaltar é que a Corte, data venia, não explicou satisfatoriamente por que a “garantia da certeza e segurança jurídica” – interesses cuja realização se busca por meio da legalidade e que consistiram no foco de preocupação do Ministro Eros Grau – deveria apriorística e necessariamente gozar de primazia sobre todos e quaisquer outros valores morais políticos na prestação da jurisdição.
Pergunta-se: por qual razão não seria admissível nem mesmo em tese que o STF subordinasse a segurança, a previsibilidade e a confiabilidade (princípios definidores do direito dentro da moral política) a outros princípios de moral política para afastar a eficácia da lei municipal e assim hipoteticamente concluísse, nos termos da teoria integrada dworkiniana, pela inexistência de direito jurídico da viúva do falecido prefeito à pensão especial?
Em outras palavras: por que a lei municipal deveria automática e obrigatoriamente prevalecer e ser imposta mesmo que o órgão jurisdicional hipoteticamente a reputasse, pelas circunstâncias e atributos do caso concreto, como injusta e imoral?
Enfim, qualquer que fosse o entendimento final após o sopesamento, mesmo no sentido da imposição da lei, não seria mais adequado e legítimo reconhecer abertamente que o vetor da decisão judicial teria resultado de razões de natureza moral política, e não propriamente de um determinado conceito doutrinário de direito maculado por pressupor o tão criticado dogma dos dois sistemas diferentes (do direito e da moral)?
Nesse diapasão é que Dworkin asseverou: Para construir uma concepção do direito – uma exposição das justificativas necessárias para apoiar, desse modo, uma pretensão de direito passível de imposição a pedido de seu titular –, temos de encontrar uma justificativa para essas práticas [políticas, comerciais e sociais] numa rede integrada maior de valores políticos (2014a, p. 619).
Do exposto constata-se, em última análise, que o STF, perfilhando a corrente tradicional e dominante e atacada pelo modelo integrado de Dworkin, sustentou nesse precedente que o direito, que é por ele declarado com força definitiva e em última instância no Estado Brasileiro, pode em tese perfeitamente conflitar com o valor da justiça e, nessa hipótese, sobre ele sempre deve prevalecer, mesmo à míngua de qualquer justificativa moral e política, como uma decorrência simples, direta e automática da adesão a um determinado conceito de direito.
O Ministro Eros Grau temia romper a garantia da certeza e a segurança jurídica com a substituição do direito pela moral, parece-nos legítimo e fundado o receio inverso: de que a justiça seja gravemente sacrificada pela corte maior do país em nome de um conceito, erigido misteriosamente, que se expressa pelo vocábulo "direito".
Ilustrou Dworkin no âmbito do Direito norte-americano com uma decisão do Tribunal Recursal do Distrito de Columbia, que, ao apreciar caso envolvendo presos na Baía de Guantánamo, declarou que nem toda violação de um direito gera um remédio jurídico, mesmo quando o direito é constitucional (2014).
Outro exemplo extraído da doutrina estadunidense, consistiria no direito constitucional dos cidadãos à assistência médica financiada pelo Estado, direito que, todavia, não seria concretizável de total garantia pela via judicial (mesmo reconhecendo que todos os indivíduos possuem tal direito, um tribunal não poderia exigir do governo[17] a implantação deste ou daquele plano específico de saúde por inaptidão para lidar com delicadas questões de orçamente e medicina; a atuação das superiores cortes se limitaria a enfrentar determinadas situações, como, por exemplo, a discriminação no atendimento).
Observe-se que nesses casos buscam-se razões independentes para justificar a ausência de tutela judicial de determinados direitos, que somente são considerados como tais – ou seja, como “direitos” – precisamente por conta da adoção do pressuposto (equivocado) da existência dos dois sistemas distintos (direito e moral) e, mais que isso, de uma teoria positivista, a qual consagre que tudo o que está escrito na Constituição constitui direito, por corresponder a critério factual-histórico aceito pela comunidade.
Sob a ótica da teoria integrada, que diferencia direitos políticos de direitos jurídicos, Dworkin argumenta que nem todos os direitos expressos na Constituição são jurídicos (exigíveis pelos Cidadão junto aos tribunais).
Os referentes à política externa e aqueles que podem ser supridos de modo mais eficiente por outros ramos do governo – como o da assistência médica – são apenas direitos políticos, mas não jurídicos.
Aqui, os princípios estruturadores de justiça (que distinguem os direitos jurídicos dos demais direitos políticos) – tais como o da melhor distribuição do poder político num Estado coercitivo – emergem como argumentos contra a exigibilidade/imposição da norma, diferentemente da hipótese anterior da Lei dos Escravos Fugitivos (em que tais princípios atuam a favor de sua exigibilidade, mas sucumbem face ao trunfo de uma emergência moral).
