Depressão
 
Sofia era uma mesa novinha. Bonita. Feita pelas mãos do melhor carpinteiro do mundo. Foi entalhada com amor, com matéria prima de qualidade. Nasceu forte. Seus detalhes foram esculpidos com sentimento, com carinho das mãos do seu pai. Não há outra mesa como ela em toda a terra.
Participou de bons momentos. Ajudou muito. Esteve presente nos tempos de dificuldade. Sempre firme, segurando tudo e a todos. Jamais rejeitou uma carga, mesmo que estivesse acima da sua capacidade.
Quanto significado teve na vida de todos! Participou do progresso, da luta. Recebeu lágrimas e risos. Sempre se doou e sabia que se não estivesse ali, faria muita falta. Mas como sempre estava presnte, quase nunca era notada.
Assim transcorreu sua vida. Como a vida da maioria das pessoas, sempre muito participante, cooperando, sem reclamar muitos cuidados. Afinal a função da mesa é servir.
 
 A vida é uma brincadeira que se 
brinca sem brincar.
A vida nunca é pequena,
pequeno é o nosso altar.

 
O tempo passou. Com ele e com a falta de cuidados, Sofia foi se desgatando. Suas quinas, um pouco rachadas, tornanaram-se ásperas. Talvez, se a tivessem restaurado no início, ela voltasse a ser bela e útil como antes. Mas a vida é tão corrida, não tempo a perder com restaurações. 
Apesar do desgate, do mau uso e da falta de cuidados, prosseguiu em sua missão, doando-se o melhor de si.
Apesar de seu esforço em resistir, percebeu que algo a corria por dentro. Já não tinha a mesma força de antes. Sentia suas pernas fraquejarem ao menor peso. Seu tampão, antes tão belo e forte, ficou cheio de manchas e rabiscos. Parecia afundar em si mesmo. Sentia medo, mas ainda queria servir e estar perto.
 
                                A vida nunca é pequena
                                ​pequeno é o nosso altar

 

Um dia, quase sem perceber, desmoronou. Todos dão uma desmoronada, um dia! O peso era pequeno, mas para ela parecia uma tonelada. Todos a olharam com espanto, alguns com indignação, outros com raiva e nenhum com compaixão. Ninguém esperava aquilo. Nem ela! Mas já havia sido devorada, em seu interior, por bichinhos rápidos e silenciosos, que posso chamar de "cupins".
Os cupins costumam deixar umas "sujeirinhas", mas a pressa, às vezes, nos impede de parar e socorrer a mesa antes que ela desabe; afinal ela ainda está servindo para a finalidade que tem.
Sabe de uma coisa? Esse cupim se chama DEPRESSÃO. A mesa é Sofia. A mesa é você. É a incapacidade de arrepender-se que lhe tira a liberdade, coincidindo estaticamente com seus atos e com seu ontem, sem possibilidade de renovar-se.
Certamente o passado, na materialidade dos fatos, na crônica das res gestae (ações realizadas) é irrevogável e está agarrado a nós como as ostras ao rochedo. Mas além da crônica dos fatos se ergue a história moral do homem, com seu poder paradoxal de mudar o imutável, de transformar o sentido daquilo que aconteceu, de renovar no íntimo a pessoa. A compreensão se transformará em cooperação, a compreensão eliminará as dores.
Se um homem por toda a existência brincasse de arrepender-se, fazendo gangorra  entre culpa e o arrependimento, poderíamos legitimamente duvidar da profundidade e seriedade de seu arrependimento. Mas o homem arrependido e convencido em equívocos dificilmente repete seus erros. A vacina do arrependimento imuniza justamente porque inocula a consciência do mal e reforça as energias adequadas para combatê-lo. O arrependimento é prerrogativa humana e contém em seu ventre a promessa.
 
                                  Roberto Gonçalves       
                                            Escritor                  
RG
Enviado por RG em 26/08/2014
Reeditado em 27/09/2018
Código do texto: T4937670
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