A Charlatanização do Medo. - Dioneia.

Dioneia

“O fato mais estranho e mais fantástico sobre as emoções negativas é que as pessoas realmente as adoram” (Piotr Demianovitch Uspenski)

“A paixão é uma emoção crônica” (Théodule-Armand Ribot)

“O grande milagre no homem é que ele pode inventar a si próprio, o homem pode construir a si mesmo, enquanto todas as outras criaturas já nascem predeterminadas a ser o que são, o homem tem a capacidade de mudar, de transformar a si mesmo” (Giovanni Pico Della Mirandola)

“Traga à luz do dia o que você viu nas trevas, para que isso possa tocar os outros de fora para dentro” (Caspar David Friedrich)

“O medo nasceu com o homem na mais obscura das eras... ele está em nós... acompanha-nos por toda a nossa existência” (Jakov Lind)

Se a inocente e pequena mosca tivesse medo de aterrissar na folha da Dioneia (Dionaea muscipula) ela nunca seria digerida por essa hábil e faminta armadilha da natureza, pena que a mosca só descobre isso pouco antes do seu fim, quando já é tarde demais para aprender a lição.

O ano era 1768, quando um botânico irlandês chamado John Ellis viu pela primeira vez num pântano da Flórida uma espécie curiosa de planta carnívora capturando um inseto ardilosamente. Jamais tinha visto nada parecido em sua vida, o botânico perplexo então descreveu em suas anotações minuciosamente o que via, foi uma descoberta fantástica, era a Dioneia sendo observada pela primeira vez.

A planta que me refiro tem nas pontas de seus ramos armadilhas parecendo conchas de uma ostra que chamamos de “lóbulos”, ou se preferir é possível imaginar uma mini armadilha para urso envolta em uma doce camada apetitosa de néctar que a planta usa como isca para atrair sua vitima, quando a pobre mosca pousa nessa armadilha e toca inocentemente em um dispositivo fatal (um pelo que é chamado de tricoma) a planta captura sua presa se fechando na velocidade de um impulso de 100 milissegundos, quanto mais o inseto se debate tentando escapar, mais a planta o oprime se entrelaçando lentamente para digeri-lo com enzimas durante 10 dias.

O medo sempre foi e sempre será o dispositivo de proteção de uma espécie, entenda, onde há ausência de medo sempre haverá mais dor. Quando alguém já provou a dor, não executa os mesmos movimentos por precaução, se alguém continua os executando é porque a dor não foi o suficiente para aprender a lição de alerta. Medo é proteção.

Fobos na mitologia grega é a personificação do medo, ele é filho de Afrodite, de Fobos vem a “fobia”, de Fobos vertia o medo no coração dos guerreiros nos campos de batalha, de Fobos vem o frio na barriga, o suor gelado na mão, a perna tremendo, vem o medo. Fobos tinha um irmão que sempre andava zangado chamado Deimos, de Deimos vem o terror.

Os gregos que andavam a noite pelos bosques tinham pânico de uma criatura que diz a lenda havia criado a flauta, chamavam o de Pã, de onde vem o pânico, para os romanos seu nome era Lupércio “aquele que repele os lobos”.

Lupércio era o protetor dos rebanhos. Algo que me chama atenção é o medo que nós temos de perder alguém ou alguma coisa, o medo da perda assombra todos os homens sem exceção, veja só, os pastores de ovelhas da antiguidade, eles para não perderem suas ovelhas mais rebeldes e travessas que se afastavam do aprisco e insistiam em peregrinar por pastos perigosos, os pastores quebravam a perna da ovelha num golpe firme do báculo para que a pequenina ovelha serelepe e curiosa não tentasse fugir de novo, às vezes somos capazes de machucar alguém que amamos com o intuito de não perde-lo, por amor somos capazes de quebrar a perna da “ovelha” teimosa só pra termos ela perto de nós... É o castigo pedagógico, porque quem ama machuca sim, ensina lições. A ovelha depois de ter a perna quebrada não quer mais fugir.