Como exemplo o art. 37, X, da Constituição da República brasileira vigente, o qual assegura expressamente aos servidores públicos a revisão geral anual de sua remuneração. Pela consagrada doutrina do constitucionalista José Afonso da Silva (1998), a norma em apreço seria classificada como de eficácia limitada, pois dependeria, para produzir efeitos, de lei integrativa infraconstitucional.
Ocorre que a cláusula constitucional é solenemente inobservada pelo Poder Executivo, contumaz em se omitir na iniciativa de projetos de lei tendentes à reposição do poder aquisitivo dos vencimentos dos agentes públicos.
O tema teve repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário n. 565.089, que se encontra em fase de julgamento no STF, com votos divergentes entre os Ministros.
Vide a ementa abaixo:
VENCIMENTOS - REPOSIÇÃO DO PODER AQUISITIVO - ATO OMISSIVO - INDENIZAÇÃO - INCISO X DO ARTIGO 37 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - RECURSO EXTRAORDINÁRIO - REPERCUSSÃO DO TEMA. Ante a vala comum da inobservância da cláusula constitucional da reposição do poder aquisitivo dos vencimentos, surge com repercussão maior definir o direito dos servidores a indenização. RE 565089 RG / SP, rel. min. Marco Aurélio, j. 13.12.2007. “Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator), conhecendo do recurso extraordinário e provendo-o, pediu vista dos autos a Senhora Ministra Cármen Lúcia. [...]. Presidência do Senhor Ministro Ayres Britto (Vice-Presidente). Plenário, 09.06.2011. Decisão: Após o voto-vista da Ministra Cármen Lúcia, acompanhando o Relator, conhecendo e provendo o recurso, e o voto do Ministro Roberto Barroso, negando-o, pediu vista dos autos o Ministro Teori Zavascki. Presidência do Ministro Joaquim Barbosa. Plenário, 03.04.2014.
Decisão: Após o voto-vista do Ministro Teori Zavascki, negando provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos Ministros Rosa Weber e Gilmar Mendes, e o voto do Ministro Luiz Fux, que lhe dava provimento, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 02.10.2014.” Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listar+Jurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+565089%2ENUME%2E%2 9+OU+%28RE%2EPRCR%2E+ADJ2+565089%2EPRCR%2E%29&base=base Repercussao&url=http://tinyurl.com/b9f2rvc .
Realmente, o tribunal guardião da Constituição afirmou, por unanimidade, a existência de um direito material de fonte constitucional insuscetível de tutela pelo Poder Judiciário.
Nesse diapasão, o voto do relator assinalou explicitamente que “a só condição de destinatário da proteção constitucional não basta para conferir ao beneficiário dessa expressiva garantia o direito à revisão corretiva dos efeitos nocivos gerados pelo processo inflacionário”, pontuou que “a revisão geral originariamente prevista no inciso X do art. 37 da Carta de Outubro depende da edição de lei específica”, e declarou, por derradeiro, [...] a impossibilidade de obrigar o Chefe do Poder Executivo, mesmo que reconhecida mora legislativa de sua responsabilidade, a apresentar projeto de lei que trate da revisão geral anual da remuneração dos servidores, prevista no mencionado inciso X
A teoria unissistemática explicaria o fenômeno esclarecendo que os servidores públicos teriam o direito político – mas não jurídico – ao reajuste anual previsto no art. 37, X, da Magna Carta.
Na espécie sob exame, os próprios princípios estruturadores de justiça (distintivos dos direitos jurídicos face aos demais direitos políticos), mormente o princípio da melhor distribuição do poder político num Estado coercitivo, serviriam como justificativa para a inexigibilidade da norma constitucional.
A falha concepção bissistemática gerou, segundo Dworkin, uma relevante divisão entre processo (procedimentos de criação do direito) e a substância (conteúdo do direito criado), sendo que o intenso debate se concentrou apenas na substância (lei imoral é lei? princípio de justiça não positivado é direito?), em detrimento do processo, a respeito do qual prevaleceu a corrente positivista clássica de que o direito é criado e conformado exclusivamente pelas convenções locais[18].
In litteris, defendeu:
Quando, porém, rejeitamos o modelo dos dois sistemas e entendemos o direito como um elemento bem definido da moral política, temos de tratar os próprios princípios estruturadores especiais que separam o direito do restante da moral política como princípios políticos que devem ser interpretados do ponto de vista moral.
