A terceira pessoa
 
   Faz exatamente três meses que escrevi em terceira pessoa, uma crônica sobre o período em que estive hospitalizada por causa de um grave problemas de saúde. Dei a ela o título "De volta", Lembro-me que, quando sentei para escrevevê-la o dia estava meio chuvoso, minha cachorinha latia de agitação com o meu retorno, e eu – feliz por ter chegado em casa depois de tanto tempo – ainda estava a par de todos os detalhes do que havia, de fato, acontecido comigo. Não sabia, por exemplo, que tivera um aneurisma cerebral rompido, acompanhado de outras complicações. Não sabia ainda, com lucidez, que havia ficado por um triz. A única certeza que eu tinha era a de ter saído ilesa de um problema sério e de uma cirurgia de risco.
   Logo depois da publlicação da crônica, recebi várias mensagens de leitores,todas muito gentis e atenciosas, que me deixaram contente e agradecida. Os comentários por telefone também foram muitos. Mas chamou-me a atenção um detalhe: alguns leitores acharam que a crônica tivesse sido escrita por outra pessoa, visto que nela não usei o pronome "eu". Houve, inclusive, quem perguntasse se essa outra pessoa não teria sido o escritor Carlos Herculano Lopes, por causa de algumas semelhanças de estilo. O que muito me honrou, é claro, já que o considero um cronista de mão cheia e hábil narrador, além de um ótimo amigo.
   O tempo correu, diferentes crônicas vieram e acabei por me esquecer dessa história da autoria. Na semana passada, porém, uma leitora que tive o prazer de conhecer pessoalmente me perguntou se aquela personagem da crônica  de fevereiro, identificada como "ela", era mesmo eu. No dia seguinte, para minha surpreza, um colega confirmou também ter pensado que a autoria do texto não fosse minha, mas de algum jornalista que tivesse ouvido e transcrito o meu relato. Ou seja, a dúvida perdurou.
   Vamos, então, esclarecer as coisas: quem escreveu a crônica foi uma outra pessoas. Uma outra de mim, visto que, quando a escrevi, eu já não era mais a mesma de antes. A terceira pessoa era. de fato, a que mais podia me definir naquele momento da escrita. Além disso, considerei que o "ela" pudesse servir também como uma espécie de proteção segura contra os excessos de sentimento, pudesse me garantir uma postura mais reservada diante do vivido. Afinal, a terceira pessoa tem esse poder de nos dara ilusão do distanciamento, amenizando (ou eliminando) o tom confessional do relato. É, portanto, um artíficio literário capaz de funcionar como disfarce  do eu, a exemplo do que faz o escritor I.M. Coetzee, ao escrever uma autobiografia em terceira pessoa, com diferentes narradores.
   Diante disso tudo, arrisco dizer que a escritora da crônica tinha pelo menos três motivos para não dizer "eu": 1) ela havia passado por uma situação-limite e sabia que já não era mais quem fora ante, embora ainda não soubesse exatamente quem passou a ser: 2) ela foi contida pelo pudor de se expor em demasia: 3) ela foi contida pelo pudor de se expor em demasia: 3) ela buscou exercitar um artíficio narrativo, influenciada por seu mestre Coetzee. E, assim, acabou por misturar as coisas e provocar a dúvida.
   Sim, queridos leitores.Ela sou eu, reinventada por mim mesma.

                                  Maria Esther Maciel


P.S. - Transcrevi o texto da autora,publicado no Estado de Minas, de primeiro de maio de 2012. porque ela guarda uma semelhança com algo que vivi, e também porque acompanho os passos da autora a partir dos seus primeiros gorgeios em lindos versos. (Roberto Gonçalves)