O P(R)ESO

Um dia segui-o na rua, depois ele entrou no Centro Comercial. Eu saí preso, ele já não saiu, tiveram de o tirar. Não fiquei feliz, só que a minha tristeza não tinha nada a ver com infelicidade e, essa tristeza, passou. Tirei um peso.
Não sei se vale a pena escrever a minha vida, não tenho é muito mais que fazer. Em 1974 deu-se o 25 de Abril, nasci prematuro de sete meses. Aos vinte e um matei um homem, fui preso. Aconteceu no Centro Comercial, não quis dizer nada. Foi sem qualquer explicação. Como eu o conhecia, deram-me como premeditado e fui engaiolado até aos quarentas. Tratam-me pela minha inicial, R.
Desde 1995 vivo neste sossego. Como dei um murro num colega de cela e por azar só não cegou por sorte, passei pela Solitária e acabaram por me pôr solitário de vez. Isto depois dumas conversas com uma psicóloga por quem me apaixonei, até ela me confessar estar a ficar maluca com os presos. Desejou-me muita sorte e mudou de emprego.
Recentemente passei a ter televisão na cela, só vejo os noticiários. Como não tenho comando à distância, um dia vejo num canal, no dia seguinte mudo para o seguinte, até voltar ao anterior. Nisto a minha vida repete-se e é sempre igual. Comecei foi a ler e tenho lido muito, a pedido da Lita comecei a escrever. Ela foi embora, ficou o hábito.
Com ela não tinha um problema que agora tenho, o que fazer às folhas que vão ficando escritas. Resolvi hoje começar a fazer só uma história, deste modo, por muitas folhas possam vir a ser, são apenas uma coisa que comecei a escrever e vai crescendo.
Pedi para ter um vaso com uma flor no quarto, o guarda, de poucas falas, nem me respondeu. Faço de conta, rego a planta aqui todos os dias, fico à espera venha a dar flor. Quando faço estes apontamentos de coisas que me apetecem ou sinto, foi-me diagnosticada Poesia.
Versos é coisa a evitar, por respeito. Livros de Poesia demoro imenso a ler, quando os devolvo é sempre com a sensação de não os ter lido. Acho impossível acabar de ler um livro de poemas. São livros cheios de poemas outras vezes nem tanto, somos nós a ter de construir a história. A história não tem fim, muda quando nós mudamos. A Poesia é muito difícil e muito bela.
Ainda não encontrei um poema feito, mesmo quando não gosto deles. Às vezes não os percebo de todo, isso também acontece com a prosa. Disseram-me é que ainda este ano vou sair em liberdade, o que é muito estranho. Fiz de conta, foi como se não tivesse ouvido. A liberdade tem de ser vivida, nem faço ideia de como possa vir a ser a minha vida.
Aqui entretenho-me a registar as horas em que tenho de ir à casa de banho e não posso ter uma planta, uma capaz de dar flores. Até podia ser um feto, não dão flor mas são plantas bonitas. Gostava é de saber porque é que devia ter dito a razão porque matei o desgraçado, as coisas intimas são para ser pessoais.
Não foi por ele ter violado a minha namorada, isso até me podia ter passado ao lado se ela lhe tivesse perdoado. Demorei algum tempo, mas quando percebi que ela nunca mais queria estar comigo, tudo isso por eu saber quanto tinha acontecido. Ainda lhe perguntei: – Queres que o mate? Ela respondeu: – Não!
Eu por ela não o teria morto, por mim também, ao princípio. Depois ela explicou-me, não fui eu que a violei, mas era comigo que ela se lembrava do que tinha acontecido. Achei tudo muito estranho, acho que o matei para me libertar da estranheza. Era uma tristeza, uma saudade dela, não conseguia esquecer.
R

{Foto: "continuação"...
Vou hoje (18.12.06) incluir no dia 18
http://www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=306313}

Francisco Coimbra
Enviado por Francisco Coimbra em 09/03/2006
Reeditado em 18/12/2006
Código do texto: T120892