E aí o doutrinador cita a regra mítica na Inglaterra, outrora inquestionável, de que o Parlamento seria supremo e seu poder ilimitado.
Historicamente, com a superação do jusnaturalismo[19] de Coke e a introdução do utilitarismo de Jeremy Bentham, a norma passou a ser tida como verdade absoluta, como bem ilustra o doutrinário de H. Hart em trecho de sua célebre obra “O Conceito de Direito”, datada da década de 1960:
[...] onde quer que exista um poder legislativo não sujeito a limitações constitucionais e que seja competente para privar de juridicidade a todas as outras normas de direito que emanem de outras fontes, a norma de reconhecimento daquele sistema dita que a atuação desse poder constitui o critério supremo de validade. Esta é, de acordo com a teoria constitucional, a situação do Reino Unido (2009, p. 137).
Porém, Dworkin prosseguiu explicando que agora, em um contexto de consolidação e internacionalização dos direitos humanos, a regra foi novamente posta em xeque pelos juristas quando o governo inglês cogitou da ideia de um projeto de lei que suprimia dos tribunais a jurisdição sobre detentos suspeitos de terrorismo.
Para Dworkin (2014, a, p.634):"O status do Parlamento enquanto legislador – uma das questões jurídicas mais fundamentais – tornou-se de novo uma profunda questão de moral política. Na prática, o direito está integrado à moral: os advogados e juízes são os filósofos políticos operantes do Estado democrático".
Já nos Estados Unidos, instalou-se discussão acerca da natureza das cláusulas constitucionais: se as substantivas mais abstratas (direitos à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, ao devido processo legal, proibição a penas cruéis etc.) deveriam ser interpretadas como princípios morais (como se observou de decisão da Suprema Corte que, contrariando dados históricos, reconheceu o direito de habeas corpus a estrangeiros presos em Guantánamo), ao passo que as cláusulas mais concretas, diferentemente, dependeriam apenas de questões históricas (tal qual em julgamento sobre o direito constitucional dos cidadãos à posse de armas de fogo).
Mais uma vez, Dworkin advertiu:
“Esses debates da Corte fariam algum sentido se adotássemos o modelo bissistemático do direito e da moral política. […] Devemos […] nos esforçar ao máximo, dentro dos limites da interpretação, para que a lei fundamental do nosso país seja compatível com nosso senso de justiça – não porque o direito deva às vezes curvar -se perante a moral, mas porque é exatamente isso que o próprio direito exige, quando é bem compreendido (2014a, p. 635)”.
Quando temos em mente a proposição da tese unissistemática de que não apenas o conteúdo, mas também os métodos e procedimentos de criação do direito devem ser justos, de sorte que os próprios princípios estruturadores do direito (que o separam do restante da moral) sejam interpretados moralmente, torna-se fácil compreender o fundamento da admissão, pela jurisdição constitucional, dos processos informais de mudanças da Carta Política.
Lecionam os doutos que os processos de vicissitudes constitucionais podem ser impróprios (mudanças da Constituição) ou próprios (mudanças na Constituição), esses últimos classificados como formais ou informais. As mudanças informais, conhecidas como mutações, são práticas “que introduzem alterações significativas no ordenamento constitucional sem mexer em uma vírgula no texto escrito […]” (Sampaio, 2013, p. 286).
Elas “exteriorizam o caráter dinâmico das normas jurídicas, através de processos informais […] no sentido de não serem previstos dentre aquelas mudanças formalmente estabelecidas no texto constitucional.” (Lenza, 2007, p. 110).
Diz-se que com as mutações há um desenvolvimento das normas constitucionais a domínios não imaginados pelos constituintes originários, sustentando no tempo a confiança na Constituição como elo entre as gerações (Grewe; Fabri apud Sampaio, 2013, p. 286).
No Mandado de Segurança n. 26.603, a Suprema Corte brasileira preconizou que por meio de sua atividade interpretativa possui a prerrogativa, embora extraordinária, de (re)formular a Constituição.
Assentou que a interpretação judicial consiste em processo informal de mutação constitucional, asseverando que “A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la”.
Ao apreciar o Habeas Corpus n. 91.361, o STF afirmou com todas as letras que a interpretação judicial constitui instrumento idôneo para adequar e compatibilizar a Constituição da República com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos:
“HABEAS CORPUS” - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO LEGAL (LEILOEIRO OFICIAL) - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. - Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate- -se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário. Precedentes.
TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. - A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. - Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade?
Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição.
A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea[20]. [...] (HC n. 91.361/SP, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. em 23.9.2008).
