VINHO TINTO QUE TE QUERO SECO

Quero hoje falar do vinho. Não como enólogo, mas como consumidor simples, advindo de uma família sem muita intimidade com ele, exceto o popular – tipo sangria, carreteiros, jurubeba, sangue de boi e semelhantes.  O vinho é para mim um processo. Sem deixar de ser bebida, mas sendo, além disto, um prazer. Tenho a impressão que as pessoas são dois momentos em suas vidas. Um antes do bom vinho e outro depois. Antes do bom vinho a gente bebe qualquer coisa, embriaga-se e fica um bom tempo curtindo o enjoo que fica em nós duradoiramente. Um vinho ruim custa pouco, é barato na linguagem popular. Quem está nesse estágio de vida adora vinho doce, licoroso, sangue de boi. Ignora que vinho se bebe com água e, de preferência com gás. Nesse estágio em que há pobreza de paladar para o vinho, sempre se come muito petisco e se se bebe vinho como se suco fosse. Bebe-se, bebe-se muito na lógica do refrigerante ou  suco, ou seja, do adocicado. Eu sei que há quem beba vinho doce de outra forma e que nem sempre o vinho barato é de mau gosto. Apenas não é de gosto, de uva selecionada, preferencialmente do Chile ou de Portugal, Itália. Pode ser também das adegas do Vale do São Francisco como o Miolo ou mesmo como o Rio Sol – vinhos de qualidade e já exportados para países de tradição vinícola. Das vinícolas do Sul, também nos vem bons vinhos que servem para brindar paladares refinados.

O segundo momento das pessoas é “depois que aprendem a gostar de um bom vinho”. Nesse estágio, dá-nos a impressão de que, sem deixarem de serem elas, são outras pessoas. Não se trata de “frescura” de “tiut” de grã-fino. E isto se consolida na prática quando sabemos que os verdadeiros apreciadores de um bom vinho são pessoas simples. Como simples, podem ter posses financeiras ou não. Certamente que o vinho fino custa caro. Mas para o degustador, não se trata de preço, mas de prazer pela vida e, sendo assim, não tem preço ter prazer na vida.

Beber vinho nesse estágio da vida merece correção: não é beber, mas degustar. Degustar vinho não é apenas abrir a garrafa, encher a mesa de salgadinhos e convidar amigos. Degustar um vinho requer um ritual. Um ritual de taças, de boas marcas e de vinícolas já testadas no mercado; requer petiscos selecionados como queijos finos que se adequem ao tipo de vinho que seja servido, bem como a forma ou o tipo de evento que se vai utilizar a preciosa e milenar bebida. O vinho também deve combinar com o tipo de massa ou alimento outro que seja servido, sem deixar de mencionar que a temperatura deve ser bem adequada. Não se degusta vinho apenas com o paladar, mas com os cinco sentidos.

Posso assegurar que foi a vida que me levou a gostar do bom vinho. Confesso que já me embriaguei com um vinho de carreteiro nos meus tempos de adolescente, quando fazia serenata na porta do colégio das freiras na minha querida Papacaça. Nessa época, vinho tinha que ser doce e a gente bebia em copo de geleia de mocotó Imbasa, lembram? Pois é. Hoje eu continuo simples como sempre fui, mas não me lembro do dia que aprendi a gostar de vinho tinto seco. Rompi com o doce, licoroso e barato.  Certamente não sou o primeiro nem serei o ultimo. Também não sei ainda muito do ritual que congrega uma boa noitada regada a um bom vinho. Mas o que sei me basta. Basta-me sentir que o meu vinho me dá prazer sozinho ou acompanhado: eu, minha taça de cristal, meu queijo provolone, minha sardela, carpaccio, um bom salaminho, água mineral com gás, me satisfazem. Mas se nesta hora pintar um amigo ou amiga queridos, tudo se dobra em forma de prazer ritualístico. O aroma, a verbalização do prazer, a análise do tipo de uva utilizada no vinho e sua procedência de fabricação. Tudo toma forma. Tudo se redimensiona.

Não se pense que não sabemos que há quem não goste de vinho dessa forma. Nem por isto são de péssimo gosto. Gosto é particularíssimo e, como tal, temos que respeitar. Também há quem não goste de doce de coco, de mulher, de homem, de tudo. Nossa colocação é pra quem tem esse mesmo gosto e que nem por isto se acha superior nem inferior a outrem. Um bom uísque é maravilhoso e tem seu ritual. Uma boa cachaça, idem. No nosso caso, estamos falando do vinho enquanto modo de vida, enquanto identidade deglutiva, enquanto espécie do gênero bebida. Enquanto gênero de elevação do paladar que se enleva aos céus e que, por pouco não alcança a mão de Deus, como o padre faz na missa quando bebe em seu ritual o vinho e depois completa com a água. Patena e pão parecem se dar as mãos. O milagre de Caná se deu com o vinho. O milagre do som se dá como o pinho (violão). O milagre da vida se dá em cada um que se ame e se brinde com um bom vinho tinto seco, preferencialmente.