Análise intertextual dos poemas RETRATO, de Cecília Meireles, e (ESTE) ROSTO de Fiama Hasse Pais Brandão

No Brasil é grande o consenso de que os maiores poetas do século XX foram Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles (1). Ítalo Moriconi observa que entre os grandes poemas de Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto: O Romanceiro da Inconfidência e Morte e Vida Severina, respectivamente; em Cecília a referência é histórica e nacional, em Cabral é sociológica e regional (2). É óbvio que, ao comparar dois grandes poemas de autores nacionais, o que se pretendeu demonstrar foi a intertextualidade entre a obra dos poetas, intertextualidade essa que se aprofundou a partir de Cabral com seu poema o Auto do Frade.

Fiama Hasse Pais Brandão é “uma das grandes poetisas do século XX”, disse à Lusa o crítico e ensaísta Eduardo Lourenço, que considera Fiama “uma espécie de concha de silêncios, onde se refletiam todas as dores e alegrias do mundo”. É “mais célebre do que verdadeiramente conhecida”, disse ainda. “Mas vamos ter agora tempo para lê-la, como é costume em Portugal, onde só acordamos com os mortos nos braços”, acrescentou (3).

Aqui no Brasil, Fiama Hasse Paes Brandão ainda não chegou a ser citada na 30º Edição de A literatura portuguesa através dos textos, de Massaud Moisés (4). Apesar de falar de escritores contemporâneos de Fiama, como José Saramago, entre outros.

Intertextualidade, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é a superposição de um texto a outro ou na elaboração de um texto literário, a absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos (5). Nosso ensaio tem exatamente este objeto, isto é, superpor o poema Retrato, de Cecília Meireles, ao poema (ESTE) ROSTO, de Fiama Hasse Pais Brandão, para no corpo ensaístico elaborar, absorver e tentar a transformação de ambos os poemas na possibilidade de outros textos.

Para tanto; transcrevemos os dois poemas abaixo:

Retrato

“Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

Em que espelho ficou perdida a minha face?"

(ESTE) ROSTO

Sombra com a luz ainda nos últimos ramos

do próprio desejo: a invocação de abril, o mês

onde o lugar pressente se o verão

entre a proposta de flores e a face do fruto (a de

um sólido). Perdida, pois, a doce luz do inverno, a necessária

ao rosto (depois de longas noites entre seus dobres,

neve dolorosa), a matinal. Rosto

com o vidro, linhas (de veias) refletindo

o mundo (vário) (alheio). Enquanto a luz transpõe

copas, os cumes e o segundo

crepúsculo (a tarde) é incessante.

O discurso poético de Cecília Meireles ao tratar do mesmo tema – Retrato – (ESTE) ROSTO – do poema de Fiama Hasse Pais Brandão, é um discurso direto, de constatação, ou de surpresa com a marcação do tempo no corpo. Entrementes, Retrato é um dos poemas mais conhecidos da poetisa brasileira. Ao colocarmos o rosto presente diante da face do passado, ou a sombra face à luz, e, ao tomarmos os três primeiros versos do poema de Cecília Meireles, observamos de chofre uma maior “prolixidade” de Fiama Hasse Pais Brandão para dizer e expressar a semelhança dos seus sentimentos em relação ao tempo e, como diria Pedro Nava, suas unhas em ação sobre os corpos.

Fiama precisa de nove versos para falar do que Cecília, com seu poder de síntese, falou em seus três primeiros versos.

"Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Agora os versos correspondentes de Fiama.

Sombra com a luz ainda nos últimos ramos

do próprio desejo: a invocação de abril, o mês

onde o lugar pressente se o verão

entre a proposta de flores e a face do fruto (a de

um sólido). Perdida, pois, a doce luz do inverno, a necessária

ao rosto (depois de longas noites entre seus dobres,

neve dolorosa), a matinal.

Fazemos aqui a ressalva que a palavra Rosto, que viria depois “matinal.” Inicial de uma nova frase no poema de Fiama foi retirada por se referir, em nossa opinião, a outro segmento do poema.