Ao final, realiza-se uma avaliação do julgado em duas perspectivas. Em relação à primeira, conclui-se que o texto de Dworkin e a decisão do STF são importantes referências argumentativas em favor da descriminalização a ser eventualmente realizada via Poder Legislativo ou controle concentrado de constitucionalidade.
Dworkin adentrou especificamente no tópico da distinção entre direitos enumerados e não enumerados. Para ele, a discussão sobre esse tema seria também mal compreendida por questões semânticas.
Os constitucionalistas usam o termo “direitos não enumerados” como um nome coletivo para um conjunto especial de direitos constitucionais reconhecidos ou controversos (como o direito de ir e vir, o direito de associação e o direito à privacidade, do qual deriva o direito ao aborto[21] – se é que um tal direito existe).
Eles consideram que tal classificação assinala uma importante distinção estrutural, distinção essa que os próprios termos utilizados, “enumerados” e “não enumerados”, obviamente sugere.
É que, se a Bill of Rights apenas enumera alguns dos direitos necessários para uma sociedade com igual proteção e liberdades básicas, deixando outros desses direitos não mencionados, então se pode dizer que os juízes têm poder apenas para fazer cumprir os direitos efetivamente enumerados.
Todavia, a distinção entre direitos enumerados e não enumerados não faz nenhum sentido para Dworkin (p. 387), embora reconheça que a questão sobre algo estar ou não estar em uma lista é frequentemente importante para resolver algumas questões, como exemplo, aquela de saber se uma proibição de carregar armas, facas e explosivos na bagagem em um avião compreenderia a proibição de botijões de gás lacrimogênio.
Alguns filósofos afirmam que para responder a essas questões devemos trabalhar em termos de “referência semântica” (reference).
Para Dworkin, a aplicação dos princípios abstratos de moralidade política constantes na Bill of Rights[22] que contemplam os direitos constitucionais individuais, as controvérsias políticas particulares não se fazem por “referência semântica”, mas por interpretação, o que seria bastante diferente.
Em síntese, Dworkin (p. 390) sustentou não arguir que a Suprema Corte deve proteger direitos constitucionais não enumerados do mesmo modo que protege os enumerados, mas sim que essa distinção não faz qualquer sentido, porque confunde “referência semântica” e interpretação.
Qualquer intérprete, para ele, deve aceitar certas restrições, as quais produzem interpretações melhores ou piores, sendo uma dessas restrições a coerência. Um exemplo de falta de coerência, para o autor, seria uma interpretação da Bill of Rights segundo a qual um princípio moral inserido em uma de suas cláusulas fosse rejeitado por outra. Isso seria, em seus dizeres “[...] não um exemplo de flexibilidade pragmática, mas de hipocrisia” (p. 391).
Veio a lume não apenas o tema da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil (natureza constitucional ou caráter de supralegalidade), mas também o da possibilidade de alteração da Constituição por meio de interpretação judicial.
E, ficou assentado, nos exatos termos do voto do ministro relator, que a interpretação judicial viabiliza [...] a adaptação do “corpus” constitucional às novas situações sociais, econômicas, jurídicas, políticas e culturais surgidas em um dado momento histórico, para que […] o estatuto fundamental não se desqualifique em sua autoridade normativa, não permaneça vinculado a superadas concepções do passado, nem seja impulsionado, cegamente, pelas forças de seu tempo.
Como explicar que o direito comporta um procedimento informal de mudança da Constituição em razão de alterações sociais, culturais, econômicas e políticas, na esteira do quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal, senão com uma justificativa de ordem moral?
Sinal forte de que os precedentes sobre mutação constitucional daquele eminente momento guardam profunda sintonia com a teoria unissistemática. Se a Egrégia Corte concebe que a Lei Fundamental da nação, dotada de supremacia na hierarquia normativa, muda significativamente de conteúdo sem qualquer alteração de forma, à margem dos procedimentos próprios consagrados em seu texto (especialmente as reformas ou revisões constitucionais) e com a finalidade de se ajustar aos novos padrões da sociedade, ela parece avalizar, ainda que tácita e inconscientemente, o pensamento de Dworkin, no sentido de que o objetivo da interpretação constitucional é entender as palavras da Constituição como dispositivos que visam a promover um governo justo, ou seja, compatibilizá-la ao máximo com nosso senso de justiça.
Na obra "A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor"[23] a teoria unissistemática a que situa o direito dentro da moral tenta romper com velho e resistente paradigma, o qual parte da falha premissa de que o direito e a moral são sistemas normativos diferentes.
