7 QUADROS QUÂNTICOS

O GRITO

DOUGLAS BOCK criou seu modo próprio de incorporar em poesia a tradição cultural e suas variadas manifestações. Suas remissões e citações não são apenas verbais. Elas comparecem como entidades que se agregam à sua expressão poética. Ciência, filosofia, artes plásticas, literatura e ficção se unem e conversam entre si, mas de modo a se fazerem signos que figuram paralelamente aos poemas. É o caso da série 7 Quadros Quânticos. Destacamos entre estes “O Grito”, poema que traz como seu coadjuvante o famoso quadro de Edvard Munch. Pintura e poesia aqui se conjugam e formam dois signos complementares: o visual e o verbal.

NO POEMA todos os fenômenos físicos restam paralisados e o tempo deixa de existir. Mais precisamente: o mundo morre enquanto o grito ecoa e “Só quando o grito cessa ... o Universo é recriado”.

O colapso do tempo e da manifestação do mundo se relaciona com a figura humana que na obra de Munch grita. Isso nos diz que não é qualquer grito que ali no poema se enuncia. O grito enunciado é humano. Essa qualificação é comunicada pelo quadro. O poema não precisa adjetivar a modalidade do grito a que se refere. A pintura é o seu adjetivo. Os signos distintos aí são intercambiáveis entre poesia e pintura.

A figura humana retratada no quadro se introduz no poema como parte figurativa dele. Quadro e poema é extensão um do outro. Justapostos, eles se conjugam: o poema nas palavras exprime o seu tanto e o quadro na imagem outro tanto, entre um e outro cria-se uma zona de significados complementares.

NA PINTURA de Munch o grito é a expressão da angústia e do sentimento de horror, ecoa no ambiente e o deforma em ondas sinuosas, cores fortes e tormentosas: tudo ao redor repercute desespero e horror.

NO POEMA o grito ressoa também em todo o mundo físico, causa o colapso já referido e desencadeia uma “catástrofe” que se expande e atinge o mundo manifesto. Catástrofe aqui remetida para o significado que esse termo adquire na tragédia grega – o do momento doloroso em que a personagem sofre um infortúnio inexorável. Essa relação catastrófica da passagem de um estado humano a outro se estende e afeta não só o mundo, alastra-se e atinge o universo, como se declara nos versos finais.

A tragédia, nascida na Grécia clássica, ressoa aqui de forma subliminar. O poema expande e diz que a condição existencial do ser humano é sempre a mesma no percurso do tempo. E para expressá-lo foi necessário fazer recordar que entre a Grécia clássica, a pintura de Munch (1895) e nossa época estamos envolvidos nas mesmas questões existenciais e nossa condição humana se mostra a mesma.

Sobressai do conjunto expressivo – visual e verbal – o efeito ampliado que entre ambos se articula: no poema ecoam significados atemporais: aparecem subsumidos nas remissões que o poema subliminarmente sugere e atravessam toda a história humana.

O GRITO, tema do poema e do quadro, não se encerra apenas nas remissões apontadas. Dele sobressai uma imagem-eixo em torno da qual o poema gira: o tempo e o mundo manifesto subsistem enquanto a figura humana também se mantém estável. Quando ela treme, o mundo também treme. a figura humana e o mundo é uma coisa só. Em suma, o mundo é aquilo que o ser humano projeta nele.

O POEMA também carrega consigo toda uma tradição literária implícita. Uma à nossa porta é a ficção de Jorge Luis Borges. Destaco especialmente a imagem do ancião que vivia sob um umbral. Quando ele morre o umbral também desaparece. Essa personagem figura na obra Ficções, no conto “Tlön Uqbar Orbis Tertius”. Portanto, o fruidor desse poema tem muito a degustar além do que aparentemente nele se mostra.

Como acréscimo, o andamento do poema, predominantemente 6 e 7 sílabas poéticas, promove a cadência perfeita para a tensão criada pelo grito ou, noutros termos, catástrofe humana.

Vilma Silva

Nota

os 7 poemas quânticos estão disponíveis em https://www.paulistando.com.br