Cecília em seus três versos tenta alguma rima, como entre magro e amargo, ambas as palavras de cinco letras, enquanto Fiama evita a rima, cujo significado também pode ser abertura, fenda, fístula (5). A poetisa portuguesa, desde o início de seus versos demonstra um inconformismo que Cecília só demonstrará ao fim do seu poema. Enquanto o rosto-face de Cecília tem uma unidade, desde o título de seu poema (ESTE) ROSTO em Fiama há uma ambivalência, um splittling, uma distorção cognitiva. Expressa em “Sombra com a luz ainda nos ramos do próprio desejo”, isto é, uma luta entre Eros e Tânatos.

Aqui somos forçados a fazer um corte epistemológico, porque os versos de Cecília Meireles que se seguem agora, não tem paralelo com os de Fiama Hasse Paes Brandão. Enquanto Cecília expressa um tédio depressivo, Fiama faz, invocações de vida.

“a invocação de abril, o mês

onde o lugar pressente se o verão

entre a proposta de flores e a face do fruto (a de

um sólido). Perdida, pois, a doce luz do inverno, a necessária

ao rosto (depois de longas noites entre seus dobres,

neve dolorosa), a matinal.”

Não vai aqui nenhuma crítica ao poema de Cecília Meireles, pelo contrário, a genialidade da poetisa vem da incerteza em relação à sobrevivência caída em um vazio. Talvez devida à eterna insolvência cultural do Brasil, onde, como escreveu uma vez Glauco Mattoso, citado de memória, todo poeta é marginal, posto que se leia pouca poesia no Brasil.

A face, este rosto de Fiama, ainda sente em si mesmo a possibilidade de mutações, ou seja, enxerga a proposta de flores (juventude ou espírito fáustico) e a face do fruto, nascido da flor, isto é, a de um sólido, mas fruto ainda com sabor de si, ao invés de busto ou pedra sujeitos apenas à pátina do tempo.

A luz do inverno é ao mesmo tempo doce e dolorosa, comporta uma duplicidade de percepção pela autora, enquanto o desencanto de Cecília, canto de cisne, é reto, como uma estrada onde não há muitos rumos e só um ponto de chegada. Onde a poetisa ver-se-á só. Perdida. Por um sentimento de descontinuidade, de incredibilidade em qualquer permanência.

Comparemos agora os últimos e mais ricos versos de cada poema das duas poetisas lusófonas.

Os de Cecília:

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Acima Cecília nos fala do diverso ao que sentiu que fosse, antes de esses problemas de identidade (ou identitários, como preferirem) viessem, e a poeta fala com dócil ironia de si, a lhe trazer sentimentos de inferioridade em relação ao que foi, como se obrigada, mas sem forças a marchar para trás, para não estar abaixo de si mesma em valor ou mérito, ser ofuscada, eclipsada, ou não poder medir-se com si mesma.

Agora vejamos os últimos versos do poema de Fiama, para depois aprofundarmos a análise conjunta dos poemas.

Rosto

com o vidro, linhas (de veias) refletindo

o mundo (vário) (alheio). Enquanto a luz transpõe

copas, os cumes e o segundo

crepúsculo (a tarde) é incessante.

O rosto, face, em Fiama não se dissocia do vidro, mais matéria de transparência do que reflexo. O rosto de Fiama está atrás do vidro e para a poetisa portuguesa o vidro não é espelhado, não há a procura de outro rosto divisível, no sentido de compartilhado, porque desde sempre o rosto foi dividido em variável mímica (atitude ou movimentos corporais que correspondem a um estado de pensamento.)

Estivesse a frente do vidro, o vidro não teria a prata do espelho como tem para Cecília Meireles, que, fatidicamente, assume uma mimese (simulação anímica, isto é, depressiva, ou ainda simulação histórica de uma enfermidade, a da efemeridade – numa derivação da interpretação médica de simulação de uma doença orgânica por outra). O medo da amnésia coletiva de sua obra e nome.

Este rosto de Fiama é diferente, não se dobra ao vidro sequer espelho, “com o vidro, linhas (de veias) refletindo o mundo (vário) (alheio).” Isto é, há uma teia de vidro, inteiriça embora o vidro possa estar estilhaçado como o de um carro ao receber uma pedra lançada à média força. Há veias. Processo angiopoiético (10), que causa a formação de novos vasos.

Por fim, quando Fiama finaliza seu poema. Escreve:

Enquanto a luz transpõe

copas, os cumes e o segundo

crepúsculo (a tarde) é incessante.