Jusnaturalistas, positivistas e até mesmo os interpretacionistas, caso abandonasse o quadro ortodoxo dos dois sistemas e conferissem à discussão contornos políticos e não meramente conceituais, muito enriqueceriam os debates da filosofia e a teoria do direito.
A construção de uma concepção do direito demandaria necessariamente encontrar, numa rede integrada maior de valores políticos (justiça, igualdade, liberdade, democracia, legitimidade, direito etc.), uma justificativa para os direitos jurídicos, vale dizer, uma modalidade específica de direitos políticos dotada da especial característica de serem exigíveis e imponíveis pela via judicial, sem a necessidade de intervenção legislativa.
Aplicada em caráter ilustrativo sobre matéria-prima brasileira, essa visão integrada, que trata o direito como um ramo da moral política, fornece interessante explicação teórica para determinadas decisões jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal.
Não obstante, embebidos na concepção bissistemática, os julgados selecionados de nossa Corte Suprema ostentam fundamentação perfeitamente legível com as lentes do modelo integrado de Dworkin.
Lembremos que a justiça no âmbito de nossa República e recente democracia, a qual possui como objetivo fundamental declarado, entre outros, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (art. 3º, da CF/1988).
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[1] Diz essa fábula que a raposa está sempre tentando caçar o porco-espinho. Posta-se na entrada da sua toca e ali fica horas, pacientemente, esperando o porco-espinho sair para procurar alimento. Mas o animalzinho aguarda oportunidade e acaba saindo sem ser caçado. Entretanto, isso nem sempre dá certo. Saber conviver, dar e receber carinho, ter compaixão pelo outro, cultivar o altruísmo, nos ajudará a minimizar os medos, as inseguranças e nos dará força e coragem para superar esse momento tão difícil. Que esta parábola nos ajude a dialogar com quem está em casa para juntos realizarmos essa travessia da vida. A parábola do porco-espinho é uma metáfora usada pelo filósofo Arthur Schopenhauer para se referir às dificuldades de convívio entre os seres humanos. Os porcos-espinho buscavam se proteger do inverno rigoroso, no calor da companhia de outros. Mas, com a proximidade dos corpos, os espinhos causavam-lhes feridas.
[2] Ronald Myles Dworkin (1931-2013) foi influente tanto no âmbito da filosofia do direito quanto no da filosofia política. Sua teoria do direito como integridade, apresentada em sua obra intitulada "Império da Lei", na qual os juízes interpretam a lei em termos de princípios morais consistentes, está entre as teorias contemporâneas mais influentes sobre a natureza do direito. De acordo com a pesquisa do Journal of Legal Studies, Dworkin foi considerado o segundo acadêmico do direito mais citado do século XX. Dworkin, contrapondo-se ao formalismo legalista e ao mundo de regras positivistas, buscou nos princípios os recursos racionais para evitar o governo da comunidade por regras que possam ser incoerentes em princípio. Exerceu a função de professor de Direito e Filosofia na Universidade de Nova York e de teoria do direito da University College London quando faleceu. Já havia lecionado na Faculdade de Direito de Yale e na Universidade de Oxford, onde foi Professor de Jurisprudência e sucedeu o renomado filósofo H.L.A. Hart.
[3] O doutrinador separa semanticamente os conceitos de ética e moral. A primeira se reporta ao estudo de como viver bem, ou seja, de como proceder para transformar a vida em algo valioso; a segunda se refere ao estudo de como devemos tratar as outras pessoas, designadamente no sentido kantiano de que não podemos respeitar nossa humanidade sem respeitar a humanidade nos outros. (DWORKIN, 2014, p. 22-24). A tese mais radical defendida no livro é justamente a independência metafísica do valor, postulando a existência concreta de verdades objetivas aptas a serem apreendidas por uma perquirição axiológica. Neste sentido, o autor pondera que a única defesa inteligível da tese de que algum juízo moral é "independente da mente" é um argumento moral que demonstre que esse juízo ainda seria verdadeiro mesmo que ninguém o considerasse tal (DWORKIN, 2014, p. 17).
[4] Ronald Dworkin forja uma teoria da democracia coparticipativa, de modo que os cidadãos, para além de terem direito igualmente ao voto, e com igual significância, também são igualmente interessados nos resultados práticos da democracia parlamentar/eleitoral. A distinção traçada entre "freedom" e "liberty", e a negação a um direito geral à autonomia. DWORKIN, 2014, p. 561. Ipsis verbis: "embora os termos liberdade e autonomia sejam às vezes intercambiáveis, vou estabelecer uma distinção entre eles. A autonomia total de cada pessoa é seu poder de agir como bem quiser, livre de restrições ou ameaças impostas por terceiros ou por uma comunidade política. Sua liberdade negativa é aquela porção de sua autonomia que a comunidade política não pode restringir sem infligir-lhe um tipo especial de dano, ou seja, sem comprometer sua dignidade, negando-lhe a igual consideração ou algum traço essencial da sua responsabilidade pela própria vida".