O medo de perder alguém é um medo cruel com o sistema humano de posse, o medo de perder tudo que você levou tanto tempo para cultivar, conquistar, todo o investimento emocional, todo o cuidado... Nós fazemos de tudo para impedir que alguém se vá, fazemos loucuras, criamos até algemas, gaiolas, vertiginosas prisões, no entanto, todo o esforço para impedir que a ovelha fuja às vezes contribui para a tão temida perda, Francisco Cândido Xavier dizia “Nossos atos tecem asas de libertação ou algemas de cativeiro, para nossa vitória ou nossa perda.”

Quando nós falhamos e perdemos esse alguém não conseguimos nos perdoar por isso, o polonês Alfred Korzybski dizia assim “Deus pode perdoar os seus pecados, mas seu sistema nervoso não”.

Um homem nascido na Ásia Menor em 335 a.C foi o primeiro a entender que nosso cérebro é o centro do sistema nervoso, o chamavam de Herófilo. Um cientista e médico que dominava a anatomia em seus primórdios, nessa época o estudo da anatomia ainda engatinhava. O termo “cientista” foi criado por um padre inglês chamado William Whewell só em 1833.

As plantas ditas carnívoras ou insetívoras evoluíram para ser desse jeito, vamos entender isso: a Dioneia na natureza vive em lugares pobres em nutrientes, pântanos são pobres em nitrogênio, a evolução amiga de Charles Robert Darwin então traçou um jeitinho de a Dioneia caçar insetos ricos de nitrogênio. Isso é uma circunstância da natureza, por isso é lindo ver uma planta carnívora, o ambiente fez dela necessariamente assim, Ivan Turguêniev dizia que as circunstâncias nos forçam a ir por uma estrada e depois nos punem por isso.

Há o terrível medo de não ser aceito pelas pessoas do jeito que você é... O medo de não ser o suficiente na sociedade que vivemos, o medo da rejeição, sentimos que não somos o bastante em diversas situações que envolvem padrões estabelecidos de cada época. No século17 o Rei da França, Luís XIV, tinha 1,60 m de altura e tinha vergonha disso, vergonha de ser de baixa estatura, tinha medo de ser zombado, rejeitado, mas ele achou um jeito de driblar esse detalhe, usando salto alto, foi então que se o sapato de salto alto passou a ser usado na história, pelo medo de ser ridicularizado pela altura, um Rei em toda a sua nobreza decidiu usar o que hoje adorna os lindos pés das mulheres, o sapato de salto alto, esse item do figurino atual feminino começou com um baixinho.

O medo da rejeição faz algumas pessoas esquecerem sua essência e aderirem comportamentos que não são os seus, mudam suas raízes, seus costumes, seus hábitos, suas roupas, seu cabelo, tudo isso para se encaixar num determinado grupo que espera ser aceito.

O medo muda as atitudes das pessoas... O medo força o mais fraco a se empenhar para se proteger, obriga a mecanismos de defesa engenhosos serem criados e bem pensados.

O maior técnico da história do futebol mundial, o catalão Josep Guardiola diz que tudo o que ele ganhou em sua carreira foi graças ao medo de perder, o medo de falhar, o medo de fracassar, o medo de não ser o suficiente, o medo de ser derrotado o fizeram criar estratégias, estudar, talhar e engendrar os métodos mais mirabolantes e exaustivos para se chegar à perfeição e a dominação do adversário e do acaso. O medo de falhar pode levar a obsessão pela perfeição e conseqüentemente ao sucesso.

Esse sentimento, sempre foi usado para controle coercitivo de indivíduos: "Se você não controlar o inimigo, o inimigo controla você" (Miyamoto Musashi). Segundo a Egiptologia, no Antigo Egito, a morte física não era o fim da vida, acreditavam haver uma possibilidade de vida melhor no além, mas para ser digno o morto deveria passar por um julgamento no tribunal da deusa Maat, no tribunal o coração do defunto era pesado em uma balança egípcia, se coração fosse leve como uma pena de avestruz, o individuo era absolvido. Se o coração pesasse isso significava que o homem fora mau durante sua vida.

O egípcio que não se saísse bem na pesagem da balança da deusa Maat tinha sua alma devorada pelo monstro Ammit (um demônio com cabeça de crocodilo, metade do corpo de tigre e outra metade hipopótamo). Podemos ver essa cena da Psicostasia no livro dos Mortos de 1275 a.C.

