Liberou geral

Drogas em foco

À Fernando Henrique Cardoso

Fiquei alguns anos tentando visualizar como Sartre lançaria as luzes da razão sobre o problema das drogas na América Latina, já que sempre procuramos referências no exterior para purgar o complexo de inferioridade intelectual. Por sorte temos o Fernando Henrique Cardoso intelectual para questões que demandam espírito elevado; longe da hipocrisia imposta aos assuntos de grande mérito. Na televisão por assinatura, fechada para poucos, assisti informações dessa atuação reflexiva. A tradição de combate ao comportamento de liberdade sempre apresentou desvios convidativos para mergulhar a sociedade no horror que é metodologicamente amigo da tirania. Ocorre que as drogas não são tratadas como problema filosófico nessa sociedade governada pelos desvios de seus próprios fundamentos. A condição humana fica entre a hipocrisia dos conceitos e a violência das ações. Vale lembrar a ordem régia de 6 de julho de 1747 que lançou as bases da ignorância, pois liquidava a segunda tentativa de se estabelecer uma oficina impressora no país. Até o século XIX a leitura foi tão suspeita quanto fumar um baseado na esquina. Portanto o direito nunca foi igual e nunca igualou a sociedade que vive permissivamente entre o desejo da posse e a miséria das privações no auge do capitalismo mercantil. De posse desse assunto e na vanguarda da realidade a imprensa manipula os dados a seu bel prazer.

O canal Globo News permeia cuidadosamente o tema empregando a deixa íntegra e corajosa de Fernando Henrique na condição de intelectua. Para a informação de massa tais crimes dos hábitos trajam a capa preta do tabu e da aversão, e como consequencia traduz um belo paradigma: o uso das drogas “ilícitas”, por exemplo, num acidente de carro, cujo motorista estava embriagado, não dizem: “estava drogado com bebida e em alta velocidade, mas sim embriagado”. Raiz do eufemismo liberal. Acidentes de carro seguidos de morte raramente levam alguém para o sepulcro das cadeias. A tribuna pende para o jogo do uso da força quanto se trata de combater os costumes para melhor ação moderna de sensacionalismo lucrativo. Vende de modo orquestral. Outro enfoque sobre o tema resulta no fato da saúde pública lavar as mãos quanto aos fatos. No plano da economia Getúlio Vargas queimou café para valorizar esta droga no mercado internacional. A polícia quando exibe a enorme apreensão de maconha utiliza incineração para exaltar eficiência ao foco da mídia, esquecendo o efeito monetário dessa circunstância num universo onde tudo é mercado. Valoriza como Vargas o produto de tráfico no estado capitalista a que chegamos*. Portanto esse não é o caminho. Mas é acelerado modo para desvio das funções diante de crimes insolúveis e sem habilitação verdadeiramente técnica em nome da vida. O lucro disfarça a existência e os interesses matam a vida.

O exemplo da redução nos ganhos do cigarro vem se dando pela inteligência da mídia. Fumar ainda não se converteu nas mãos dos conservadores em ação drástica. Nenhum escândalo efetivo, exceto o câncer, mesmo assim evita-se o lançamento de bombas nas plantações. Os vícios tendem a se tornar uma tradição humana porque existe a tradição e ela serve para moldar o espírito humano. Antes, porém, os santos criam sua guerra e temem a liberação como avanço da maldade, do aniquilamento, da sobriedade absolutamente lendária na totalidade. A idéia de uma “liberdade geral” de classe apavora e tem nas drogas o seu sintoma reprodutivo. Há perversamente uma dissimulada questão de “conflito de classe” no tema. Na elite a droga é especiaria estimulante aos prazeres como tantos hábitos de liberdade daqueles que possuem poder e capital. Já na classe média é atenuante feito medida imitativa da fina flor livre e poderosa para descontração e prazer da proximidade não confirmada dos valores sólidos da elite. Assim a vida entre índices de risco da classe média é atenuada pelas drogas que consomem ativando o espírito individual de liberdade nas bases da utopia. Finalmente no estado de miséria as drogas se constituem no único alento com garantia de economia. Único vestígio de prazer, pois a felicidade guarda em si um tipo de esquecimento até alienação da progressiva covardia a que estão submetidas. São vidas sem direitos nem ganhos. Para elas toda instituição não passa de legenda e a mídia guarda para elas o melhor filme de terror: a realidade. Todas as portas que conseguem abrir são contravenções dentro de sistemas.

Meu caro Fernando Henrique Cardoso merece todo respeito da sociedade racional e ilustrada. A descriminalização das drogas deve ser aplicada com método e visando arrecadar fundos para a saúde pública, educação, saneamento básico, construção civil e melhoria integral da miséria nacional que não é um atributo lúdico. Sendo que atualmente as drogas servem apenas para recolhimento de verbas defensivas e lucro ao espetáculo noticioso. Em liberdade os usuários terão condições de reconhecimento da própria condição humana sem a maquiavélica relação estabelecida passivamente em direção ao crime. O drogado se igualará ao fumante, ao usuário de cafèzinho e álcool, podendo não ser confundido com abstêmios nazistas; todavia criminosos no campo dos discriminadores de plantão. Creio que o ilustre pensador Fernando Henrique Cardoso compreendeu perfeitamente o quanto em nome do capital os traficantes especializados hipoteticamente se opõem a descriminalização, pois significam a retirada do poder aquisitivo de suas mãos como fonte de renda dentro da miséria original. Assim como a tensão contrária do “estado a que chegamos”* resultando em aspecto favorável ao mercado negro do vício. Verdadeiro cenário de guerra urbana imposto entre a moral e o cinismo moralista.

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*Modo como o Barão de Itararé se referia ao estado de Vargas.