[5] A propósito, cumpre afirmar que a filosofia do direito é ramo da Filosofia Geral que apresenta uma visão panorâmica do fenômeno jurídico dentro do contexto social, objetivando analisar, não apenas os fins válidos pela complexa ordem jurídica, mas sim, compreendê-los.
[6] Ronald Dworkin defendeu a tese de que os conceitos políticos são necessariamente conceitos interpretativos, e que, por seu turno, precisam se encaixar um com os outros, formando uma espécie de unidade e integridade dos valores morais e éticos.
[7] Dworkin compreendeu que a integridade do direito requer uma conclusão: os princípios nos quais um conjunto de decisões apoiaram-se devem ser aceitos também em outros contextos. Isso não significaria dizer que os juízes não possam entender que alguns dos princípios utilizados em decisões passadas estejam equivocados, mas importaria na impossibilidade de eliminar essas decisões do passado, o que destruiria a integridade. A destruição da integridade do direito ocorreria, para ele, especialmente quando se rejeita princípios estabelecidos em decisões do passado que, caso tivessem sido prolatadas no presente, não poderiam receber o rótulo de equivocadas.
[8] A validade do sistema jurídico está diretamente relacionada à existência e à configuração da regra de reconhecimento. Ao mesmo tempo em que fornece critérios de identificação das regras do sistema jurídico, a regra de reconhecimento reafirma a perspectiva institucional deste, uma vez que sua natureza depende do ponto de vista (interno ou externo) do participante. Por isso, o passo seguinte para a compreensão do Direito em Hart é, justamente, o de reconhecer quais condutas são juridicamente exigidas. O enfrentamento do tema da validade jurídica remete a duas ordens distintas de problemas: primeiro, a determinação da origem do fenômeno coercitivo do Direito, a qual Hart responde com uma teoria do reconhecimento; e o segundo, a determinação da própria regra de reconhecimento como instrumento conferidor de validade às regras jurídicas.
[9] O Direito, na definição clássica de Ulpiano, é a arte do bom e do equitativo (ars boni et aequi). Nos primórdios da história da humanidade, viveu o homem, que nasceu livre, sem que existissem regras que lhe ditassem o comportamento, em uma fase chamada de anomia (ausência de normas), a que se seguiu um período em que predominaram os usos e costumes (Direito consuetudinário).
[10] Com nítida inspiração em tais declarações universais, o Direito, a Justiça, a Moral e a Ética, foram, aos poucos, se identificando como virtudes – (no sentido político da palavra) – inseparáveis. A Justiça – que no pensamento iluminado de Ulpiano foi definida como constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere – quando bem aplicada é verdadeiramente uma virtude – (considerada a expressão no sentido concebido por Montesquieu: virtude política), que se traduz no amor às leis do país.
[11] Jusnaturalismo pode ser agrupado nas seguintes categorias: a) Jusnaturalismo Cosmológico - vigente na antiguidade clássica; b) Jusnaturalismo Teológico - surgido na Idade Média, tendo como fundamento jurídico a ideia da divindade como um ser onipotente, onisciente e onipresente; c) Jusnaturalismo Racionalista - surgido no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII, tendo como fundamento a razão humana universal; d) Jusnaturalismo Contemporâneo - gestado no século XX, que enraíza a justiça no plano histórico e social, atentando para as diversas acepções culturais acerca do direito justo.
[12] Basicamente o pós-positivismo leva em consideração princípios e valores para determinar a interpretação legal. O pós-positivismo não nega o positivismo, mas transcende sua visão de Direito apartado das outras ciências sócias, o que quer dizer que este nega a separação entre Direito e moral. O Pós-positivismo buscou aproximar a Ética e valores sociais ao Direito, não deixando-os se apartarem. Trouxe os princípios para uma hierarquia acima das regras. O mundo não mais aceitava o império de uma lei tirânica. Alguns parâmetros morais de justiça precisavam ingressar no direito, visto que somente os critérios formais de validade não eram suficientes. Com isso, surge o movimento de aproximação do Direito com a moral, o pós-positivismo.