Desde criança as mães egípcias assustavam aos seus filhos dizendo “sejam educados, sejam bonzinhos ou um dia Ammit pega vocês”. As pessoas se policiavam em vida, pelo medo de pós a morte não conseguirem alcançar o coração leve na balança da deusa Maat.

A idéia de Inferno nunca existiu nas escrituras hebraicas primordiais, essa idéia de um lugar ardendo em fogo para onde as almas de pessoas que fizeram o mau em vida irão após a morte é mais um mecanismo regulador bebendo do medo do tormento após a morte para regular a moral de adeptos. Um sacerdote, escritor, acadêmico e teólogo chamado Eusebius Sophonius Hieronymus, mais conhecido como Jerônimo de Estridão em 384 d.C ao fazer a tradução das escrituras em hebraico para o Latim foi quem criou o termo e a idéia de “Inferno”. A pedido da santidade Papa Dâmaso I, Jerônimo traduziu as escrituras para o Latim e teorizou sobre o lugar de tormento da alma pela eternidade, onde havia fogo em abundancia. Pronto, agora temos um protagonista “o céu” para onde vão os bons e um antagonista “inferno” para onde vão os maus, assim pensaram os teólogos da época. Assim se cria uma mitologia em cima do medo.

Os cristãos precisavam de algo que pusesse medo nos pagãos e os levasse a se arrepender de seus feitos escabrosos, algo assustador, o Inferno, precisavam também de alguém para levar a culpa pelas dores humanas, pelas tragédias, pelos pecados, pestes, fome, traições, mentiras, assassinatos, infanticídios, parricídios, matricídios, e todos os atos repulsivos que vem da índole humana, esse ser foi escolhido como Diabo que aparece como o tentador de Eva no Jardim, alçado como o responsável por todo o sofrimento humano.

Afinal, o Diabo foi uma peça útil no imaginário popular, até porque como as pessoas saberiam a doçura do amor de Deus sem sentir o amargor do medo das atitudes supostamente demoníacas?

A figura do Diabo como é vista na cultura pop, o “capeta vermelho” como sangue foi outra idéia genial de construir uma imagem de um antagonista para Deus e os anjinhos de luz, no século 11 se disseminou calunias fantasiosas do folclore popular de que o diabo era vermelho, possuindo cauda, chifres e um tridente, o Cristianismo moldou essa idéia para combater as mitologias gregas e também romanas pagãs, o chifre no diabo faz alusão a Pã, de onde vem o pânico, o tridente que o diabo carrega é uma referencia a Poseidon, parece que a idéia funcionou, as pessoas desapegaram dos deuses gregos.

O medo de figuras como o Diabo, Inferno, tormento eterno, por muito tempo controlou as atitudes dos ocidentais, o medo é um mecanismo potente de dominação. Sabemos que o bem e o mal são o trigo e o joio semeados no caráter e na consciência dos humanos que tem tendências gigantescas de transitar entre os dois lados da moeda.

A Inquisição que começou na França, no século XII, mostra ao mundo uma das faces mais horripilantes do medo, a falta de conhecimento levava os atos serem brutais, e as mulheres sofreram com isso, a imagem da mulher durante esse período foi manchada, qualquer traço sexual aflorado era acusado de ser obra do Diabo possuindo o corpo feminino, mulheres não podiam sentar por cima do homem na relação sexual, os homens ficavam sempre por cima, qualquer investida da mulher pelo prazer era obra do famoso e culpado Diabo. O homem só tinha permissão para sexo pra procriação, qualquer tentativa da mulher desejar o prazer era o diabo agindo querendo destruir a “fidelidade” do homem a Deus.

Os homens tinham medo patológico do Diabo e das mulheres em alguns caos também, os homens cristãos mais ainda, quando a mulher ficava excitada e o clitóris aumentava de tamanho ela era acusada de bruxaria, acreditavam que mulheres com o clitóris em riste tinham contato com o Diabo. E as supostas bruxas eram queimadas. Imagine como as mulheres sofriam sem poder ter prazer e receber uma boa lambida no clitóris ou ficar por cima na hora H? Isso sim deveriam colocar na conta do Diabo, já que ele serve como tabua de tiro ao alvo do Cristianismo.