O que nos diz é que é tronco e ramos, qual fosse, a artéria aorta a sair do nobre músculo para ramificar-se em árvore translúcida, na certeza de suas raízes culturais, certeza que Cecília Meireles também as possui, até as copas e os cumes, mas que para estimular a continuidade da poesia brasileira finge não ter.

Mas em Cecília Meireles, o último verso vem em forma interrogativa pungente: Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Qual resposta adequada a oferecer?

Nascida em sete de novembro de 1901 — Rio de Janeiro, falecida en nove de novembro de 1964) Cecília Meireles foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira. Bem informada, culta, escreveu o livro viagem entre 1929 e 1937. É crível que tenha absorvido o choque das imensas mudanças culturais ocorridas por motivos variáveis como os do tenentismo, a semana de arte moderna, a revolução de 1930, com ascensão de Getúlio Vargas, a implantação do Estado Novo, em 1937, e a ditadura civil-militar que durou até 1945, ano também do fim da Segunda Grande Guerra. Natural que perguntasse para si mesmo, no redemoinho dos seus dias e por sua arguta sensibilidade, se algum poeta ou poetisa nela se espelharia.

Sim, é a resposta, mas a partir de vasos vicariantes, como o fez Dora Ribeiro, poetisa talvez nunca lida por Cecília Meireles, que buscou com acuidade novos significantes, significados e sentidos, a partir da poesia da poeta e jornalista. Mas mirar esse escopo agora seria uma digressão de alvo.

Quanto ao verso final de Fiama Hasse Pais Brandão :

crepúsculo (a tarde) é incessante.

Há nele uma crepitação, ruído semelhante ao ouvido quando se atritam cabelos entre os dedos ou se joga sal ao fogo. A tarde, agora sem parênteses, é incessante. Sombra com a luz ainda nos últimos ramos do próprio desejo.

Quanto à “disergasia” (Do Gr dys, mau, ergasia, trabalho). Falta de energia, incapacidade doentia para o trabalho (11). Aparentemente disposta no último verso do poema de Cecília Meireles, veio da percepção de que para os potenciais leitores de sua obra seria, foi e é difícil ascender na capilaridade cultural do Brasil, não só para dar continuidade à história da poesia brasileira como para também compreendê-la a contento, com justa ênfase nos autores canônicos. Mas o olhar dessas duas grandes poetas sobre o mesmo tema vem amplificar essa possibilidade sociocultural de que é possível recolocar no horizonte a proposição de Lautréamont: A poesia será feita por todos. A palavra, a página de um livro pode ser este lugar de projeção utópica: é preciso esperança, e isso a poesia detém o segredo de gerar (14).

1) Meireles, Cecília. Obra poética. Viagem. Pag.84.Rio de janeiro, Editora Nova Aguilar S.A. 1983.

2) Hasse Pais Brandão, Fiama. Âmago. Antologia organização de Gastão Cruz. Pag.29. Assírio & Alvim. Lisboa, 2010.

3) Moriconi, Ítalo. Como e por que ler a poesia Brasileira do Século XX/ Ítalo Moriconi . Pag. 12. Rio de Janeiro:Objetiva,2002.

4) Moriconi, Ítalo. Como e por que ler a poesia Brasileira do Século XX/ Ítalo Moriconi .Pag. 73 Rio de Janeiro:Objetiva,2002.

5) Lourenço, Eduardo. http://www.publico.pt/cultura/noticia/partiu-uma-das-grandes-poetisas-do-seculo-xx-1283033

6) Moisés, Massaud, 1928- A literatura portuguesa através dos textos; 30.ED. São Paulo – Cultrix, 2006.

7) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.288. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

8) Azevedo, Francisco Ferreira dos Santos, 1875-1942. Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins/ thesaurus / Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.- 2.ed. atual e revista. – Rio de Janeiro:Lexikon, 2010.

9) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.233. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

10) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.233. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

11) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.233. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

12) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.34. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

13) Plisuk, Julio. Pequeno Dicionário de Termos Médicos / Julio Polisuk, Sylvio Goldfeld. 4º.Ed. Pag.117. São Paulo: Editora Atheneu,2002.

14) Salgado, Marcus. Prefácio do livro Algo sem gesso, de Alberto Daflon Filho e Fabio Daflon. Pag.11. Rio de Janeiro. Contraste Editora. 2009.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 07/03/2021
Reeditado em 07/03/2021
Código do texto: T7200704
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