[13] Joseph Raz (1939-2022) foi filósofo israelense especializado em filosofia moral, do direito e da política. E, foi um dos proeminentes defensores do positivismo jurídico, sendo conhecido por sua concepção do liberalismo perfeccionista. Passou grande parte de sua carreira como professor de filosofia do direito na Universidade de Oxford associado com o Balliol College, e por último, foi professor da Faculdade de Direito da Universidade Columbia e do King's College de Londres. Foi aluno de H. L. A. Hart, Raz tem sido importante na continuidade do desenvolvimento do positivismo jurídico, tanto antes quanto depois da morte de Hart. Raz também foi coeditor de uma segunda edição do 'Conceito do Direito' de Hart, com um pós-escrito incluindo as respostas de Hart a outros filósofos, críticos do seu trabalho. Seu primeiro livro, O Conceito de um Sistema Jurídico, foi baseado em sua tese de doutorado. Um livro posterior, A Moralidade da Liberdade ganhou dois prêmios: o Prêmio W. J. M. Mackenzie, da Associação de Estudos Políticos do Reino Unido de 1987, atribuído ao melhor livro de ciência política, e o Prêmio Elaine e David Spitz da Conferência para o Estudo do Pensamento Político, de Nova York, de 1988, atribuído anualmente ao melhor livro liberal e/ou da teoria democrática que tinha sido publicado dois anos antes. O livro desenvolve a concepção do liberalismo perfeccionista. Raz argumentou a favor de uma interpretação distinta de comandos jurídicos como motivos excludentes pela ação e pela 'concepção do serviço de autoridade', de acordo com a qual os sujeitos das autoridades apenas podem se beneficiar de suas decisões se puderem estabelecer sua existência e seu conteúdo em formas que não dependam do levantamento das mesmas questões que a autoridade for encarregada de resolver. Esse argumento, por sua vez, apoia o argumento a favor do positivismo jurídico de Raz, particularmente à "tese das fontes", "a ideia que uma prova adequada para a existência e o conteúdo do direito deve ser baseada apenas em fatos sociais, e não em argumentos morais.
[14] Ademais, a positivação de princípios gerais do Direito (que constituem normas extremamente genéricas e orientadoras), tanto pela Constituição Federal como pelas legislações ordinárias, vincula a eles força de legal, permitindo consequentemente sua aplicação em qualquer lide posta à apreciação do Judiciário, porém apresentando força ainda maior naquelas que ainda não foram reguladas por constituírem situação nova, ainda não amparada juridicamente, mas que serão futuramente analisadas com maior especificidade pelo ordenamento.
[15] Em 1850, foi promulgada a lei dos escravos fugitivos, pela qual qualquer suspeito de ser fugitivo das propriedades sulistas poderia ser preso, mesmo encontrando-se em áreas livres. Os agentes que auxiliavam nas fugas também poderiam ser punidos. As leis sobre escravos fugitivos foram leis aprovadas pelo Congresso dos Estados Unidos em 1793 e 1850 para prever o retorno de pessoas escravizadas que escaparam de um estado para outro estado ou território. A ideia da lei do escravo fugitivo foi derivada da Cláusula do Escravo Fugitivo que está na Constituição dos Estados Unidos (Artigo IV, Seção 2, Parágrafo 3). Pensava-se que forçar os estados a entregar escravos fugitivos de volta à escravidão violava os direitos dos estados devido à soberania do estado e acreditava-se que a apreensão de propriedades do estado não deveria ser deixada para os estados. A Cláusula do Escravo Fugitivo afirma que os escravos fugitivos "serão entregues mediante reclamação da Parte a quem tal Serviço ou Trabalho for devido", o que restringia os direitos do Estado porque forçar as pessoas a regressar à escravatura era uma forma de recuperar a propriedade privada.
[16] PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (OU BAGATELA): é o postulado por meio do qual se exclui o crime em razão da atipicidade material da conduta, que não produz ofensa minimamente significativa ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de serem requisitos para a sua aplicação: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica.
[17] Dworkin afirma que “nenhum governo é legítimo a menos que endosse dois princípios soberanos. Em primeiro lugar, ele deve demonstrar igual consideração pelo destino de toda pessoa sobre a qual pretende ter domínio. Em segundo lugar, deve respeitar plenamente a responsabilidade e o direito de toda pessoa de decidir por si mesma como fazer de sua vida algo valioso" (DWORKIN, 2014, p. 4 e 557).
[18] Descriminalização do aborto referente ao Habeas Corpus nº 124.306, que descriminalizou o aborto nos três primeiros meses de gestação, propondo uma análise desta decisão com base no texto de Dworkin. Ao final, realiza-se uma avaliação do julgado em duas perspectivas. Em relação à primeira, conclui-se que o texto de Dworkin e a decisão do STF são importantes referências argumentativas em favor da descriminalização a ser eventualmente realizada via Poder Legislativo ou controle concentrado de constitucionalidade.