Na Inquisição aconteceram 44.674 julgamentos. Em 1022 foi criado o primeiro tribunal contra a heresia em Orleans. Imagina se naquela época alguém soubesse que sua digníssima gosta de um beijinho no bumbum que é uma das melhores coisas da vida? Iriam a julgamento publico pois os homens tinham medo dos desejos das mulheres.

O gatilho de Crossbow:

O ser humano nasce com medo, o medo pode ser passado de forma instintiva pela sobrevivência, herdamos medo de nossos ancestrais...

Pouco tempo atrás surgiu o conhecimento de um medo que foi chamado de “Tripofobia”, um mal estar proporcionado quando vistas imagens de formas com buracos. Tem gente que sente enjôo, arrepios, medo extremo quando vê superfícies com milhares de furos e buracos, a ciência pouco entende que tipo de medo essas pessoas sentiam, por que esse desconforto ao ver essas formas? Nem mesmo as pessoas que sofrem com Tripofobia sabem por que tem medo disso.

A Tripofobia não está no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, mas em 2013 dois pesquisadores ingleses Arnold Wilkins e Geoff Cole fizeram uma pesquisa que descobriu que as pessoas têm Tripofobia em graus diferentes, uns sentem mais desconforto, outros menos, mas todos sentem, somos todos tripofóbicos em algum nível, isso acontece porque Tripofobia é o medo reativo que consta ter ficado gravado em uma memória evolutiva como habilidade evolutiva da nossa espécie, pois nossos ancestrais conviveram com espécies perigosíssimas de animais venenosas com essas formas vide: Polvo de anéis azuis, Aranha armadeira, Cobra Taipan, Rã-dardo-venenoso e vermes que geram inflamação ao entrar no corpo humano como os parasitas na miíase.

Em 1947, um psiquiatra sul-africano chamado Joseph Wolpe descobriu o famoso método de “Dessensibilização Sistemática”, ao estudar exaustivamente, descobriu que os gatos podiam superar seus medos através da exposição gradual, Joseph fez diversos experimentos com a indução de distúrbios neuróticos em gatos e teve uma sacada genial, ele entendeu que se alguém fica relaxado não pode estar ao mesmo tempo ansioso, então introduziu o relaxamento para bloquear determinado medo ou fobia, se alguém está relaxado pode enfrentar melhor sua fobia.

A Dessensibilização Sistemática é um dos métodos mais conhecidos mundialmente de Terapia de exposição graduada ao se medo particular estando relaxado para enfrentá-lo. Um tipo de Terapia comportamental que fez imenso sucesso.

Nós temos medo de perder tudo a qualquer momento, temos medo de adoecer de repente, temos medo de que uma doença que já nos acometeu outrora volte, a psicologia trata esse tipo de medo como “Síndrome de Dâmocles”, o medo patológico de ter uma recaída.

Temos medo tanto quanto o bajulador Dâmocles de que a qualquer momento o fio da crina de cavalo pode se romper e a espada cairá cortando nossa cabeça.

Temos medo de mentiras, temos medo de sermos enganados, ser enganado até mesmo por profissionais fraudulentos, como a tese mentirosa que o médico antiético e desonesto Andrew Wakefield disseminou em 1998 que relacionava a vacina com o autismo e enganou muitas gerações que não vacinam seus filhos até hoje por medo que a vacina cause autismo.

Nascemos para sentir medo, medo é tão natural quanto a sensação de sede, fome, dor, medo é tão natural como amor, medo é a condição que pode nos fazer defender ou atacar, medo pode te paralisar ou te alçar ao sucesso... mas uma única coisa é certa, é impossível existir sem medo.

Mas e se a inocente e pequena mosca tivesse medo de aterrissar na folha da Dioneia?

# Este texto é uma pequena fração do livro que estou escrevendo "A Charlatanização do Medo, do Amor, da Dor e do Conhecimento".

Eden Mendes
Enviado por Eden Mendes em 24/01/2020
Código do texto: T6849595
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