[19] Os jusnaturalistas sustentam a existência de um direito natural, que seria a base e o fundamento do poder coercitivo do Estado, que, do contrário, seria ilegítimo. A Corrente do Jusnaturalismo defende que o direito é independente da vontade humana, ele existe antes mesmo do homem e acima das leis do homem, para os jusnaturalistas o direito é algo natural e tem como pressupostos os valores do ser humano, e busca sempre um ideal de justiça. A concepção jusnaturalista foi o resultado de transformações econômicas e sociais que impuseram mudanças na concepção de poder do Estado, que passou a ser compreendido como uma instituição criada através do consentimento dos indivíduos através do contrato social. O declínio das relações feudais de produção, desenvolvimento econômico da burguesia, a Reforma Protestante, as revoltas camponesas e as guerras ocorridas durante o processo de formação do capitalismo propiciaram uma nova situação social. Em oposição aos privilégios da nobreza, a burguesia não podia invocar o sangue e a família para justificar sua ascensão econômica. Em outras palavras, a partir da secularização do pensamento político, os intelectuais do século XVII estão preocupados em buscar respostas no âmbito da razão como justificativa do poder do Estado. Daí a preocupação com a origem do Estado. Porém, não se tratava de uma busca histórica, mas sim de uma explicação lógica que justificasse a ordem social representada pelos interesses da burguesia em ascensão.
[20] A multiplicidade de interesses da sociedade contemporânea necessita de uma orientação mínima que declare comportamentos aceitáveis e rejeitáveis. Dificilmente o juspositivismo, bem como o Direito como ordenamento, agradará a todos cidadãos individualmente. Entendo, não obstante, que esta ciência deva buscar o melhor para o corpo social, logicamente sem renegar nossa individualidade mínima, pois do contrário, adentraria em jornada eterna na busca pela perfeição, caracterizando-se como utopia, ou mera ideologia de Direito.
[21] A questão do aborto, sugeriu, requer uma interpretação do direito à privacidade, no sentido de que esse direito limita o poder estatal de invadir a liberdade pessoal. O direito à privacidade não garantiria o direito ao aborto se o feto fosse uma pessoa constitucional. Mudando o foco da discussão, porém, para a questão do valor intrínseco da vida, o princípio da privacidade seria plenamente aplicável, porque as decisões éticas são conectadas a esse princípio, de tal modo que as decisões sobre procriação ensejariam falar em um princípio distinto, que seria o da autonomia procriativa.
[22] A Declaração de Direitos de 1689 (também conhecida por sua forma estatutária: Bill of Rights of 1689) foi um documento elaborado pelo Convention Parliament, formado após a fuga de Jaime II diante da chegada das tropas de Guilherme III em território britânico, no momento que ficou conhecido como Revolução Gloriosa. A Declaração, em essência, propõe limitações às ações da Coroa perante o Parlamento e a definição da sucessão da Coroa. Entre as limitações, pode-se destacar a cobrança de impostos sem o consentimento parlamentar, não podendo interferir nas eleições parlamentares e a suspensão de leis sem a anuência parlamentar. Após sua elaboração, o documento foi entregue a Guilherme e Maria II (filha protestante de Jaime II), que aceitam os termos da declaração, sendo assim coroados rei e rainha. Pode-se dizer que Guilherme foi o primeiro rei “eleito” da Inglaterra. Este documento é considerado um dos pilares do sistema constitucional do Reino Unido que estabelece limites aos poderes do monarca e declara os direitos do Parlamento, incluindo regular deliberação parlamentar, eleições livres e liberdade de expressão no Parlamento.
[23] Grosso modo, o doutrinador defendeu que a verdade se encontra no interior de uma grande gama de práticas, entretecida com outros valores de veracidade (precisão, responsabilidade, sinceridade e autenticidade) e diversos conceitos (crença, investigação, indagação, asserção, cognição, realidade etc.). Uma resposta adequada a respeito da natureza da verdade, dentro da perspectiva da tese, deveria pressupor toda essa rede de conceitos e práticas. Enfim, a raposa sabe muitas coisas, deturpa a verdade em seu favor, enquanto o porco-espinho sabe uma de grande valor: que a sua vida depende de saber se defender verdadeiramente. A raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante". É com esse verso grego antigo, de Arquíloco, repristinado no início do século 20 por Isaiah Berlin, que Dworkin nos ilustra sua tese da unidade do valor.